terça-feira, 8 de outubro de 2024

A menina de Milão

ou LÍNGUAS, de Domenico Starnone

por Claudine M. D. Duarte

 

O autor, Domenico Starnone nasceu em Nápoles, em 1943. Publicou seu primeiro livro aos 42 anos e é autor de romances, além de roteiros, peças de teatro e artigos. 

“O banal é a superfície à qual nos acostumamos, mas se a gente arranhar aparecem coisas incríveis. O banal é um modo de não contar, de estacionar as coisas. O trabalho de um escritor é mostrar que o óbvio não é tão óbvio”, afirma Starnone, que, embora quisesse ser escritor desde a adolescência, se dedicou ao ensino. Nos anos setenta, começou a escrever no jornal IlManifestocolunas sobre o cotidiano na escola e isso representou o detalhe banal em sua vida: “Agora não sei se sou um professor ou um escritor”. Em 2001, recebeu o Prêmio Strega e dele, já temos publicados 5 (cinco) livros pela editora Todavia, todos traduzidos pelo Maurício Santanna Dias: Laços (2014), Assombrações (2016), Dentes (2018), Segredos (2019) e Línguas (2021).

Confesso que a tradução, aqui no Brasil, dos títulos de seus romances me incomoda e partilho aqui os títulos originais e, para comparação, como foram traduzidos para o inglês: 

·      Laços, Lacci, Ties 

·      Assombrações, Scherzetto, Trick

·      Segredos, Confidenza, Trust

·      Línguas, Vita mortale e immortale dela bambina di Milano, The Mortal and Immortal Life of the Girl from Milan

O título escolhido pelo autor confere um peso maior à existência da “menina de Milão” na vida do narrador que o foco nas várias línguas ou dialetos adotados pelos personagens. Como em romances anteriores, Starnone, opta pela narração em primeira pessoa e a defende afirmando que 

“a narrativa do eu é sempre uma investigação sobre a nossa turbulenta clausura existencial e sobre as interrogações que derivam dela. Como realmente somos? Bons, maus, corajosos, vis, infiéis, inteligentes, estúpidos? Sou a peça de qual quebra-cabeça? Amo, sou amado de volta, ajo em prol do melhor, sofro, provoco sentimento? E, posto esse frágil eu, o outro como é? Melhor que eu? Pior que eu? Os neurônios-espelho não nos ajudam muito. Todo realismo não pode senão narrar os desvios e as inclinações do que se choca em outros eus.”

Assim percebi construído esse livro, com desvios e inclinações do narrador, Mimi, que, ao encadear lembranças, reflexões existenciais e eventos aparentemente banais, vai se descobrindo nas relações com outras pessoas. 

A trama tem Nápoles como cenário e nos traz cenas da infância do narrador, com destaque para o relacionamento com dois personagens: a avó materna, que, apesar de ter outros netos, demonstra predileção por Mimi e Lello, um amigo da mesma idade. Uma garota se muda para o prédio da frente e, em sua sacada, ela dança, conquistando os dois garotos que chegam a ensaiar duelos para terem direito à “milanesa”. O encantamento de Mimi com “a menina de Milão” não se resumia à sua dança, mas também às frases em italiano que a escutou pronunciar. Aquela língua harmoniosamente falada era muito mais bela que o dialeto napolitano de sua família. Descreve breves, porém profundos diálogos com a avó sobre Amor e Morte, constrói fantasias sobre o mundo dos mortos e se compara a Orfeu resgatando a amada do mundo dos mortos.

“... se algum dia pudesse lhe falar, que ela soubesse – uma palavra puxa outra – que eu estava apaixonado por sua bela alma e que meu amor seria eterno, e que, se ela fazia questão de dançar no parapeito e cair lá embaixo, depois poderia contar comigo com certeza, pois eu iria pessoalmente buscá-la no além-túmulo, sem jamais fazer a bobagem de me virar para olhá-la.”

Ao inserir o mito de Orfeu* em sua narrativa, Starnone nos proporciona uma deliciosa história de um amor (quase) eterno. Lello conta a Mimi que a garota faleceu, afogada e aí se dá o fim da ‘vida mortal da menina de Milão’. A amada, mesmo morta, viveria (vive?) nas memórias do amante. Dez anos depois, já na universidade, estudando Letras, o narrador é atraído por um curso de Glotologia pois se interessa pelas línguas em geral e as poucas palavras que escutou a milanesa pronunciando voltavam à sua mente, com direito a imagens invadindo seus sonhos.

“Talvez tenha sido a imagem do Vesúvio exterminador; talvez a ideia de que em nosso planeta há continuamente decessos de indivíduos e extermínios em massa tão intoleráveis que até os deuses se lamentam de os terem permitido; talvez só o fato de que eu tinha a cabeça cheia de formulas literárias e buscava boas ocasiões para usá-las. (...) E, no italiano apaixonado que falávamos entre nós, concluí muito acima do tom deste modo: quase tudo daquela menina agora se perdeu, por isso hoje, enquanto o professor dava aula, senti que a milanesa e sua voz se conservaram em minha cabeça como num papiro carbonizado que uma máquina – uma espécie de autômato do século XVIII – desenrola com delicadeza, restituindo-me a história do tumultuoso primeiro amor. (...) misturando o Vesúvio, Pompeia, Herculano e uma menina milanesa, era capaz de organizar um apocalipse pessoal e médio-baixo.”

Com maestria, o autor mescla a presença da ‘menina de Milão’ na vida do narrador e o papel fundamental exercido por sua avó, Anna. Isso me encantou. Como no livro Assombrações, Starnone descreve algumas pinceladas de crueldade que as crianças são capazes de ter com seus avós e ao mesmo tempo, retrata uma vida afetiva que desvenda histórias do passado e resgata o que lhe é caro e único: o prazer da palavra. Em três tempos, na infância, na universidade e na vida adulta, o narrador consegue delinear seu amadurecimento sempre com a ajuda de Anna, Nanni ou Nonnà – como era chamada pelos netos. Línguas é uma preciosidade, em 3 atos intrinsecamente conectados, somos cativados pelas pequenas (grandes) reflexões do narrador e como chegou a uma vida satisfeita de si. O capítulo final devia vir com um alerta “para ler e reler, sem moderação”:

“... já sabendo que esse pouco de realmente vivo que fazemos ao viver permanece fora da escrita, que os signos são constitucionalmente insuficientes, oscilam entre comentário e exaustão, e ainda bem que é assim.”

Outro ponto relevante é como a escrita do livro é imagética, colocando luz, cor e sons em alguns personagens e deixando outros 'embaçados'. Como, por exemplo, o restante da família de Mini: pai, mãe e o irmão mais novo. Sabemos que eles existem, mas deles, apreendemos muito pouco. São flashes, espectros, com poucas contribuições ao processo de reconstrução da memória do narrador, mas, em verdade, muito importantes para a criação do ambiente doméstico tão dependente dos trabalhos da avó.

Recomendo a leitura desse e de outros livros do Domenico Starnone. Concordo com ele quando afirmou que a literatura “deve mostrar aquilo que resistimos a ver, ou que escondemos porque nos dá medo. É preciso contar a verdade da própria experiência, isso é a única coisa que um escritor tem. E isto não significa fazer autobiografia, e sim usar a experiência para traçar as histórias.” E talvez por isso use sua cidade natal como cenário: é um lugar complexo, que não pode se encaixar em um estereótipo: “Sobre Nápoles sempre há algo mais a dizer”. 

***

*Orfeu resolveu buscar sua amada nas paragens onde habitam os corações frios. A melodia de sua lira fez os que viviam sem luz correrem para ouvi-lo atentos e silenciosos, como pássaros dentro da noite.
Ao abordar o Rei das Sombras, Orfeu obteve dele o direito de retornar com Eurídice ao sol. Porém seu pedido seria atendido com a condição de que não olhasse para trás, para ver se sua amada o seguia. Mas, impaciente, ele olhou para ela e a perdeu para sempre.

 

terça-feira, 17 de setembro de 2024

A cidade inexistente – José Rezende Jr.




Por Maria Albeti

Sobre o autor

José Rezende é jornalista e escritor, nasceu em Aimorés (MG), em 1959, e vive em Brasília, desde 1987. Trabalhou como repórter especial do Jornal do Brasil, Isto é, O Globo e Correio Brasiliense. Esteve presente em diversas áreas, produzindo reportagens sobre cidades, política, mundo e cultura. Escreveu na revista Traços e conduziu diversas oficinas de texto literário e jornalístico.

A Revista Traços nasceu em 2015, em Brasília, visando a geração de renda para pessoas em situação de vulnerabilidade. Essas revistas são vendidas em locais de grande circulação pelas ruas da cidade. O objetivo é permitir que essas pessoas possam reestruturar suas vidas e, posteriormente, reingressar no mercado de trabalho. 

Estreou na literatura, em 2005, com o livro A mulher-gorila e outros demônios, uma coletânea de contos. Posteriormente, publicou os seguintes livros: Eu perguntei pro velho se ele queria morrer e outras histórias de amor (contos), em 2009; Estórias mínimas, em 2011; Os vivos e os mortos, em 2016; e A cidade inexistente (primeiro romance), em 2019, todos pela Editora 7 Letras. 

Começou na literatura infantil com o livro Fábula Urbana, em parceria com o ilustrador Rogerio Coelho, publicado pela Edições de Janeiro. Esse livro tem como inspiração o encontro real do autor com um menino pobre que pedia livro em vez de esmola. Publicou, também, o livro O sapo que não queria ser príncipe, com ilustrações de Catarina Bessel, em 2023, pela editora Gato Leitor.

Conquistou o 2º lugar no Prêmio da Biblioteca Nacional, de 2009, com o livro de contos Eu perguntei pro velho se ele queria morrer e outras histórias de amor e ganhou o prêmio Jabuti de 2010, na categoria "Contos e crônicas" com esse mesmo livro.  O livro A cidade inexistente foi finalista do Prêmio Oceanos e do Prêmio São Paulo, em 2020 e o livro O tempo de parar o tempo, foi finalista do prêmio do Prêmio literário Barco a Vapor, em 2021.

Sobre o livro

A estrutura do romance A Cidade inexistente se diferencia da configuração tradicional, é formada por pequenos contos, talvez pela experiência do autor nesse gênero. O autor utiliza linguagem simples, o que permite uma leitura fácil, e muitas vezes usa o recurso de aglutinação de palavras para formar novos termos, por exemplo, sei-lá-qual-ésima, desistidas, desengolindo, desamuado, desofendido, 

Rezende apresenta diversos aspectos das pequenas cidades, tais como: o circo, com trapezista, palhaço, mágico e um leão; o doido, o padre e figuras lendárias, como: a noiva fantasma, os caboclos d’água e a cabra cabriola. Existe uma mistura do real com o surreal, aproximando-se do realismo fantástico, a realidade é transfigurada, mostrando o irreal ou estranho como algo cotidiano e comum. O tempo é percebido de forma cíclica, ao invés de linear.

Os contos têm início com a remoção dos habitantes, em embarques pacíficos e ordeiros (p. 11), de uma pequena cidade, “onde autoridade nenhuma do estado jamais sujou a sola do sapato (p. 11), que será inundada pelas águas de uma hidrelétrica. Tragédia anunciada pelo “doido da cidade”, que ouviu um telefonema do “homem do governo”, mas ninguém acreditou, “O doido então bateu de porta em porta, mas de casa em casa lhe bateram a porta na cara” (p. 15).  Até que chega o dia, os moradores são levados em caminhões pau-de-arara, para a cidade nova, menos as autoridades que foram em camionetes cabine-dupla do governo. 

A cidade nova foi construída idêntica - “cuspida e escarrada” - à cidade antiga, é “a mesma igreja, o mesmo sino, o mesmo relógio parado no mesmo meio-dia de sempre, a mesma falta do que fazer, a mesma pobreza, o mesmo abandono” (p. 22).  Todos os moradores são retirados, por ordens superiores, mas um velho decide “daqui não arredo o pé” e o cachorro da família, em solidariedade, também, toma a decisão “eu daqui não arredo as patas”, [...] restam um velho e um cachorro, únicas testemunhas do fim do mundo, e os dois não arredam nem os pés nem as patas. (p.79). Essa resistência do velho e do cachorro transforma a casinha simples em “Área de Relevante Interesse Nacional” (p.12), com pedido de reforço para a desocupação, até que o advogado dos direitos humanos, para alívio dos soldados, impetra um habeas-corpus. 

Cada conto contém estórias com começo, meio e fim, que se conectam com as demais por meio de algum acontecimento, dos personagens e/ou do cenário, muitas vezes os fatos são apresentados de forma invertida.  São muitos os personagens, alguns aparecem em mais de um conto, outros apenas uma vez. Os principais personagens são:  o velho, o cachorro e o menino, mas outros se destacam, como:  o padre, a moça da boate, a trapezista Ludimila; o advogado do prefeito, o homenzinho triste e a noiva fantasma. 

A vida continua na cidade nova, mas com o passar do tempo, os moradores percebem que, apesar de ser cópia fiel da cidade velha, com os mesmos pés de manga, o mesmo descascado das casas, o mesmo relógio da praça parado no mesmo meio-dia de sempre, apenas parece ser igual. As mangueiras não dão frutos, os passarinhos foram embora, as pipas não voam como deviam, faltam as marcas feitas nos troncos das mangueiras, a noiva fantasma não volta a aparecer, o doido foi embora, depois de avisar a toda a cidade que “o mundo vai acabar em água” e até o beijo tem sabor diferente, “E por não reconhecendo o cenário, quase não se reconhecem personagens da própria história [...] (p.50). Um morador enlouqueceu, muito rápido, e pulou da torre da igreja, até que poderia voltar batendo asas inexistentes, perfazendo a santíssima trindade doido-fantasma-passarinho. 

No último conto, a hidrelétrica está vazia, por causa da longa seca, as pessoas começam a retornar para  a “cidade velha” e tudo volta ao começo, com poucas diferenças. O “menino” agora está velho, o cachorro, que de tanto ficar debaixo d’água, só consegue beber água e com “as patas desaprendidas do em terra do firma pisar-se” (p.77). O  menino é o narrador dos fatos, desde a remoção por ordens das autoridades, até o retorno à cidade velha, anos e anos depois, de forma voluntária, quando acaba toda a água da hidrelétrica e ele é “o mais velho entre os velhos” (p.75). 

Em entrevista a L&PM Editores, o autor fala que o ponto de partida do livro foi um conto, com base na lembrança de uma pequena cidade, Itueta, que foi inundada para a construção de uma usina, situação corriqueira no Brasil. Porém, a obra não é uma narrativa baseada em situações reais, nem é autobiográfico, como escritor tem liberdade para inventar, contar mentiras, sem compromisso com a verdade. Tal situação não ocorre com o jornalismo, onde existe a obrigação de narrar fatos tal como aconteceram; atividade que lhe proporcionou criar um grande repositório de histórias, realidades que ele não conheceria se não fosse jornalista.  https://www.facebook.com/LePMEditores/videos/1041265293298277.

O livro tem uma prosa leve, com traços de humor, embora contenha uma crítica bastante contundente, que permite a reflexão sobre questões ambientais, políticas e sociais. Retrata a forma como as pessoas são deslocadas, abandonando suas histórias, e suas memórias, sem deixar transparecer tristeza e revolta. Apenas o velho e o cachorro decidem resistir, mas de forma pacífica. Porém, a estória seria outra se os moradores tivessem reagido, entrado em confronto com polícia e serem assassinados, mas assim não aconteceu, se não essa estória não teria sido contada.

Gostei muito do livro, recomendo a leitura.


 

    


terça-feira, 20 de agosto de 2024

Alliss at the Fire ou É a Ales

                                                  Foto: Noah Silliman 

JON FOSSE nasceu em 1959 na costa oeste da Noruega e é considerado um dos grandes autores de sua geração, com uma obra que inclui prosa, poesia, ensaios, contos, livros infantis e peças teatrais. Sua estreia literária se dá em 1981, com a publicação do conto "Han" em um jornal estudantil. Dois anos mais tarde, lança Raudt, svart, seu primeiro romance. Seus livros já foram traduzidos para mais de cinquenta idiomas. Em 2023, recebeu o prêmio Nobel de literatura ( Companhia das Letras).

Na juventude era ateu e comunista, pois, acredita que naquele tempo o artista só tinha essa forma politica de existir no mundo. Na maturidade, após sérios problemas com álcool, se converteu ao catolicismo, frequentando inclusive comunidades quackers. Professor de escrita criativa, foi professor do proeminente escritor Karl Ove Knausgard.

Neste breve romance ambientado nos fiordes noruegueses, a narrativa se inicia em 2002, quando observamos Signe, na casa denomina "antiga casa" elucubrar sobre o desaparecimento de seu marido, Asle. Nesse devaneio, Signe vê a si mesma, no passado, olhando pela janela a espera de seu companheiro que saiu em um dia de clima adverso para navegar em seu pequeno barco nas proximidades de um fiorde. Seus pensamentos e memórias nos apresentam um pouco de sua vida com Asle e também nos conduzem a uma viagem por gerações que habitaram aquela mesma casa.

O romance nos permite transitar entre a mente de Signe e Asle e também dispõe de um narrador onisciente. A obra raramente inclui pontuação, desse modo os parágrafos se estendem por vezes em diversas páginas, ampliando a sensação de imersão na mente dos personagens.

Asle, nos é revelado, desapareceu naquela visita ao fiorde, em 1979. 

A medida que o romance se desenvolve o leitor é levado através das mentes de Signe e Asle, pela qual é possível percorrer um viagem geracional que remonta os ancestrais de Asle, até sua trisavó, Ales, no ano de 1897, quando um menino, seu parente distante, também de nome nome Asle, desapareceu nas águas geladas do fiorde, aos sete anos de idade. Essa heterogeneidade temporal, somada ao efeito reflexo de duas pessoas de mesmo nome e mesma sina em uma família, causam um efeito hipnótico na trama, evocando a presença do passado no presente e ampliando a sensação de conexão entre o mundo dos mortos e o mundo do vivos.

Nesse tocante, é relevante mencionar que JON FOSSE teve como inspiração para o livro o seguinte soneto 18 de Shakespeare do qual se destaca : Enquanto o homem possa respirar ou os olhos possam ver, viva este canto dar-te a vida é o seu dever. Depreende-se, portanto, que enquanto houver memória, enquanto houve lembrança haverá existência.

Por fim, se destaca a construção experimental não somente pelo entrelaçamento de histórias em momentos históricos distintos, mas também pela escolha da linguagem original do romance, todo ele construído em nynorky ou neonoruegues um dos dois idiomas oficiais da Noruega, o que se presume conferiu naturalidade aos diálogos, especialmente entre o casal. A prosa de Fosse não se propõe a dar soluções ou catarses. Trata-se de um livro que transita entre os espelhamentos geracionais e as lembranças criando uma atmosférica quase onírica na qual os personagens podem não estar dividindo o mesmo tempo , mas dividem o mesmo espaço, especialmente o mar esse sim,  é história. 

 Por fim, é possível ainda estabelecer uma conexão entre a obra de Fosse e o conto a Terceira Margem do Rio de Guimarães Rosa, assim como na obra de Fosse a aparente simplicidade da trama guarda um complexidade metafísica e existência que pode ter relação com o que exprime o conto de Rosa, no qual as  margens do rio simbolizam a vida visível, terrena, cotidiana. A terceira margem seria aquela que não é vista, que sai do cotidiano, do lógico, é a transcendência diante do dado, do rotineiro. Portanto, o fiorde seria uma especie de paisagem, palco metafísico que guarda os segredos entre a vida e a morte.

Leitura desafiadora mas que revela surpresas!

sábado, 23 de março de 2024

Oração para desaparecer (Socorro Acioli, 2023)

 

por Daniela

Oração para desaparecer é o segundo romance da escritora cearense Socorro Acioli. A autora é jornalista e doutora em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), é professora e coordenadora da especialização em escrita e criação da Universidade de Fortaleza (Unifor). Tem mais de vinte livros publicados, entre eles ‘Ela tem olhos de céu’, que recebeu o prêmio Jabuti de literatura infantil; a coletânea de poemas Takimadalar, as ilhas invisíveis; e os romances A cabeça do santo (que ganhou edições na Inglaterra, Estados Unidos, França, México e Itália) e Oração para Desaparecer.

 Socorro soube da história da igreja soterrada em Almofala, Ceará, por uma amiga, em 2015, e começou a procurar mais informações.

“Foi quando achei uma crônica de Carlos Drummond de Andrade no Correio da Manhã de 17 de novembro de 1946. Ele pedia que sábios, poetas, artistas prestassem atenção à igrejinha de Almofala. E contava a história da Labareda, dos Tremembés, da disputa pela santa. E me deu de presente Joana Camelo, a prostituta que jogou um tamanco na cabeça do padre. Depois disso, eu decidi atender ao pedido do Drummond, tantos anos depois. Recebi Joana Camelo de suas mãos. Há uma Almofala no Brasil, sete Almofalas em Portugal. Comecei uma pesquisa intensa, com várias visitas à igreja, às casas de cura dos pajés Tremembés, ganhei um colar de proteção, fui ao rio ver cavalos marinhos, conheci uma das Almofalas portuguesas e dediquei sete anos muito felizes ao ‘Oração para desaparecer’. Escrevi três versões, joguei duas no lixo. A terceira é essa, que agora chega aos leitores, resultado da imensa paz de viver dentro deste livro de 2015 a 2023.” (Estado de Minas, out 2023)

A igreja de Almofala completou 300 anos de história em 2012.  Durante o século XVIII, com os primeiros desbravadores, a Igreja se fixou no território cearense para o trabalho de catequese, antecedendo o poder civil. Vários religiosos foram proprietários de sesmarias e  o território cearense foi pontuado por ermidas, capelas, aldeamentos pequenos e efêmeros como no caso de Almofala. A província de Almofala (Almo hala, do árabe, lugar de permanência temporária), segundo registros do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IPHAN, 2013), tem sua origem ligada à Carta Régia de 8 de janeiro de 1697, que determinava ao governador do Maranhão a doação por Sesmarias, de todas as terras necessárias aos índios Tremembés. Até 1696 o clima era de grande tensão entre os Tremembés, índios que habitavam a região, e os portugueses. O Pe. Assenso Gago, da Companhia de Jesus, mediou essa situação de tensão ao escrever ao Rei de Portugal mostrando-lhe a conveniência de aldear os Tremembés, entregando-lhes sesmarias de terras entre o rio Aracatymirim e do Timonha, atual Almofala. Sua majestade, por meio da Carta Régia 1697 respondeu à solicitação do jesuíta, concedendo uma légua de terra aos Tremembé, bem como aos índios do Ceará Grande, Pernambuco, Paraíba. Ordenou ao governador do Maranhão que não importunasse esses índios e nem os apartassem dos lugares por eles escolhidos para viverem. Inicialmente, bem próxima ao mar e ao rio Aracati-mirim, uma capela de taipa e coberta de palha foram erguidas para que fosse colocado início às atividades de educação religiosa. No início do século XVIII, nos anos de 1712 a 1758, no mesmo local da igreja provisória, houve a construção da igreja já em alvenaria com uma mescla de técnicas eruditas e populares. A presença da igreja no centro mostra como o distrito de Almofala cresceu ao seu redor (IPHAN, 2013). Em 1897, uma duna começou a se deslocar e foi engolindo a igreja e o aldeamento, inclusive as terras dos tremembés. A igreja ficou soterrada até 1943, quando a duna começou a se mover e a população local começou a voltar e desenterrar a igreja.

Nas palavras do Drummond, em 1946:

“Diante de algumas fotografias pertencentes ao arquivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, assalta-me o desejo de convocar os poetas, os sociólogos, os pintores, os romancistas e os músicos do Brasil e pedir-lhes que vejam, mas vejam longamente a igreja de Almofala.

Almofala, como Tróia, não é:foi. Foi um aldeamento de índios tremembés, a mais de cem quilômetros a oeste de Fortaleza. Em 1608 estabeleciam-se os jesuítas nas praias cearenses, começando a catequizar os silvícolas chefiados por Juripariguaçu, ou seja, o grande Diabo. Esse nome talvez influísse na fama que vieram a ter os tremembés: índios feros e turbulentos, afirma Berredo; mas o padre Antonio Vieira e, modernamente, Paulino Nogueira consideram-nos pacíficos e morigerados. O certo é que foram atraídos, evangelizados, atacados, expoliados e exterminados, segundo a sorte habitual do nosso gentio, e como calhava nessa ou naquela conjuntura. Hoje restam poucos e melancólicos tremembés que como a maioria de seus irmãos brasileiros, de sangue puro ou mestiço, não tem terras. Nem igreja porque a deles, Nossa Senhora da Conceição de Almofala, a areia comeu.

(...) Aqui está uma fotografia da DPHAN: meia dúzia de ‘cabras’ a cavalo, dez ou doze mulheres de saia arrastando o chão, guarda-sóis abertos, em torno de um monte de areia que obstrui a entrada da igreja e lhe devorou parte dos fundos; por um óculo aberto sobre a porta principal, a fotografia é branca: o céu do Ceará, num dia remoto. Outra fotografia, esta de há poucos anos tirada por um representante da repartição, o pinto Rescala, mostra a fachada inteira, liberta do areial, e o mesmo óculo deixa passar o mesmo céu, prolongando a visão através de regiões desoladas. Os caboclos conseguiram, após  37 anos, remover a duna imensa, mas o templo está ermo e inútil, presidindo a solidão do lugar. E bem em frente da igreja, a uns trezentos metros (onde outrora foi uma colina) outras fotografias mostram o espantoso, o trágico cemitério, que se diria um desses quadro de Yves Tanguy onde estão dispersas formas incoerentes numa perspectiva rasa e infinita. Ou certas composições angustiosas dos surrealistas. Ou uma cidade que o terremoto varresse. Ou os vestígios, que não sabemos interpretar, de alguma civilização sepultada há muito tempo, e que antecipa em nós o frio de nossa própria destruição. Mas não estamos no Egito: estamos ali no Ceará, e em 1898 o padre Antonio Tomás, autor de um soneto bastante conhecido, celebrava a derradeira missa na igreja atacada pelo vento.

Ele nos conta o episódio. Saíra de Acaraú para salvar as imagens que cumpria remover com urgência: o morro de areia crescia atrás da igreja e várias casas tinham sido engulidas. Os moradores demoliam suas moradias e iam reedificá-las em paragens mais abrigadas. Rui o teto da capela. O padre resolve oficiar uma última vez, aproveitando a madrugada, que é quando o vento sopra mais brando. Reúne toda a população pobre da vila e dos arredores. Cerca de três mil pessoas, tomadas de assombro, penetram a custo na igreja ou enchem o adro. Padre Antonio Tomás, ao Evangelho, explica ao povo que é preciso levar as imagens até a capela do Tanque do Meio a dez quilômetros de Almofala: a igreja está perdida. Vamos em procissão, diz ele. E continua a missa, mas ninguém a ouve. Os fiéis voltam-se para as imagens de que irão ficar privados, e um côro de gemidos, de suspiros, de soluços cobre a voz do padre. As mulheres entoam um bendito a Senhora da Conceição, em quadras improvisadas e os homens, batendo no peito, secundam. O eco vai perder-se ao mato longe.

A situação torna-se grave quando chega a notícia de que, por trás do morro de areia, uns ‘cabras’ armados se dispõem a obstar a retirada das imagens. O padre manda chamar os chefes do movimento, explica-lhes com doçura que ou as imagens são removidas ou tudo afunda na areia; eles continuam obstinados. Nisso Joana Camelo, uma mulher do povo, arrebata a imagem de Nossa Senhora do Rosário e saiu triunfante com ela. Padre Tomás grita aos mais próximos que a detenham. Ninguém o ouve. Então o padre corre no encalço da fugitiva, lutam os dois, toma-lhe das mãos a imagem. Os chefes da insurreição procuram defender Joana, dois homens ajudam o vigário, estabelece-se a confusão; ‘fechou-se o tempo’, escreve o padre Tomás; e triunfou o partido deste, depois de muita cabeça quebrada. O padre manda o subdelegado soltar os presos, como convêm, e todos arrependidos e confortados, iniciam a marcha para o Tanque do Meio, onde o vento não castigará mais os santos.

E a igreja desapareceu na areia, como desapareceram as casas, o cajueiral, a aldeia inteira dos tremembés. De 1905 é a sede do novo distrito, com duas casinhas para começar Itarena. Almofala ficou sendo uma lembrança.”

O livro Oração para Desaparecer é dividido em 3 partes. Na primeira delas, ‘Você trouxe todas as palavras’, uma jovem mulher narra, em primeira pessoa, como apareceu e foi resgatada por um casal de idosos em uma aldeia portuguesa chamada Almofala, perto de Caldas de Rainha. Chamada pelo casal e seus parentes de ‘ressurrecta’, saiu do buraco sem memória, sem cabelo, pelada, vendo pessoas mortas e falando português do Brasil. Está contando os fatos de alguns meses antes a um homem, Félix Ventura, vendedor de passados, para que ele crie documentos e invente uma história de vida evidenciada, já que ela nunca se lembrou de seu passado. Cida, o nome com que foi batizada por sua família portuguesa, precisa  de um passado produzido para poder viver seu futuro em Moçambique com Jorge Momade,  por quem se apaixonou. Anos depois, ao encontrar uma imagem quebrada de Nossa Senhora da Conceição na casa da família que a abrigara, ela tem um sonho e se lembra de onde veio e seu nome verdadeiro: Joana, de Almofala.

“ A vida é feita de palavras, elas explicam e fazem nascer e morrer. Se ninguém pronucia  um nome este ser está morto, mesmo que respire e leve um coração batendo no peito. Estar vivo é ser palavra na boca de alguém. Não lembrar delas me condenou ao abismo, não saber o nome das pessoas, do meu lugar, a narrativa da minha vida, tudo o que somos é história e história se conta com palavras. Por isso, bastou um bilhete. Lembrei-me da missa: “Mas dizei uma só palavra e serei salvo.” Fui salva por apenas duas, o nome da cidade de onde vim e meu nome.” (p.111)

Na parte dois, “Os ossos dela não estão lá”, quem narra é o biólogo Miguel, contando a Jorge sua história em Almofala, Ceará, sua pesquisa com cavalos marinhos, seu contato com os tremembés e seu sofrimento de 49 anos sem saber o que foi feito da mulher que amava, Joana Camelo. Que desapareceu na areia da igreja soterrada.

Na parte três, “A língua de fogo avisou”, é novamente Joana que  narra, em primeira pessoa, sua volta à Almofala brasileira e a sua família  tremembés, que a acolheram quando foi abandonada pela mãe na igreja de Almofala. Traz a santa quebrada de volta aos seus donos, reencontra Miguel e suas memórias.

“Só posso fazer uma coisa agora: renascer mais uma vez. Não vou parar de renascer nunca e acho que é assim com todos nós.”

O romance é bastante envolvente, com texto limpo, fluente e com boas frases e citações. A autora homenageia a língua portuguesa, que é fio conector de todos os personagens. Faz homenagens também a outros autores, como ao José Eduardo Agualusa, emprestando seu personagem do “Vendedor de Passados”, o angolano Félix Ventura. E também ao José Saramago, com a menção ao Livro dos Itinerários e à epígrafe do último livro do autor,  ‘A Viagem do Elefante” (“Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”). Ainda, é clara a influência do realismo mágico sul-americano, como Garcia-Márquez, no tom do romance e escolhas do enredo.

No entanto, fiquei um pouco incomodada com alguns recursos narrativos que a autora empregou, que a meu ver, empobreceram um pouco o resultado. Gostei muito do início do livro, da descrição inicial do ‘parto’ da terra, da confusão mental e desespero de não se saber quem é, porque está ali, o que aconteceu. Mas a entrada do personagem do Félix Ventura já me causou estranheza. Qual o sentido daquele personagem? Mesmo Jorge e Miguel me pareceram acessórios à trama, o livro poderia ter sido construído sem a presença deles.  Também não convence, mesmo dentro de uma história de realismo anímico, o gap de 49 anos, que para Joana foram sete. Ela teria ficado 42 anos com a vida suspensa, antes de aparecer na outra Almofala? A diferença da passagem do tempo de foram diferente da realidade pareceu apenas um artifício para que ela não pudesse resgatar a relação amorosa com Miguel.  O resgate da história da igreja de Almofala e da religiosidade dos tremembés me pareceu a verdadeira riqueza do livro.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Resenha de "A mulher que escreveu a bíblia", de Moacyr Scliar

 A Mulher que Escreveu a Bíblia (Brasil) — 2007

Autor: Moacyr Scliar

Editora: Companhia de Bolso

168 páginas




Sobre o autor (fonte wikipedia e outras)

Moacyr Scliar, nasceu em Porto Alegre, em 1937, e faleceu na mesma cidade, em 2011. Filho de imigrantes judeus do antigo Império Russo, Scliar formou-se em medicina e atuou como médico sanitarista e professor universitário. 

Além disso, foi escritor. Publicou mais de 70 livros e ganhou muitos prêmios literários, entre eles, quatro Jabutis, incluindo A Mulher que escreveu a Bíblia (prêmio Jabuti de Literatura, categoria romance, de 2000). 

Suas obras foram traduzidas para doze idiomas. 

Scliar foi o sétimo ocupante da cadeira 31 da Academia Brasileira de Letras. 


Sobre a obra 

A mulher que escreveu a Bíblia é uma sátira muito criativa e bem contada sobre o processo de redação da Bíblia se ela fosse escrita por uma mulher nos tempos de Salomão. 

No prólogo, o autor narra o encontro de uma mulher “feia” com um terapeuta de vidas passadas charlatão. A mulher dizia-se infeliz nos relacionamentos, em particular num relacionamento que teve com um funcionário da fazenda de seu pai que a troca por sua irmã. Após algumas sessões, a mulher desaparece e deixa uma carta ao terapeuta em que se diz agradecida e curada após descobrir que, no século X antes de Cristo, foi uma das setecentas esposas do rei Salomão - a mais feia de todas, mas a única capaz de ler e escrever. 

O romance, então, trata da história dessa mulher (sem nome) que, por ironia do destino, acaba encontrando-se em Jerusalém, casada com o mais poderoso dos soberanos da época. 

A menina, primogênita da família de um rico criador de cabras, era tão inteligente quanto feia. Vivia reclusa junto às montanhas e às cabras da fazenda de seu pai e nutria uma paixão não correspondida por um pastorzinho, que fora expulso daquela região ao engravidar sua irmã mais nova. 

Ciente da inteligência da menina, o escriba de seu pai (que também era analfabeto) decidiu ensiná-la a escrever.

Um dia, seu pai recebe a visita de um mensageiro do rei Salomão que determina que o fazendeiro conceda sua filha primogênita a contrair matrimônio com o rei em troca do estreitamento de laços políticos.

A menina parte para o templo e se une às outras 700 esposas do rei. Ao descobrir que sua mais nova esposa sabia escrever e percebendo a astúcia da menina, Salomão pede que ela se junte ao grupo de escribas do reino, que havia sido incumbido de escrever a história do povo de Israel, mas ainda não havia conseguido concluir o feito.

Ela, então, escreve o conjunto de livros que hoje conheceríamos como o antigo testamento bíblico. Seus textos são revisados constantemente pelos escribas, que acabam realizando edições exageradas. A obra seria apresentada à rainha de Sabá que estava em visita ao reino de Salomão, quando sofre um atentado e é parcialmente incinerada. O meliante era justamente o pastorzinho que ela conhecia da fazenda do seu pai, que, expulso, encontrou abrigo junto a um grupo de missionários daquela região. 

A prosa de Scliar é muito interessante porque, além de ser muito leve, traz aspectos relacionados ao fluxo de consciência da protagonista, o que abre espaço para a inserção de palavras chulas e reflexões muito particulares e divertidas. Nesse sentido, a obra é, claramente, é um texto feminista, uma apologia à inteligência e sagacidade do feminino.

A despeito do que possa ser imaginado ao lermos o título, a obra em si, traz muito pouco de contexto religioso, dogmático ou doutrinário – chega a ser quase o contrário! Apesar disso, percebe-se que o autor é um grande conhecedor dos textos bíblicos enquanto material literário, e, em certos trechos, ter o conhecimento prévio das histórias mencionadas auxiliaria na compreensão de certas ironias e referências trazidas pelo autor. 

A mulher que escreveu a bíblia é, antes de tudo, uma obra fantasiosa, irônica e cômica que surpreende muito pela forma e é uma excelente introdução aos textos de Scliar. 


Cristiane Vianna Rauen

06 de fevereiro de 2024