terça-feira, 13 de dezembro de 2022

O Homem que sabia javanês - Lima Barreto


Por Cristiane Vianna Rauen

A escolha desse conto não poderia ser mais oportuna, pois, este ano marca o centenário da morte de Afonso Henriques de Lima Barreto, jornalista e escritor brasileiro, com vasta produção literária no início do século XX.

Nascido em 1881, em Laranjeiras, no Rio de Janeiro, Lima Barreto era neto de escravos de ambos os lados e presenciou, aos 7 anos, a abolição da escravatura com seu pai, no Paço Imperial.

Por ser afilhado de visconde, obteve boas oportunidades de estudo, como o Colégio Pedro II e a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, onde cursou engenharia. Em 1904, assumiu um posto de trabalho no Ministério da Guerra, onde permaneceu até sua aposentadoria. Em paralelo ao cargo burocrático, exerceu a função de jornalista, e foi nesse meio que deu início a sua produção literária.

Sua obra de estreia, em 1909, foi “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, que, em tom autobiográfico, retrata a vida de um jovem mulato que sofre preconceitos raciais. Em 1915, publicou sua obra mais conhecida “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”, que descreve a vida política brasileira após a Proclamação da República, por meio da visão de um funcionário público ultranacionalista.

Barreto sempre se apresentou como escritor negro e sempre escreveu para as massas. Em vários momentos recebeu críticas por eventual descuido com o português culto em sua linguagem escrita, no entanto, essa foi uma reconhecida estratégia do autor para chegar ao público mais amplo. 

Sua obra ganhou maior reconhecimento após sua morte, quando o jornalista Chico Barbosa iniciou, em 1946, um projeto de edição das obras completas de Lima Barreto. A coleção foi lançada pela Editora Brasiliense, sob o comando do historiador Caio Prado Júnior, com prefácios que contaram com nomes influentes à época, como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.

Nesse período, Lima Barreto foi reconhecido como precursor de grandes obras populares e críticas duras à política e à burguesia brasileira. Muitos analistas o identificavam com um escritor ressentido de sua origem e raça.  

E foi assim que a obra de Lima Barreto passou a ser reconhecida, a partir da edição de suas obras, na década de 1950: “frequentemente associada a uma percepção da realidade social brasileira vista de baixo para cima, ‘julgando os poderosos pela indignação dos injustiçados’, como sugeriu o historiador Nicolau Sevcenko” (Piauí, Ed. 194, nov. 2022).

A tentativa de editar as obras de Barreto não foi tarefa fácil já que muitas editoras do pós-guerra as viam um “mau negócio”, principalmente devido a seu tom anti-americano, muito focado em questões raciais e, por vezes, pró revolução bolchevique.

Lima Barreto foi retratado, durante muitos anos após a reedição de suas obras, como um “mulato ressentido”. No entanto, uma geração de novos escritores buscou, a partir dos anos 1980, reinterpretar as obras de Barreto sob um diferente prisma: não o do mulato ressentido, mas o do “típico brasileiro submetido a fortíssimas pressões raciais” (Piauí, Ed. 194, nov. 2022).

A mais recente biografia dedicada a Lima Barreto, da historiadora Lilia Schwarcz (“Lima Barreto: Triste Visionário”, de 2017) também surge como contraponto à visão dos historiadores de Barreto no pós-guerra. Ao invés de um triste e ressentido escritor, Lima Barreto retratado como um visionário, em particular por seu pioneirismo em inserir a pauta antirracista em textos do começo do século XX e de seu reconhecido diálogo e preferência pelas questões relacionadas ao público não erudito.

Não à toa, Lima Barreto foi o autor homenageado na Flip de 2017 e, neste ano, tivemos como homenageada a primeira autora negra a publicar uma obra no Brasil, Maria Firmina dos Reis, com sua “Úrsula”, de 1859. 

Sobre o conto

Publicado pela primeira vez no jornal “Gazeta da Tarde” do Rio de Janeiro, em 28 de abril de 1911, e posteriormente incluído na coletânea “O homem que sabia javanês e outros contos”, o conto traz a história narrada por Castelo ao amigo Castro do golpe que ele aplicou num barão que queria aprender javanês. O golpe acabou rendendo a Castelo um cargo público diplomático e Castelo narra o feito com grande orgulho.

O Barão em questão era o Barão de Jacuecanga, que herdara do avô um livro em javanês, que, dizia-se, trazia fortuna e prosperidade a quem o lesse. O livro foi sendo passado de pai para filho, até que chegara o momento da velhice do Barão e do seu interesse em lê-lo para não interromper o ciclo de prosperidade da família. O Barão, então, coloca um anúncio no jornal em busca de um professor de javanês que pudesse auxiliá-lo na empreitada.

Eis que Castelo lê o anúncio e, apesar de não saber javanês e diante da suposição de que não haveria grandes concorrentes ao posto, identifica a oportunidade de ganhar algo com isso, já que estava em completa miséria naquele momento.

A história é narrada de maneira divertida, irônica e debochada. Mostra como Castelo consegue, com destreza e um pouco de sorte, convencer todos ao redor do Barão de que sabia javanês de fato, incluindo o seu genro, desembargador muito bem relacionado, que, admirado pelo javanês de Castelo, o recomenda ao Visconde de Caruru para um posto na Secretaria dos Estrangeiros.

A partir daí, o reconhecimento e a fama de Castelo só cresceram, a ponto de escrever colunas em jornais sobre a literatura javanesa antiga e moderna, e ser indicado a representar o Brasil num congresso internacional de linguística. No retorno do congresso, foi recebido no cais do porto com festa pelas massas e convidado a almoçar com o presidente da república.

No diálogo final de Castelo e Castro, Castelo se mostra bastante satisfeito com a posição de Consul em Havana, onde morou por mais de 6 anos, mas indaga ironicamente ao amigo que, caso não estivesse feliz com tudo o que havia conquistado, poderia tentar a carreira de “bacteriologista eminente”. 

Esse divertido conto de Lima Barreto traz uma crítica importante a uma sociedade brasileira supersticiosa e preconceituosa, formada por intelectuais oportunistas, por uma burocracia medíocre e por anti-heróis, que não têm vergonha de se vangloriar da desonestidade. 

Acima de tudo, “O homem que sabia javanês” é uma crítica à elite brasileira e, a partir desse conto, Lima Barreto expressa toda a sua indignação aos inúmeros “professores de javanês” que o Brasil já indicou a representações internacionais. Postos esses aos quais Barreto jamais fora indicado, tendo, fatidicamente, terminado seus dias num manicômio.  

“De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”, Rui Barbosa, 1914.


terça-feira, 8 de novembro de 2022

A vergonha - Annie Ernaux

Por Christiane Girard



    A escrita como forma do vivido, vida, obra e singularidade.   

Para compreender melhor a obra de Ernaux é necessário pensá-la junto com a história de vida da autora. É a partir desse cenário que a obra se constrói. A obra é um produto dessa realidade e permite uma interpretação sem fim do que foi vivido. Numa entrevista, a autora expressa essa ideia de maneira precisa: “Eu escrevo a vida e vivo a escrita”.

Annie Ernaux nasceu em 1940, em Yvetot, cidade localizada na região da Normandie (França), durante a segunda guerra, filha única de um casal de origem camponesa, que quando jovens foram operários e depois comerciantes. O que é valorizado por eles nessa última atividade é o fato de não terem chefe. Faz parte de um desejo de ascensão social.

Eles têm um comércio no bairro, ou seja, seus clientes são seus vizinhos. Acoplado ao café eles têm uma mercearia. O café é frequentado entre outros clientes pelos trabalhadores da construção civil, pelos moradores mais solitários e pelos alcoólatras do bairro. Vivem num apartamento sem conforto que é colado ao café. Não há banheiro, não há chuveiro. Assim, mesmo, é o mundo da Annie, seu mundo não questionado até que encontra o mundo da escola.

Sendo filha única, foi possível para os pais que ela frequentasse a escola privada religiosa da cidade. Há uma possibilidade de obter bolsas no quadro das obras sociais educativas, oportunidade que ela pôde aproveitar já que era excelente aluna e sua mãe era uma católica fervorosa. Na grande maioria lá vão os filhos da burguesia da província.

Oficialmente, a escola pública não oferece ensino religioso, de fato, com sua forma de escrever (escrita realista) ela revela ambiguidade da realidade da democracia francesa daquela época: os ricos e as pessoas de renome se socializam no mesmo espaço. A convivência interclasse não é favorecida. É difícil depois de ter lido “a distinção" de Bourdieu deduzir outra leitura. O que Annie vai mostrar é o caminho para reencontrar a emoção, a sensação, a experiência do que foi vivido (por exemplo, a vergonha) produto de um contexto e de uma história singular. Essa forma de escrever é perturbadora porque não permite contestar os fatos descritos já que representam experiências, representam a própria vida.

Na escola, rapidamente, ela vai perceber seu lugar no meio das outras alunas: o lugar das mal-educadas, no sentido próprio da expressão. Aquelas alunas que não dispõem de capital cultural. Não conhecem as regras e os costumes de classe. Os padres organizam as confissões semanais e lhe parece que apenas ela é suja e cometeu pecados graves, apenas ela parece ser agitada pelas emoções sexuais da puberdade (ver neurose de classe). Nas camadas populares as crianças amadurecem mais cedo. Na burguesia parecem protegidas mais tempo do contato com a realidade.

Annie é a melhor aluna da sala durante toda a escolaridade. Ler, escrever sempre fará parte de sua vida, o que lhe permitirá cursar letras na universidade. Até agora é interessante notar que a vida dela que estou resumindo é aquela descrita nas obras. Os livros são historicidade de seu percurso. Ela decide ser professora e passa brilhantemente nos concursos necessários. Assim, mesmo no coração permanece a certeza de não estar no lugar previsto por alguém como ela. A noção de trânsfuga de classe se enrijece.

Viver da escrita é para ela durante muito tempo impensável. Ela não pertence ao mundo de quem escreve. Por essa razão, seu trabalho de professora lhe permite escrever sem a tensão de ter uma atividade reservada aos letrados. Ela começa a escrever aos 19 anos e se casa com um jovem de família da burguesia da província com quem teve dois filhos. Durante esses anos de vida familiar ela interrompe a escrita, mas diz saber que quando voltar a escrever com seu estilo de escrita que poderíamos comparar ao “cinema realité”(documentário ao vivo), ela provocará uma separação. Efetivamente, ela faz o livro e se separa do marido, mas nunca mais deixará de escrever.

 A problemática da obra

Sua problemática é a consciência de estar morando em dois mundos! Mas, sobretudo, o preço que se paga por isso. Os lugares de origem e a socialização neles não podem ser arrancados. É uma raiz que faz parte da árvore que somos. Deve-se acrescentar a esse fato que existe um sentimento ambivalente de traição à família de origem nos casos de trânsfugas de classe. Uma ambivalência que se expressa por não poder fugir do peso de ter vergonha de seus pais quando se ascende a uma classe superior. Eles não conhecem os códigos, aparecem como vulneráveis e, consequentemente, não protegem seus filhos, pelo contrário, os desnudam. É uma violência.

Entre outros aspectos a vergonha de ter vergonha de quem amamos. Uma violência de classe lida além do marxismo. Vivida, observada, a escrita de Annie Ernaux é a matéria dessa violência. Sua escrita é concreta, sem florear, sem bálsamo para acalmar. Toda a sua obra expressa essa tensão. Não se trata de uma obra intimista. É uma análise preciosa das dinâmicas sociais coletivas. É uma obra onde o social é responsabilizado, não culpabilizado. A autora não conta sua história pessoal, ela compartilha o mundo que viveu de 1940 até os dias atuais a partir do seu lugar. A esse respeito sugere-se a leitura do livro “Os anos”.

Ela compartilha por meio da sua obra a leitura dos valores, a cultura letrada e popular, os acontecimentos do momento e é impossível não interpelar o leitor, sobretudo quando as gerações são próximas. Por exemplo, ela explica que quando está escrevendo um dos seus livros está acontecendo a guerra em Sarajevo. Mesmo não sendo tema da obra, a autora não é indiferente a esse fato, que considera importante para compreender a época onde se escreve o texto.

Nos estudos de sociologia clínica percebe-se que muitas perturbações psíquicas têm origem social tal como a neurose de classe que se vivencia de diversas formas. Uma das manifestações é que os filhos são incentivados a galgar posições valorizadas, mas quando conseguem acabam afastando-se da família de origem, a mesma se distanciando igualmente por não possuir as regras do novo meio dos filhós. E os filhos passam a viver a dor de não pertencer por inteiro a nenhum dos grupos.

A obra de Annie Ernaux foi visitada pela sociologia clínica e o estudo foi muito precioso. Nesse campo dizemos que o indivíduo é produto de uma história da qual ele tenta ser Sujeito, produzindo por sua vez história. Isto significa que ser consciente de sua história é entender o que nos submete. Annie usa várias vezes a frase bíblica: a verdade te libertará. E ela busca sua verdade por meio da escrita.

A verdade da emoção em primeiro lugar e depois a palavra. É o que sentimos, a verdade da experiência do sentir. Por exemplo, quando a mãe de Annie diz “seu pai morreu”, o que nos faz captar a cena e vivenciá-la é o trecho em que a autora descreve a mãe apertando em suas mãos o pano de prato! Uma figura do desamparo. Algo familiar para suportar o estranho. Não é uma clínica do sujeito, é uma clínica do social. No caso citado, o pano de prato se reporta à convivência com o marido na cozinha, trata-se do marido, o companheiro com quem se compartilhava as refeições onde se vivia na cozinha, a convivência subtraída de repetente e o desamparo, o pano é apertado na mão.

A obra é grande: la place, la femme gelée, l’evenement, les armoires vides, passion simple, les années.... Como classificar uma obra tão singular? Considera-se que uma escrita realista tem sido uma opção. A autora não escreve romances, não há ficção, nem autobiografia. Mas, então, é literatura? Ela mesma diz: é sociologia, é história, é literatura. Felizmente ela não se importa mais, diz ela, com o purismo do campo. Ela sabe que é literatura viva e não poderia viver sem escrever.

Ela tem muitos detratores masculinos, as críticas são que ela escreve como os homens escrevem (?!) ou, outra crítica, consiste em acusá-la de colocar em cena uma personagem de “midinette” (adolescente atrasada) no livro “la passion simple”. O que ela responde, além do que já foi dito, é que sua maior alegria é quando um leitor diz que ela escreveu a história dele. Revela, também, o machismo atual. No entanto, agora que lhe foi atribuído o Prêmio Nobel de Literatura, o quanto é uma é literatura inovadora.

Gostaria de acrescentar duas linhas sobre a obra. A sua originalidade no estilo de escrita é uma crítica social na concepção de uma sociologia crítica e sociologia compreensiva (levar em conta o sentido que as pessoas dão a suas ações). Na sociologia clínica, já que a autora diz que suas obras são também obras sociológicas, tentamos evitar o perigo do vivido sem conceito e do conceito sem vida. Essa metodologia tende a dialetizar a relação entre a análise e a experiência evitando cometer um erro: estar no plano do vivido, como se ele tivesse seu sentido em si. 

O saber do homem não vem de seu interior, mas é uma ilusão empirista que assimila o real a percepção subjetiva do mesmo. Mergulhar no vivido permite produzir representações, ou seja, são expressões da relação imaginária que cada indivíduo tem com suas condições de existência. A análise dessas condições é indispensável para compreender o vivido. E é para guiar essa análise que a teoria é necessária. Os conceitos que nos parecem importantes na obra: o vivido, as experiências, o concreto, a historicidade.

O livro “A vergonha”

O estudo da vergonha foi e é um tema fecundo a estudar tanto na literatura como no campo das ciências sociais pelos múltiplos níveis de reflexão que permite. O livro começa com um quase crime presenciado pela narradora quando tinha doze anos. Seus pais são apresentados por ela do ponto de vista ideológico e social. Ela os situa economicamente, culturalmente e mostra a trajetória social deles. São percursos fiéis da história. Na relação de casal, a mãe parece ter autoridade e o pai seria mais submisso.

Entretanto, em um domingo de junho de 1952, o pai fora de si tenta matar a esposa. A filha (Annie Ernaux) descobre a cena e aterrorizada pede para parar. Nunca mais a cena será esquecida. Há um antes e um depois do ocorrido. O que foi descortinado é a realidade de seu mundo, no qual ela é testemunha e atriz. Ela vive a experiência e a compartilha. O “JE” (“eu” em português) da narrativa permite uma interação. Para o leitor é fundamental. Não está no exterior, mas sim na relação com a escritora. Parece que antes daquele domingo de junho de 1952 ela era criança, depois já está num outro momento de vida, mas a marca deixada é como uma cortina que foi aberta e que não pode ser fechada.

Talvez seja isso que nos toca: o impacto do medo e da violência na experiência real de uma vida e a literatura restituindo exatamente o que queima ainda.

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Tudo é rio - Carla Madeira


Por Maria Albeti

Tudo é Rio, livro de estreia da jornalista e publicitária mineira Carla Madeira, foi lançado, em 2014, pela editora independente Quixote+Do, de Belo Horizonte. Posteriormente, em fevereiro de 2022, ganhou nova edição pelo Grupo Editorial Record.  De acordo com a Lista Nielsen-PublishNews, que elabora a relação dos livros de ficção, de autores nacionais, mais vendidos, nas livrarias em todo o país, o livro Tudo é rio tem obtido excelentes colocações. Em março de 2022, ficou na nona colocação e em setembro último alcançou a segunda colocação. 

Carla Madeira entrou na literatura por meio da música, mais especificamente da Música Popular Brasileira (MPB). Começou a escrever para experimentar a musicalidade das palavras. Depois de uma pausa de 14 anos, após escrever o capítulo que foi colocado no início do livro (capítulo 3), escreveu durante oito meses, praticamente todos os dias. 

O livro tem capítulos curtos e linguagem simples que permitem uma leitura rápida. Principalmente nos capítulos em que aparece a prostituta Lucy, a autora não faz concessões, usa linguagem direta, sem subterfúgios, para descrever as cenas de sedução e sexo. Os diálogos são apresentados sem identificação específica, mesclando a voz da autora com a fala dos personagens. Não existe a forma tradicional de utilização do travessão (−), nem aspas (“”) como ocorre na maioria dos livros e/ou contos. Destaca-se um capítulo com uma única palavra “dor”, um recurso bastante interessante que possibilita ao leitor dar “asas” à imaginação.

O romance concentra-se em três personagens, que vivem em uma pequena cidade, localizada em qualquer lugar deste país: a puta Lucy, como ela prefere se identificar, e o casal formado por Dalva e Venâncio. Existem outras narrativas, secundárias, que se entrelaçam com a vida dos personagens centrais, mostrando acontecimentos que deixaram marcas na personalidade de cada um deles, influenciaram o comportamento e definiram seus destinos.

Assim, a autora caracteriza os personagens a partir daquelas narrativas, do ambiente familiar em que cada um deles foi criado, com suas alegrias, tristezas, rejeições e violência.  Todos esses aspectos moldaram a forma de sentir e agir desses personagens e maneira como se relacionam com as demais pessoas. 

Lucy é uma prostituta que se destaca pelo comportamento atrevido, despudorado e arrogante. Filha única, teve uma infância feliz, até perder pai e mãe, ao mesmo tempo. Passa a ser criada pela tia, que tem duas filhas, e em relação às quais se sente preterida. Nesse ambiente, nasce e cresce o sentimento de raiva e o rancor por tudo em que a tia acredita e, em consequência, o desejo de vingança. Descobre que pode usar seu corpo para executar sua vingança, a começar pela conquista do marido da tia. 

Segura do que quer e pode fazer com seu corpo, planeja sua despedida com o tio, quando são descobertos pela própria tia.  É expulsa de casa e vai residir em outra pequena cidade, onde sua fama já é conhecida. Assim consegue obter todas as regalias na Casa de Manu, onde vai morar e trabalhar. Decide se tornar prostituta, não por necessidade, mas por prazer, quer ser uma “puta feliz”.  

Lucy se orgulhava de gostar de ser puta, mas acima de tudo ela gostava de exercer o poder sobre os homens, muitos dos quais ela tripudiava, e sobre as mulheres, que ela humilhava. Esse comportamento deve estar relacionado ao sentimento de rejeição que sofria na casa da tia. 

Venâncio, também, filho único, vive em uma família marcada pela tirania e violência do pai, sente medo, vergonha, revolta e raiva. A mãe temendo que algo possa acontecer, entre pai e filho, prefere afastá-lo desse ambiente familiar conturbado. Fica morando com uma tia e retorna para a cidade, quando seu pai já se encontra moribundo. Mostra-se um rapaz trabalhador e responsável, mas sempre calado, distante e dono de uma tristeza profunda. 

Dalva vive em uma família alegre, com vários irmãos e irmãs, onde a música está sempre presente. Tem uma mãe compreensiva, acolhedora que consegue compreender os dilemas e as dificuldades não só da família, mas das pessoas que vivem ao seu redor. Dalva e Venâncio se apaixonam, se casam e passam a viver um em função do outro, em um clima de plena entrega e felicidade. Porém, sobre eles “Paira, monstruosa, a sombra do ciúme” (Caetano Veloso) 

Esse sentimento começou a se tornar mais forte quando Dalva engravidou e Venâncio viu, pela primeira vez, ela amamentar a criança. Sentiu-se roubado, traído e num rasgo de loucura pega a criança, joga longe e espanca Dalva. A partir desse momento, começa o inferno para os dois. Com a perda do filho e a violência de Venâncio se estabelece um muro entre eles. Continuam na mesma casa, mas nem ao menos se olham, não se acusam, impera o silêncio e o desprezo por parte de Dalva.  A autora explica o comportamento violento de Venâncio como resultado do seu relacionamento com o pai. Assinala que “[...] no fundo estamos presos à incapacidade de ser outra coisa diferente do que somos, do que a história da gente tramou” (p. 156)

Com o passar dos anos, Venâncio começa a frequentar a Casa de Manu e torna-se um enigma e, também, um desafio para Lucy, que não consegue tê-lo na cama. Acaba se apaixonando por ele, que depois de muitas negativas acaba cedendo e se torna seu parceiro por alguns dias. Lucy, apaixonada e grávida, começa a fazer planos de vida em comum com Venâncio. Porém, tudo acabou, também, com violência, sendo salva por Dalva, a quem ela muitas vezes tinha agredido, inclusive fisicamente. 

Nasce o filho de Venâncio e Lucy que ela entrega para Dalva criar. Essa criança traz vida nova para Dalva e para Venâncio, que, ainda de maneira tímida, começam a quebrar a barreira que existe entre eles. E nesse momento de renascimento, eis que surge a grande surpresa do livro, Vicente, o filho que Venâncio “jogou fora” está vivo. Dalva soube disso algumas semanas depois do que aconteceu, mas preferiu manter o filho com uma amiga de sua mãe, indo visitá-lo todos os dias.

E nesse momento, surge a questão: Dalva é a única entre os personagens centrais que teve uma família ajustada, foi criada em um ambiente amoroso e leve. Então, por que manteve esta situação? Por que não foi embora, morar com seus pais, levando a criança? Para castigar Venâncio?  Por que se martirizava dessa maneira? 

Parece que “Viver a ressureição do filho não foi suficiente para cancelar o que tinha sido posto em andamento. Dalva não sabia interromper a morte que se apossou dela. Continuou arrastando a corrente pesada e infeliz que prendia Venâncio e ela naquele inferno” (p.197).

O livro aborda questões como ciúme, abandono, violência doméstica, entre outros. A autora pretende mostrar que somos todos capazes do bem e do mal. Carla Madeira mostra talento, nesse seu primeiro livro, com possibilidade de se tornar uma escritora de sucesso na cena contemporânea. 

Algumas frases que merecem destaque: 

“Mas e o amor? O que é senão um monte de gostar? Gostar de falar, gostar de tocar, gostar de cheirar, gostar de ouvir, gostar de olhar. Gostar de se abandonar no outro. O amor não passa de um gostar de muitos verbos ao mesmo tempo” (p. 19)

“A loucura começa como a doença, miúda. Vai se alastrando célula a célula, ocupando tudo, destruindo a saúde, acabando com a vida de quem não encontra recurso para deter os pensamentos ruins, fazedores dos mais profundos infernos” (p. 20) 

“[...] o ciúme pode destruir qualquer amor. Dá muito trabalho não deixar ele devorar a alegria de ficar junto” (p. 103) 


terça-feira, 9 de agosto de 2022

A senhoria - Fiódor Dostoievski

Por Lenita Turchi


Em 1857, Dostoievski escreve ao seu editor, após o sucesso “Gente pobre “, para solicitar mais tempo e recursos para terminar “A senhoria” usando a seguinte justificativa:

Para manter minha palavra e entregar o texto no prazo, eu me violentava e escrevia coisas tão ruins como “A senhoria”, o que me levou a mergulhar na perplexidade e na auto difamação a ponto de que, por muito tempo, não escrever nada bom e adequado. Cada um dos meus fracassos desencadeava em mim uma doença.”[1]

De fato, Gente pobre, foi considerado o primeiro romance social russo que entusiasmou desde a primeira leitura Bielinski, um dos críticos mais severos da literatura russa da época. Nasceu um novo Gogol dizem os amigos que de madrugada levam a visão do crítico para Dostoievski. Afinal, quem é esse escritor que foi capaz de aos 25 anos, escrever uma novela com tamanha compreensão da vida e do sofrimento?

Dostoievski; origem e contexto histórico

Fiódor Dostoievski é de origem nobre russa, uma nobreza sem recursos, mas que teve acesso à educação.  Dostoievski era filho de médico, alcoólatra e de uma mãe culta que amava livros, gostava de poesia e cantava. Segundo o historiador Virgil Tanasse. analisando cartas de Dostoievski para seu irmão Andrei, os pais são descritos pelo autor como “a frente do seu tempo “essa ideia de querer estar sempre entre os melhores (no sentido literal o mais elevado do tempo) foi o princípio fundamental do nosso pai e nossa mãe apesar de todos os desvios”.

A noite os pais se revezam na leitura dos grandes autores da época: Derzhavin, Jukokvi, Púnchin e Karamzin / História da Rússia, autores que fazem apologia da mãe Rússia e da aristocracia imperial. É alfabetizado pela mãe usando a Bíblia e essa religiosidade perpassa toda sua obra literária. Ao mesmo tempo é fascinado pelos contos populares que as servas da casa contavam e que mais tarde usará para construção de personagens e ambientes em seus escritos.

Desde a infância o autor é exposto a diversidade social cultural da Rússia, convive com pais letrados e servos que contam estórias místicas e lendas das diferentes regiões da Rússia. Na juventude já escritor, na condição de preso exilado, Dostoievski conhece a miséria a que era submetida o povo russo, assim como a repressão czarista aos movimentos populares que buscavam mudanças econômico socais.

Aos 18 anos ainda cursando engenharia militar escreve para seu irmão “O homem é um mistério que precisa ser elucidado. Mesmo que passemos a vida inteira isso, não devemos dizer que perdemos tempo. Estou ocupado com esse mistério porque quero ser um homem.”[2]

Em 1843 termina os estudos, promovido a subtenente e nomeado para o Departamento de Plantas da Direção de Engenharia de São Petersburgo. Trabalha, lê escreve, esbanja, é generoso e em 1844 escreve seu primeiro romance/ novela. O sucesso o introduz no mundo literário e na roda viva de festas, dívidas e promessas aos editores. Frequenta reuniões literárias e políticas e participa de sociedades secretas para discutir sobre literatura e arte. Numa destas reuniões, declama o poema de Púchin, “O campo”, que termina com a pergunta retorica “Quando ó vou ver meus amigos, o povo libertado da opressão”

A abolição da monarquia na França e a contestação dos regimes autocráticos de outros países europeus são a fonte de inspiração dos movimentos de oposição na Rússia tzarista. Os movimentos libertários, da Rússia tzarista, no período da juventude de Dostoievski, são liderados por pessoas dos segmentos médios e pobres que tiveram oportunidade de estudar e seguir carreiras administrativas. Dado a necessidade de uma elite administrativa capaz de gerir o vasto império o tzar Nicolau I, permitiu e mesmo incentivou que jovens oriundos de camadas pobres e médias a estudarem e seguir carreiras que eram exclusivas da nobreza. Os movimentos revolucionários deste período são apoiados e mesmo, em alguns casos, liderados por esses jovens educados para defender uma classe a que não pertencem.

Em abril de 1849, Dostoievski é julgado e condenado a ser fuzilado. No último momento a pena é comutada e o autor passará 10 anos na Sibéria, sendo que destes, quatro anos esteve preso e isolado tendo com possiblidade de leitura apenas a Bíblia. Segundo Virgil Tanase [3] a vida e obra do Dostoievski se confundem a tal ponto que:

“Se tivesse escrito a própria biografia, a obra poderia passar, aos olhos de quem desconhece a história de sua vida como por de seus romances. A tal ponto o herói, paradoxal e de atitudes tão surpreendentes, encontra-se as voltas com histórias tão inverossímeis que parecem inventadas. Não são. Essas histórias vão submeter o escritor a provações terríveis: para sobreviver será obrigado a visitar recantos obscuros da alma, que escondem mecanismos do comportamento humano. Uma vez ali, Dostoievski aproveita para revelá-los, conduzindo os personagens, não causa espanto que as criaturas se pareçam com o criador, tão surpreendente profundas quando roçam os mistérios da existência, tão banais no dia a dia, em que são como ele, iguais a qualquer um”.[4]

A senhoria

O conto, A senhoria, se desenvolve em torno de 3 personagens centrais sendo 2 jovens, Vassili Ordínov, Katierina, e um velho, Muri, que não se sabe se é marido protetor ou carcereiro da bela Katierina.  O conto narra a estória do jovem Vassíli Ordínov, que após a morte da mãe, se isola num quarto alugado para se dedicar aos estudos e a busca de conhecimento. Quando a casa é vendida Vassíli, sai pela cidade a esmo buscado um novo lugar para morar e nestas andanças, já nos arredores da cidade, entra numa igreja e se depara com uma bela jovem rezando de forma mística e perturbadora. 

Vassili a segue em várias ocasiões, imaginado quem seria a jovem e o velho que a acompanha, e acaba alugando um quarto no pequeno cômodo do casal.  A trama se desenvolve neste local com foco na paixão do jovem Vassili por Katierina e a aura mística e fantasiosa que a jovem Katierina traz para a relação. O autor nos deixa em suspenso sobre quem é a senhoria e as relações dela com o marido, que as vezes é visto como protetor, outras como carcereiro e finalmente como uma vítima das alucinações de Katierina. Ou seria a senhoria uma síntese do misticismo, costumes e lendas do povo russo, que nos envolve em suas visões dantescas e mantem os leitores presos as suas teias?

Embora inicialmente o conto tenha sido recebido de forma pouco entusiasta pela crítica literária da época e mesmo Dostoievski o tenha considerado pouco relevante, o conto releva a capacidade do autor de captar a natureza humana na sua complexidade e contradições assim como explorar o rico universo das crenças e tradições russas.

Recomendo com entusiasmo a leitura do conto A senhoria.



[1] Tanase, Virgil (1945). Dostoievski Biografia, 1ª edição, Editora L& PM POCKET vol 1270

[2] Correspondência de Dostoievski para seu irmão Andrei In Tanase, Virgil (1945). Dostoievski Biografia, 1ª edição, Editora L& PM POCKET vol 1270, p26

[3] Tanase, Virgil (1945). Dostoievski Biografia, 1ª edição, Editora L& PM POCKET vol 1270.

[4] Idem. p106

 

A senhoria - Fiódor Dostoievski

Por Lenita Turchi



Em 1857, Dostoievski escreve ao seu editor, após o sucesso “Gente pobre “, para solicitar mais tempo e recursos para terminar “A senhoria” usando a seguinte justificativa:

Para manter minha palavra e entregar o texto no prazo, eu me violentava e escrevia coisas tão ruins como “A senhoria”, o que me levou a mergulhar na perplexidade e na auto difamação a ponto de que, por muito tempo, não escrever nada bom e adequado. Cada um dos meus fracassos desencadeava em mim uma doença.”[1]

De fato, Gente pobre, foi considerado o primeiro romance social russo que entusiasmou desde a primeira leitura Bielinski, um dos críticos mais severos da literatura russa da época. Nasceu um novo Gogol dizem os amigos que de madrugada levam a visão do crítico para Dostoievski. Afinal, quem é esse escritor que foi capaz de aos 25 anos, escrever uma novela com tamanha compreensão da vida e do sofrimento?

Dostoievski; origem e contexto histórico

Fiódor Dostoievski é de origem nobre russa, uma nobreza sem recursos, mas que teve acesso à educação.  Dostoievski era filho de médico, alcoólatra e de uma mãe culta que amava livros, gostava de poesia e cantava. Segundo o historiador Virgil Tanasse. analisando cartas de Dostoievski para seu irmão Andrei, os pais são descritos pelo autor como “a frente do seu tempo “essa ideia de querer estar sempre entre os melhores (no sentido literal o mais elevado do tempo) foi o princípio fundamental do nosso pai e nossa mãe apesar de todos os desvios”.

A noite os pais se revezam na leitura dos grandes autores da época: Derzhavin, Jukokvi, Púnchin e Karamzin / História da Rússia, autores que fazem apologia da mãe Rússia e da aristocracia imperial. É alfabetizado pela mãe usando a Bíblia e essa religiosidade perpassa toda sua obra literária. Ao mesmo tempo é fascinado pelos contos populares que as servas da casa contavam e que mais tarde usará para construção de personagens e ambientes em seus escritos.

Desde a infância o autor é exposto a diversidade social cultural da Rússia, convive com pais letrados e servos que contam estórias místicas e lendas das diferentes regiões da Rússia. Na juventude já escritor, na condição de preso exilado, Dostoievski conhece a miséria a que era submetida o povo russo, assim como a repressão czarista aos movimentos populares que buscavam mudanças econômico socais.

Aos 18 anos ainda cursando engenharia militar escreve para seu irmão “O homem é um mistério que precisa ser elucidado. Mesmo que passemos a vida inteira isso, não devemos dizer que perdemos tempo. Estou ocupado com esse mistério porque quero ser um homem.”[2]

Em 1843 termina os estudos, promovido a subtenente e nomeado para o Departamento de Plantas da Direção de Engenharia de São Petersburgo. Trabalha, lê escreve, esbanja, é generoso e em 1844 escreve seu primeiro romance/ novela. O sucesso o introduz no mundo literário e na roda viva de festas, dívidas e promessas aos editores. Frequenta reuniões literárias e políticas e participa de sociedades secretas para discutir sobre literatura e arte. Numa destas reuniões, declama o poema de Púchin, “O campo”, que termina com a pergunta retorica “Quando ó vou ver meus amigos, o povo libertado da opressão”

A abolição da monarquia na França e a contestação dos regimes autocráticos de outros países europeus são a fonte de inspiração dos movimentos de oposição na Rússia tzarista. Os movimentos libertários, da Rússia tzarista, no período da juventude de Dostoievski, são liderados por pessoas dos segmentos médios e pobres que tiveram oportunidade de estudar e seguir carreiras administrativas. Dado a necessidade de uma elite administrativa capaz de gerir o vasto império o tzar Nicolau I, permitiu e mesmo incentivou que jovens oriundos de camadas pobres e médias a estudarem e seguir carreiras que eram exclusivas da nobreza. Os movimentos revolucionários deste período são apoiados e mesmo, em alguns casos, liderados por esses jovens educados para defender uma classe a que não pertencem.

Em abril de 1849, Dostoievski é julgado e condenado a ser fuzilado. No último momento a pena é comutada e o autor passará 10 anos na Sibéria, sendo que destes, quatro anos esteve preso e isolado tendo com possiblidade de leitura apenas a Bíblia. Segundo Virgil Tanase [3] a vida e obra do Dostoievski se confundem a tal ponto que:

“Se tivesse escrito a própria biografia, a obra poderia passar, aos olhos de quem desconhece a história de sua vida como por de seus romances. A tal ponto o herói, paradoxal e de atitudes tão surpreendentes, encontra-se as voltas com histórias tão inverossímeis que parecem inventadas. Não são. Essas histórias vão submeter o escritor a provações terríveis: para sobreviver será obrigado a visitar recantos obscuros da alma, que escondem mecanismos do comportamento humano. Uma vez ali, Dostoievski aproveita para revelá-los, conduzindo os personagens, não causa espanto que as criaturas se pareçam com o criador, tão surpreendente profundas quando roçam os mistérios da existência, tão banais no dia a dia, em que são como ele, iguais a qualquer um”[4].

A senhoria

O conto, A Senhoria, se desenvolve em torno de 3 personagens centrais sendo 2 jovens, Vassili Ordínov, Katierina, e um velho, Muri, que não se sabe se é marido protetor ou carcereiro da bela Katierina.  O conto narra a estória do jovem Vassíli Ordínov, que após a morte da mãe, se isola num quarto alugado para se dedicar aos estudos e a busca de conhecimento. Quando a casa é vendida Vassíli, sai pela cidade a esmo buscado um novo lugar para morar e nestas andanças, já nos arredores da cidade, entra numa igreja e se depara com uma bela jovem rezando de forma mística e perturbadora. 

Vassili a segue em várias ocasiões, imaginado quem seria a jovem e o velho que a acompanha, e acaba alugando um quarto no pequeno cômodo do casal.  A trama se desenvolve neste local com foco na paixão do jovem Vassili por Katierina e a aura mística e fantasiosa que a jovem Katierina traz para a relação. O autor nos deixa em suspenso sobre quem é a senhoria e as relações dela com o marido, que as vezes é visto como protetor, outras como carcereiro e finalmente como uma vítima das alucinações de Katierina. Ou seria a senhoria uma síntese do misticismo, costumes e lendas do povo russo, que nos envolve em suas visões dantescas e mantem os leitores presos as suas teias?

Embora inicialmente o conto tenha sido recebido de forma pouco entusiasta pela crítica literária da época e mesmo Dostoievski o tenha considerado pouco relevante, o conto releva a capacidade do autor de captar a natureza humana na sua complexidade e contradições assim como explorar o rico universo das crenças e tradições russas.

Recomendo com entusiasmo a leitura do conto A senhoria.



[1] Tanase, Virgil (1945). Dostoievski Biografia, 1ª edição, Editora L& PM POCKET vol 1270

 [2] Correspondência de Dostoievski para seu irmão Andrei In Tanase, Virgil (1945). Dostoievski Biografia, 1ª edição, Editora L& PM POCKET vol 1270, p26

[3] Tanase, Virgil (1945). Dostoievski Biografia, 1ª edição, Editora L& PM POCKET vol 1270.

[4] Idem. p106

 

terça-feira, 26 de julho de 2022

O Homem - Aluísio de Azevedo


por Carlos Guido Soares Azevedo

Aluísio Azevedo nasceu em São Luís em 14 de abril de 1857, filho de David Gonçalves de Azevedo (vice-cônsul português no Brasil) e Emília Amália Pinto de Magalhães, foi romancista, jornalista, cronista, desenhista e pintor do cotidiano maranhense e era o irmão mais novo do famoso dramaturgo Artur Azevedo e se tornou um dos mais representativos escritores brasileiros ao lado de Machado de Assis, embora tão diferentes em valores e atitudes.

Embora filho de Vice-cônsul seu primeiro trabalho foi como caixeiro-viajante. Adorava pintar e desenhar, e se mudou para o Rio de Janeiro com 19 anos (onde já morava seu irmão Artur), para estudar na Escola Nacional de Belas Artes. Depois de formado, desenhou caricaturas para jornais como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada.  

Acredito que seu olhar crítico e detalhado para as pessoas e cenas que representava com seus traços de caricaturista, lhe deu o potencial para descrevê-los em seus livros e se integrar ao movimento naturalista.

A morte do pai, em 1878, fez com que voltasse a São Luís, para cuidar da família e dos negócios. Como todas as mudanças trazem consequências e sendo o Maranhão um celeiro dinâmico de literatos jovens e renovadores, participou nessa época da fundação de um jornal anticlerical e abolicionista chamado O Pensador.

Foi essa interrupção na sua profissão de caricaturista que o fez decidir iniciar sua carreira de escritor, publicando em 1880 um típico romance romântico, Uma Lágrima de Mulher.

Seu desejo de fazer da literatura um meio de vida o fez publica, no ano seguinte o primeiro romance naturalista da história do Brasil. O Mulato, no qual descreve com detalhes nunca vistos, a vida e a dinâmica de uma comunidade de escravos, suas sujeições e emoções.

No começo, pretendia com a literatura, tão somente garantir seu sustento, mas foi dominado pelo poder da escrita e passou de observador do meio social a descritor dos seus usos e costumes, com profundidade e veracidade, nunca vistas. Foi o sucesso de vendas dos seus livros que o fez assinar contrato com a Livraria Garnier, uma das mais importantes do país e se tornar o primeiro escritor brasileiro a viver de literatura.

Voltou para o Rio de Janeiro já como escritor consagrado e daí em diante escreveu ininterruptamente por 13 anos, entre 82 e 95, quando se tornou diplomata como seu pai e serviu como cônsul na Espanha, no Japão, Inglaterra, Itália e Argentina onde morreu aos 55 anos.

Seus livros eram consideradas pelos livreiros da época obscenas e, não romances experimentais, como denominavam seus escritores. “O Homem” foi taxado, por exemplo, de “erótico” e “obsceno”, fato que atraia leitores carentes de representações de sexo. A obra enfatizava os institutos femininos da personagem Magdalena diagnosticada com histeria doença de mulher carente, para a época e cujo tratamento era o sexo – “Ela precisa é de homem”. 

Sexo, além é de um tema recorrente, também é uma das premissas naturalista. A menstruação — um tabu para a época — é descrita como nunca na literatura brasileira. Cenas de adultério e de homossexualidade (à época, tida como patologia) também são abundantes, bem como a presença da prostituição e da figura da jovem virginal que acaba transformando-se em prostituta. Suas personagens são animalizadas e hiper sexualizadas, desnudadas ao longo do romance, enfatizados seus desejos, vícios e fisiologia.

Inspirado por Émile Zola e Eça de Queiroz, Aluísio Azevedo desenhou, encenou e escreveu sobre o século XIX, marcado pelo preconceito racial, hipocrisia das elites sociais, vícios e promiscuidade da população de São Luís do Maranhão, (e das demais províncias).

Suas obras caracterizavam e criticavam o provincianismo e suas ideias retrógradas e buscavam apresentar base científica sob a influência do Darwinismo (expressão máxima da natureza); Émile Zola (determinismo e expressionismo); Hipólito Taine (ser humano como máquina sujeita às leis da física e da química); Hereditariedade física e social (personagens produtos do meio biológica e social); e Postura científica (com base na ciência da época, voz de especialista) e descrições visuais, olfativas, táteis e auditivas.

A obra de Aluísio Azevedo é composta por três livros de contos, oito peças de teatro e onze romances. Uma Lágrima de Mulher (1880); O Mulato (1881); Mistérios da Tijuca, ou Girândola de Amores (1882); Memórias de um Condenado, ou A Condessa Vésper (1882); Casa de Pensão (1884); Filomena Borges (1884); O Homem (1887); O Cortiço (1890); A Coruja (1890); A Mortalha de Alzira (1894); O Livro de uma Sogra (1895);

Peças de teatro: Os Doidos (1879); Flor-de-lis (1882); Casa de Orações (1882); O Caboclo (1886); Fritz Mack (1889 — em parceria com Artur Azevedo); A República (1890); O Adultério (1891); Em Flagrante (1891).  Crônicas: O Japão — 1894).  Contos: Demônios — 1895). Pégadas (1897); O touro negro [contos, cartas e crônicas em ed. póstuma] (1938)"

Situando o autor em sua época e contextualizando sua missão pessoal de construir um sentido de brasilidade, vencer um comportamento cínico em uma sociedade que se fazia católica, mas que não seguia suas regras, com costumes e práticas sociais ultrajantes, totalmente em desacordo com a imagem que queriam transmitir.

Costumes sociais totalmente desvinculado de valores morais sérios. Ainda não tínhamos recebido a invasão da escola conservadora protestante, de modo significativo e o mundo católico se dedicava à devoção formal e à vida de aparência pudica e castradora das famílias, aceitando a vida desregrada do masculino com suas concubinas e cabarés, na imitação da vida e da moda ditada em Paris. Dentre essas, o romance Madame Bovary de Flaubert que dá início ao realismo e fomenta a corrente realista e científica, da qual Machado e Aluísio são filiados, sendo o início do Realismo e do Naturalismo na literatura brasileira tido como a publicação do O Mulato.

Só para apoiar a construção de sua contemporaneidade, Aluísio participou da fase mais dura da formação da república brasileira, em sua época estourava revoluções federalistas em quase todas as províncias, favoráveis à monarquia e resistentes aos conceitos republicanos. Havia uma revolta clara contra o final da escravatura, contra a ocupação de cargos de governadores por pessoas que não os oligarcas das províncias, enquanto o povo brasileiro não sabia o que de fato acontecia, já que a Proclamação da República, foi mesmo um golpe militar com seu comandante, atônito e sem compreender o que fazia, pois gritava Viva D. Pedro II, de quem era amigo íntimo.

Em 1985 quando se tornou cônsul, o Brasil reatou relações com Portugal; O governo central da república derrotou a revolução federalista do Rio Grande do Sul; O Brasil assinou um tratado de amizade com o Japão; Foi iniciada a guerra de Canudos e; Fundada a Academia Brasileira de Letras, por Machado de Assis.  

Aluísio, diferentemente de Machado que era tido como o bruxo do Cosme Velho, pelo seu atavismo e resistência a viajar, foi um homem do mundo, adepto das correntes filosóficas, como o Evolucionismo de Charles Darwin, o Determinismo de Hipólito Taine e o Positivismo de Auguste Comte.

Foi exímio retratista de seu tempo e de seu espaço, um dos mais estudados para o vestibular, onde se resume as características dos seus escritos, como: Descrições minuciosas do ambiente e narrativa lenta do enredo; Linguagem simples e regional, focada na realidade cotidiana, com visão crítica e retratando a sociedade como ela era; Releva as patologias sociais e individuais, com personagens, degradados, animalescos e sensuais; No fundo, assumindo um tom crítico à decadência moral, e aos comportamentos preconceituosos, principalmente o racial.

Moral desconstruída

Aluísio de Azevedo, junto com Machado de Assis assumem como missão construir uma brasilidade, um novo comportamento social, mais moderno e menos provinciano, através de uma visão crítica dos costumes e valores da época.

Ele opta por uma desconstrução da moral, como instrumento pedagógico, algo parecido nos nossos dias com o escritor e Nelson Rodrigues que para propugnarem uma sociedade conservadora nos princípios e atenta a regras de civilidade, cortesia, com obediência a valores éticos e morais, resolvem mostrar a desconstrução da moral e externar de forma arrasadora o comportamento hipócrita e aético dessa sociedade, com fins educativos mostrando as consequências perversas e funestas para seus personagens.

No entanto, o que é percebido em nessas obras por essa sociedade, é a diversão e a luxúria, sem atentar para os castigos e as condenações e seus finais trágicos no contexto das histórias.

No caso de Nelson, cheguei a presenciar sua indignação à saída de uma de suas peças teatrais, com sua revolta, chamando aquela turba alegre e divertida na saída do teatro de “cínicos e pervertidos...”. 

O Homem – deu-me um pequeno relevo da minha ignorância profunda sobre a literatura brasileira.  Recomendo com distinção aos novos e velhos leitores.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

A Ocasião – Juan Jose Saer (1988)

 


Comentado por Daniela

Sobre o autor e seu estilo:

Juan José Saer (28 de junho de 1937, Serodino, Argentina - 11 de junho de 2005, Paris, França) foi um escritor e ensaísta argentino. Nasceu e morou em cidades do interior da Argentina, a região do Pampa úmido, na província de Santa Fé, e na década de 60 iniciou um longo exílio na França onde morou no interior, em Rennes na Bretanha. No Brasil, Saer é conhecido mais pela sua ficção, principalmente por O enteado, e por alguns artigos escritos para o jornal Folha de S.Paulo.  Tem uma obra extensa (doze romances, quatro livros de ensaios, quatro livros de contos e um de poesia), que os estudiosos do autor e sua obra dizem precisar ser entendida como um só espaço narrativo.

Para muitos estudiosos, a sua trajetória é um movimento constante pelas margens: era filho de imigrantes árabes (sírio-libaneses) e escolheu viver grande parte da sua vida na Europa, em um autoexílio. Antes da mudança para França, com vinte e poucos anos, Saer publica vários livros, e aparece vinculado a um grupo amplo de escritores e intelectuais em Santa Fé, participando de forma ativa na cena cultural desta cidade interiorana à beira do rio Paraná. Mostrou sempre um caráter impetuoso e rebelde com respeito instituições culturais estabelecidas. Apesar de nunca ter voltado a morar novamente na Argentina, Saer, após a queda do regime militar, em 1983, começa a visitar todo ano o país num processo pessoal e literário de recuperação das origens, da memória e da história. A morte em 2005 o surpreendeu em pleno trabalho, estava escrevendo um romance sobre sua infância (La Grande) que ficou inconcluso.

A crítica destaca algumas características fundamentais da sua obra. Desde seu primeiro livro de contos (En la Zona) o escritor apresenta uma galeria de personagens, de lugares e de temáticas que vai retomar e retrabalhar ao longo de toda sua obra, o seu universo ficcional. As características deste espaço narrativo ou território literário chamado "la zona de Saer " (em alusão ao título de seu primeiro livro) estão a cidade de Santa Fe e seus arredores (lembrei do ótimo filme argentino “O Cidadão Ilustre”, com Oscar Martínez), que como a Buenos Aires de Borges e a Rio de Janeiro Imperial de Machado de Assis viram um referente do real.

María Teresa Gramuglio (1986) acrescenta que estas características se parecem com o refrão musical que se repete ao longo de uma partitura, ou a rima na poesia que se reitera e que conforma elementos de unidade. Alguns elementos da literatura de Jorge Luis Borges são reconhecíveis no projeto literário de Saer, como a oposição entre campo e cidade e a síntese que representa o subúrbio das cidades, um espaço marginal que resume também a condição da América Latina, entre a modernidade (civilização) e o irracional (barbárie). A partir do exílio na França Saer passa a trabalhar na sua literatura com muita força a ideia, do alienado no sentido do fora de lugar, que tem que recuperar seu espaço na forma da recuperação da sua história e da sua memória. Dentro do movimento de recuperação de um espaço e de uma zona ligada à experiência passada, os três romances históricos El entenado (O enteado), La ocasión (A Ocasião) e Las nubes (As nuvens), configuram uma espécie de trilogia sobre as origens históricas da "zona". Os elementos espaciais da obra de Saer podem encontrar sua referência na cidade real de Santa Fe, cidade essa que não aparece nunca nomeada no conjunto de sua ficção, ao passo que as demais localidades (Buenos Aires, Rosario, Paris, etc.) são, no entanto, mencionadas pelo nome ao longo dos textos.

Saer defende a ficção como um espaço de exploração do homem pelo homem.  Em suas palavras “mi primera preocupación de escritor es, en consecuencia, esa crítica de lo que se presenta como real, y a lo cual todo el resto debe estar subordinado”. Essa é a riqueza da experiência das personagens saerianas, imbricada na encenação da própria impossibilidade de se atingir a objetividade do mundo. A experiência − como uma abertura para a exploração das fissuras do mundo no esforço por perseguir o visível como coisa que sempre se esconde por detrás de outras − se apresenta como que continuamente incompleta e deformada. (Mota, 2019)

O plot:

A trama de “A Ocasião” se passa entre 1870 e 1871, nas terras ao sul do Rio Salado,  parte central da província de Santa Fe. O plano histórico de formação da nação argentina a partir da metade do século XIX, com a imigração massiva de europeus, a perspectiva de transformação dos campos do pampa argentino e a epidemia de febre amarela, é uma moldura para o autor apresentar seus temas de  estimação: a contraposição realidade x ficção, o real e a representação impossível do real pela linguagem.

Em uma síntese rápida e incompleta, seis anos antes do momento em que a narrativa se inicia, Bianco, o protagonista, um ocultista ruivo de 46 anos, sotaque indefinido, e que se diz nascido na Ilha de Malta, desembarcou na Argentina vindo da Europa. Anos antes, por volta de 1855,  havia tido notoriedade na Inglaterra, na França e na Prússia exibindo seus poderes de transmissão telepática, deslocamento de objetos à distância, deformação da matéria por contato, em teatros de segunda classe no início, mas depois também nos meios acadêmicos e salões da alta sociedade. Depois de ser ridicularizado e exposto pelos positivistas franceses, vê-se forçado a deixar a Europa para se recompor, aproveitando o interesse do governo argentino por imigrantes europeus. Vislumbrou na extensão plana e cinzenta dos pampas o cenário perfeito para organizar os seus pensamentos, aqueles ‘que iriam servir-lhe para libertar a espécie humana da servidão da matéria’, e ajudá-lo a recuperar seus poderes, que percebe enfraquecidos após a humilhação sofrida. Apesar de ter a expectativa de controle do novo espaço e relações por meio de suas faculdades mentais, a planície e as pessoas (Garay-Lopez, Gina, Waldo) vão se mostrando impenetráveis, o que o deixa ‘exasperado por depender dos outros para verificar seus palpites e suas intuições no exterior’. Seus supostos dons para leitura telepática não antecipam a epidemia (como Waldo) nem impedem que ele tenha pensamentos delirantes (a la Bentinho) que seu amigo Garay-Lopez trouxe a epidemia, “mas não por medo (...) ele trouxe a epidemia porque recebeu a carta e queria ver a cor do cabelo do que vai sair dentre as pernas de Gina”. A materialidade de sua astúcia prática em lidar com os ventos da modernidade que está chegando para os gauchos da planície  acaba se impondo, a medida que a epidemia varre as últimas resistências.

“A Ocasião” tem um narrador heterodiegético, aquele que não participa da história que está contando. Nesse caso, o narrador está fora da história, ocupando a posição de relatar ao leitor ou acontecimentos e emoções que nem sempre o personagem está ciente. Na abertura do romance, o narrador dialoga com o leitor sobre o protagonista (“Chamemo-lo simplesmente Bianco”), mas ao longo do texto, essa separação vai se tornando menos perceptível, colocando o leitor diretamente dentro das memórias, devaneios ou delírios de Bianco, cúmplice de como ele vê o exterior.

 “Bianco, apesar de não ser o narrador de sua história, detém o ponto de vista do texto, usurpando a voz na profusão incessante das analepses (técnica narrativa que consiste em relatar acontecimentos anteriores ao tempo presente da história ou mesmo anteriores ao início da ação). Bianco também se serve de um espaço para difundir, com liberdade, seu ponto de vista com respeito ao rearranjo da realidade. (...) Intervindo, primeiramente, no ponto de vista da história, posteriormente Bianco monopoliza a ação e o desenvolvimento da narrativa. Essa ilusão narrativa, já que se trata de um narrador heterodiegético, se constrói devido ao fato de o narrador gradativamente se eclipsar em benefício da ação do protagonista. Os recursos das analepses beneficiam a indefinição de qual voz se ouve no texto. Algumas analepses se manifestam como monólogo interior ou segundo o ponto de vista da personagem; quanto a elas, o conflito se manifesta quando não se distingue a “voz” da personagem da voz do narrador, devido à indefinição entre monólogo interior e discurso indireto livre. Bianco, por sua vez, ultrapassa os limites de mera personagem narrada e se coloca conjuntamente ao narrador, promulgando a estética saeriana do conflitante espaço entre realidade e ficção. (Mota 2011)

Os parágrafos longos, as descrições minuciosas e coloridas da paisagem, das roupas, dos corpos (de Gina grávida, de Garay-Lopez sendo tomado pela febre amarela), dos pensamentos e estados emocionais de Bianco, ou de determinadas cenas são bastante marcantes na obra. Destaque para as cenas da passagem do bando de cavalos selvagens (p 25-28) e da cena em que vê Gina observando o cavalo tentando cobrir a égua no curral de sua casa (p.95-98). O índio Waldo e seus versos proféticos, em dísticos octossílabos, é uma história dentro da história, que corre paralela e que anuncia o real: Hic Incipti Pestis (Aqui começa a peste). Há pouco espaço para o negacionismo.

Segundo Romano (tradução livre), ‘o elemento histórico se articula com a crítica à representação da realidade a partir da noção de causalidade. O título alude a esse conceito, já que ‘ocasión’ significa ‘causa ou motivo porque se faz ou acontece uma coisa (se trata da segunda acepção da palavra; ecos da primeira acepção ‘oportunidade de tempo ou lugar, que se oferece para executar ou conseguir uma coisa’ ressoam na interpretação dada sobre o espaço da planícia e o tempo da segunda metade do século XIX como propícios para que deles brote o relato). Contra a concepção lógica, histórica, linear e progressista da modernidade, ‘A Ocasião’, desde o título, postula outra relação, distinta da lei da causalidade, entre os acontecimentos. Trazendo essas ideias para um plano mais concreto, e de acordo com a afirmação de Saer de que o uso do passado na narrativa sempre tende a marcar a persistência de certos problemas no presente, ‘A Ocasião’ tem como cenário uma época em que havia crença cega na possibilidade de um progresso ininterrupto baseado na prosperidade material, o que não está muito distante da atitude triunfalista e confiante de nossas sociedades de consumo. Nessa linha, uma das mensagens costuradas no romance poderia ser resumida pelas palavras do escritor e crítico literário francês Blanchot: ...quanto mais se afirma o mundo como um futuro, um dia da verdade onde tudo terá valor, onde tudo terá sentido, onde tudo ser realizará sob o domínio do homem e para o seu uso, mais parece que a arte deva descer até o ponto em que nada tenha sentido, mais importante que mantenha o movimento, a insegurança e a desventura do que escapa de toda a percepção e de todo o fim. O artista e o poeta receberam a missão de nos recordar obstinadamente sobre o erro, de nos orientar por esse espaço onde tudo o que propomos, tudo o que adquirimos, tudo o que somos, tudo o que se abre sobre a terra e o céu, retorna a sua insignificância, aproxima-se do não ser e da não verdade, como se dali surgisse a fonte de toda a autenticidade’ ( …cuanto más se afirma el mundo como futuro y el pleno día de la verdad donde todo tendrá valor, donde todo tendrá sentido, donde todo se realizará bajo el dominio del hombre y para su uso, más parece que el arte deba descender hacia ese punto donde nada aún tiene sentido, más importante se hace que mantenga el movimiento, la inseguridad y la desventura de lo que escapa de toda percepción y de todo fin. El artista y el poeta han recibido la misión de recordarnos obstinadamente el error, de orientarnos hacia ese espacio donde todo lo que nos proponemos, todo lo que hemos adquirido, todo lo que somos, todo lo que se abre sobre la tierra y el cielo, retorna a lo insignificante, donde lo que se aproxima es lo no-serio y lo no-verdadero, como si a lo mejor surgiese de allí la fuente de toda autenticidad) (p. 236). (ROMANO,1999)

 Referências e dicas:

MOTA, Raquel Alves. A voz poética dos protagonistas: a (re)construção do real em La ocasión, de Juan José Saer, e em Dom Casmurro, de Machado de Assis. 2011; http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/view/3723)

MOTA, Raquel Alves. O ESPAÇO DE ‘LA GRANDE’ DE JUAN JOSÉ SAER POR MEIO DE PERSPECTIVAS DISTÓPICAS: OS CONFLITOS QUANTO À POSSIBILIDADE DA EXPERIÊNCIA NO MUNDO. Revista de Ciências Humanas, Vol. 19, n. 1 – Jan. – Jun./2019 (https://periodicos.ufv.br/RCH/article/view/9186)

MOTA, Raquel Alves. Perspectiva fenomenológica de Juan José Saer: a discussão do realismo no espaço da lhanura. Caligrama: Revista de Estudos Românicos, [S.l.], v. 23, n. 1, p. 79-98, maio 2018. ISSN 2238-3824. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/caligrama/article/view/11913>. Acesso em: 12 jun. 2022.

ROMANO, E. . LA OCASIÓN PARA NARRAR HISTORIA, REALIDAD Y ALEGORÍA EN UN TEXTO DE JUAN JOSÉ SAER, NRFH, XLVII (1999), núm. 1, 99-119 (https://nrfh.colmex.mx/index.php/nrfh/article/view/2085/2076)

Artifícios da criação: uma conversa com Juan José Saer https://doi.org/10.1590/S0101-33002005000300012. NOVOS ESTUDOS 73, NOVEMBRO 2005.

ANA CECÍLIA OLMOS. Contra a civilização e a barbárie. Folha de São Paulo, 03 de julho 2005. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0307200519.htm