Oração para desaparecer é o segundo romance da escritora cearense
Socorro Acioli. A autora é jornalista e
doutora em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), é
professora e coordenadora da especialização em escrita e criação da
Universidade de Fortaleza (Unifor). Tem mais de vinte livros publicados, entre
eles ‘Ela tem olhos de céu’, que recebeu o prêmio Jabuti de literatura
infantil; a coletânea de poemas Takimadalar, as ilhas invisíveis; e os romances
A cabeça do santo (que
ganhou edições na Inglaterra, Estados Unidos, França, México e Itália) e Oração para Desaparecer.
“Foi quando achei
uma crônica de Carlos Drummond de Andrade no Correio da Manhã de 17 de novembro
de 1946. Ele pedia que sábios, poetas, artistas prestassem atenção à igrejinha
de Almofala. E contava a história da Labareda, dos Tremembés, da disputa pela
santa. E me deu de presente Joana Camelo, a prostituta que jogou um tamanco na
cabeça do padre. Depois disso, eu decidi atender ao pedido do Drummond, tantos
anos depois. Recebi Joana Camelo de suas mãos. Há uma Almofala no Brasil, sete
Almofalas em Portugal. Comecei uma pesquisa intensa, com várias visitas à
igreja, às casas de cura dos pajés Tremembés, ganhei um colar de proteção, fui
ao rio ver cavalos marinhos, conheci uma das Almofalas portuguesas e dediquei
sete anos muito felizes ao ‘Oração para desaparecer’. Escrevi três versões,
joguei duas no lixo. A terceira é essa, que agora chega aos leitores, resultado
da imensa paz de viver dentro deste livro de 2015 a 2023.” (Estado de
Minas, out 2023)
A igreja de Almofala completou 300 anos de história em
2012. Durante o século XVIII, com os
primeiros desbravadores, a Igreja se fixou no território cearense para o
trabalho de catequese, antecedendo o poder civil. Vários religiosos foram
proprietários de sesmarias e o
território cearense foi pontuado por ermidas, capelas, aldeamentos pequenos e
efêmeros como no caso de Almofala. A província de Almofala (Almo hala, do
árabe, lugar de permanência temporária), segundo registros do Instituto
Brasileiro do Patrimônio Cultural (IPHAN, 2013), tem sua origem ligada à Carta
Régia de 8 de janeiro de 1697, que determinava ao governador do Maranhão a
doação por Sesmarias, de todas as terras necessárias aos índios Tremembés. Até
1696 o clima era de grande tensão entre os Tremembés, índios que habitavam a
região, e os portugueses. O Pe. Assenso Gago, da Companhia de Jesus, mediou
essa situação de tensão ao escrever ao Rei de Portugal mostrando-lhe a
conveniência de aldear os Tremembés, entregando-lhes sesmarias de terras entre
o rio Aracatymirim e do Timonha, atual Almofala. Sua majestade, por meio da
Carta Régia 1697 respondeu à solicitação do jesuíta, concedendo uma légua de
terra aos Tremembé, bem como aos índios do Ceará Grande, Pernambuco, Paraíba.
Ordenou ao governador do Maranhão que não importunasse esses índios e nem os
apartassem dos lugares por eles escolhidos para viverem. Inicialmente, bem
próxima ao mar e ao rio Aracati-mirim, uma capela de taipa e coberta de palha
foram erguidas para que fosse colocado início às atividades de educação
religiosa. No início do século XVIII, nos anos de 1712 a 1758, no mesmo local
da igreja provisória, houve a construção da igreja já em alvenaria com uma
mescla de técnicas eruditas e populares. A presença da igreja no centro mostra
como o distrito de Almofala cresceu ao seu redor (IPHAN, 2013). Em 1897, uma
duna começou a se deslocar e foi engolindo a igreja e o aldeamento, inclusive
as terras dos tremembés. A igreja ficou soterrada até 1943, quando a duna
começou a se mover e a população local começou a voltar e desenterrar a igreja.
Nas palavras do Drummond, em 1946:
“Diante de algumas
fotografias pertencentes ao arquivo do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, assalta-me o desejo de convocar os poetas, os sociólogos, os
pintores, os romancistas e os músicos do Brasil e pedir-lhes que vejam, mas
vejam longamente a igreja de Almofala.
Almofala, como
Tróia, não é:foi. Foi um aldeamento de índios tremembés, a mais de cem
quilômetros a oeste de Fortaleza. Em 1608 estabeleciam-se os jesuítas nas
praias cearenses, começando a catequizar os silvícolas chefiados por
Juripariguaçu, ou seja, o grande Diabo. Esse nome talvez influísse na fama que
vieram a ter os tremembés: índios feros e turbulentos, afirma Berredo; mas o
padre Antonio Vieira e, modernamente, Paulino Nogueira consideram-nos pacíficos
e morigerados. O certo é que foram atraídos, evangelizados, atacados,
expoliados e exterminados, segundo a sorte habitual do nosso gentio, e como
calhava nessa ou naquela conjuntura. Hoje restam poucos e melancólicos
tremembés que como a maioria de seus irmãos brasileiros, de sangue puro ou
mestiço, não tem terras. Nem igreja porque a deles, Nossa Senhora da Conceição
de Almofala, a areia comeu.
(...) Aqui está
uma fotografia da DPHAN: meia dúzia de ‘cabras’ a cavalo, dez ou doze mulheres
de saia arrastando o chão, guarda-sóis abertos, em torno de um monte de areia
que obstrui a entrada da igreja e lhe devorou parte dos fundos; por um óculo
aberto sobre a porta principal, a fotografia é branca: o céu do Ceará, num dia
remoto. Outra fotografia, esta de há poucos anos tirada por um representante da
repartição, o pinto Rescala, mostra a fachada inteira, liberta do areial, e o
mesmo óculo deixa passar o mesmo céu, prolongando a visão através de regiões
desoladas. Os caboclos conseguiram, após
37 anos, remover a duna imensa, mas o templo está ermo e inútil,
presidindo a solidão do lugar. E bem em frente da igreja, a uns trezentos
metros (onde outrora foi uma colina) outras fotografias mostram o espantoso, o
trágico cemitério, que se diria um desses quadro de Yves Tanguy onde estão
dispersas formas incoerentes numa perspectiva rasa e infinita. Ou certas
composições angustiosas dos surrealistas. Ou uma cidade que o terremoto
varresse. Ou os vestígios, que não sabemos interpretar, de alguma civilização
sepultada há muito tempo, e que antecipa em nós o frio de nossa própria
destruição. Mas não estamos no Egito: estamos ali no Ceará, e em 1898 o padre
Antonio Tomás, autor de um soneto bastante conhecido, celebrava a derradeira
missa na igreja atacada pelo vento.
Ele nos conta o
episódio. Saíra de Acaraú para salvar as imagens que cumpria remover com
urgência: o morro de areia crescia atrás da igreja e várias casas tinham sido
engulidas. Os moradores demoliam suas moradias e iam reedificá-las em paragens
mais abrigadas. Rui o teto da capela. O padre resolve oficiar uma última vez,
aproveitando a madrugada, que é quando o vento sopra mais brando. Reúne toda a
população pobre da vila e dos arredores. Cerca de três mil pessoas, tomadas de
assombro, penetram a custo na igreja ou enchem o adro. Padre Antonio Tomás, ao
Evangelho, explica ao povo que é preciso levar as imagens até a capela do
Tanque do Meio a dez quilômetros de Almofala: a igreja está perdida. Vamos em
procissão, diz ele. E continua a missa, mas ninguém a ouve. Os fiéis voltam-se
para as imagens de que irão ficar privados, e um côro de gemidos, de suspiros,
de soluços cobre a voz do padre. As mulheres entoam um bendito a Senhora da
Conceição, em quadras improvisadas e os homens, batendo no peito, secundam. O
eco vai perder-se ao mato longe.
A situação
torna-se grave quando chega a notícia de que, por trás do morro de areia, uns
‘cabras’ armados se dispõem a obstar a retirada das imagens. O padre manda
chamar os chefes do movimento, explica-lhes com doçura que ou as imagens são
removidas ou tudo afunda na areia; eles continuam obstinados. Nisso Joana
Camelo, uma mulher do povo, arrebata a imagem de Nossa Senhora do Rosário e
saiu triunfante com ela. Padre Tomás grita aos mais próximos que a detenham.
Ninguém o ouve. Então o padre corre no encalço da fugitiva, lutam os dois,
toma-lhe das mãos a imagem. Os chefes da insurreição procuram defender Joana,
dois homens ajudam o vigário, estabelece-se a confusão; ‘fechou-se o tempo’,
escreve o padre Tomás; e triunfou o partido deste, depois de muita cabeça
quebrada. O padre manda o subdelegado soltar os presos, como convêm, e todos
arrependidos e confortados, iniciam a marcha para o Tanque do Meio, onde o
vento não castigará mais os santos.
E a igreja
desapareceu na areia, como desapareceram as casas, o cajueiral, a aldeia
inteira dos tremembés. De 1905 é a sede do novo distrito, com duas casinhas
para começar Itarena. Almofala ficou sendo uma lembrança.”
O livro Oração para Desaparecer é dividido em 3 partes. Na
primeira delas, ‘Você trouxe todas as palavras’, uma jovem mulher narra, em
primeira pessoa, como apareceu e foi resgatada por um casal de idosos em uma
aldeia portuguesa chamada Almofala, perto de Caldas de Rainha. Chamada pelo
casal e seus parentes de ‘ressurrecta’, saiu do buraco sem memória, sem cabelo,
pelada, vendo pessoas mortas e falando português do Brasil. Está contando os
fatos de alguns meses antes a um homem, Félix Ventura, vendedor de passados,
para que ele crie documentos e invente uma história de vida evidenciada, já que
ela nunca se lembrou de seu passado. Cida, o nome com que foi batizada por sua
família portuguesa, precisa de um
passado produzido para poder viver seu futuro em Moçambique com Jorge Momade, por quem se apaixonou. Anos depois, ao
encontrar uma imagem quebrada de Nossa Senhora da Conceição na casa da família
que a abrigara, ela tem um sonho e se lembra de onde veio e seu nome
verdadeiro: Joana, de Almofala.
“ A vida é feita de palavras,
elas explicam e fazem nascer e morrer. Se ninguém pronucia um nome este ser está morto, mesmo que
respire e leve um coração batendo no peito. Estar vivo é ser palavra na boca de
alguém. Não lembrar delas me condenou ao abismo, não saber o nome das pessoas,
do meu lugar, a narrativa da minha vida, tudo o que somos é história e história
se conta com palavras. Por isso, bastou um bilhete. Lembrei-me da missa: “Mas
dizei uma só palavra e serei salvo.” Fui salva por apenas duas, o nome da
cidade de onde vim e meu nome.” (p.111)
Na parte dois, “Os ossos dela não estão lá”, quem narra é o
biólogo Miguel, contando a Jorge sua história em Almofala, Ceará, sua pesquisa
com cavalos marinhos, seu contato com os tremembés e seu sofrimento de 49 anos
sem saber o que foi feito da mulher que amava, Joana Camelo. Que desapareceu na
areia da igreja soterrada.
Na parte três, “A língua de fogo avisou”, é novamente Joana
que narra, em primeira pessoa, sua volta
à Almofala brasileira e a sua família
tremembés, que a acolheram quando foi abandonada pela mãe na igreja de
Almofala. Traz a santa quebrada de volta aos seus donos, reencontra Miguel e
suas memórias.
“Só posso fazer uma coisa
agora: renascer mais uma vez. Não vou parar de renascer nunca e acho que é
assim com todos nós.”
O romance é bastante envolvente, com texto limpo, fluente e
com boas frases e citações. A autora homenageia a língua portuguesa, que é fio
conector de todos os personagens. Faz homenagens também a outros autores, como
ao José Eduardo Agualusa, emprestando seu personagem do “Vendedor de Passados”,
o angolano Félix Ventura. E também ao José Saramago, com a menção ao Livro dos
Itinerários e à epígrafe do último livro do autor, ‘A Viagem do Elefante” (“Sempre chegamos ao
sítio aonde nos esperam”). Ainda, é clara a influência do realismo mágico sul-americano,
como Garcia-Márquez, no tom do romance e escolhas do enredo.
No entanto, fiquei um pouco incomodada com alguns recursos
narrativos que a autora empregou, que a meu ver, empobreceram um pouco o
resultado. Gostei muito do início do livro, da descrição inicial do ‘parto’ da
terra, da confusão mental e desespero de não se saber quem é, porque está ali,
o que aconteceu. Mas a entrada do personagem do Félix Ventura já me causou
estranheza. Qual o sentido daquele personagem? Mesmo Jorge e Miguel me
pareceram acessórios à trama, o livro poderia ter sido construído sem a presença
deles. Também não convence, mesmo dentro
de uma história de realismo anímico, o gap de 49 anos, que para Joana foram
sete. Ela teria ficado 42 anos com a vida suspensa, antes de aparecer na outra
Almofala? A diferença da passagem do tempo de foram diferente da realidade
pareceu apenas um artifício para que ela não pudesse resgatar a relação amorosa
com Miguel. O resgate da história da
igreja de Almofala e da religiosidade dos tremembés me pareceu a verdadeira
riqueza do livro.
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