Comentado por Daniela
Sobre
o autor e seu estilo:
Juan
José Saer (28 de junho de 1937, Serodino, Argentina - 11 de junho de 2005,
Paris, França) foi um escritor e ensaísta argentino. Nasceu e morou em cidades
do interior da Argentina, a região do Pampa úmido, na província de Santa Fé, e
na década de 60 iniciou um longo exílio na França onde morou no interior, em
Rennes na Bretanha. No Brasil, Saer é conhecido mais pela sua ficção,
principalmente por O enteado, e por alguns artigos escritos para o jornal Folha
de S.Paulo. Tem uma obra extensa (doze
romances, quatro livros de ensaios, quatro livros de contos e um de poesia),
que os estudiosos do autor e sua obra dizem precisar ser entendida como um só
espaço narrativo.
Para
muitos estudiosos, a sua trajetória é um movimento constante pelas margens: era
filho de imigrantes árabes (sírio-libaneses) e escolheu viver grande parte da
sua vida na Europa, em um autoexílio. Antes da mudança para França, com vinte e
poucos anos, Saer publica vários livros, e aparece vinculado a um grupo amplo
de escritores e intelectuais em Santa Fé, participando de forma ativa na cena
cultural desta cidade interiorana à beira do rio Paraná. Mostrou sempre um
caráter impetuoso e rebelde com respeito instituições culturais estabelecidas. Apesar
de nunca ter voltado a morar novamente na Argentina, Saer, após a queda do
regime militar, em 1983, começa a visitar todo ano o país num processo pessoal
e literário de recuperação das origens, da memória e da história. A morte em
2005 o surpreendeu em pleno trabalho, estava escrevendo um romance sobre sua
infância (La Grande) que ficou inconcluso.
A
crítica destaca algumas características fundamentais da sua obra. Desde seu
primeiro livro de contos (En la Zona) o escritor apresenta uma galeria de
personagens, de lugares e de temáticas que vai retomar e retrabalhar ao longo
de toda sua obra, o seu universo ficcional. As características deste espaço
narrativo ou território literário chamado "la zona de Saer " (em
alusão ao título de seu primeiro livro) estão a cidade de Santa Fe e seus
arredores (lembrei do ótimo filme argentino “O Cidadão Ilustre”, com Oscar
Martínez), que como a Buenos Aires de Borges e a Rio de Janeiro Imperial de
Machado de Assis viram um referente do real.
María
Teresa Gramuglio (1986) acrescenta que estas características se parecem com o
refrão musical que se repete ao longo de uma partitura, ou a rima na poesia que
se reitera e que conforma elementos de unidade. Alguns elementos da literatura
de Jorge Luis Borges são reconhecíveis no projeto literário de Saer, como a
oposição entre campo e cidade e a síntese que representa o subúrbio das
cidades, um espaço marginal que resume também a condição da América Latina,
entre a modernidade (civilização) e o irracional (barbárie). A partir do exílio
na França Saer passa a trabalhar na sua literatura com muita força a ideia, do
alienado no sentido do fora de lugar, que tem que recuperar seu espaço na forma
da recuperação da sua história e da sua memória. Dentro do movimento de
recuperação de um espaço e de uma zona ligada à experiência passada, os três
romances históricos El entenado (O enteado), La ocasión (A Ocasião) e Las nubes
(As nuvens), configuram uma espécie de trilogia sobre as origens históricas da
"zona". Os elementos espaciais da obra de Saer podem encontrar sua
referência na cidade real de Santa Fe, cidade essa que não aparece nunca
nomeada no conjunto de sua ficção, ao passo que as demais localidades (Buenos
Aires, Rosario, Paris, etc.) são, no entanto, mencionadas pelo nome ao longo
dos textos.
Saer
defende a ficção como um espaço de exploração do homem pelo homem. Em suas palavras “mi primera preocupación de
escritor es, en consecuencia, esa crítica de lo que se presenta como real, y a
lo cual todo el resto debe estar subordinado”. Essa é a riqueza da experiência
das personagens saerianas, imbricada na encenação da própria impossibilidade de
se atingir a objetividade do mundo. A experiência − como uma abertura para a
exploração das fissuras do mundo no esforço por perseguir o visível como coisa
que sempre se esconde por detrás de outras − se apresenta como que
continuamente incompleta e deformada. (Mota, 2019)
O
plot:
A
trama de “A Ocasião” se passa entre 1870 e 1871, nas terras ao sul do Rio
Salado, parte central da província de
Santa Fe. O plano histórico de formação da nação argentina a partir da metade
do século XIX, com a imigração massiva de europeus, a perspectiva de transformação
dos campos do pampa argentino e a epidemia de febre amarela, é uma moldura para
o autor apresentar seus temas de estimação:
a contraposição realidade x ficção, o real e a representação impossível do real
pela linguagem.
Em
uma síntese rápida e incompleta, seis anos antes do momento em que a narrativa
se inicia, Bianco, o protagonista, um ocultista ruivo de 46 anos, sotaque
indefinido, e que se diz nascido na Ilha de Malta, desembarcou na Argentina
vindo da Europa. Anos antes, por volta de 1855, havia tido notoriedade na Inglaterra, na
França e na Prússia exibindo seus poderes de transmissão telepática,
deslocamento de objetos à distância, deformação da matéria por contato, em
teatros de segunda classe no início, mas depois também nos meios acadêmicos e
salões da alta sociedade. Depois de ser ridicularizado e exposto pelos
positivistas franceses, vê-se forçado a deixar a Europa para se recompor,
aproveitando o interesse do governo argentino por imigrantes europeus. Vislumbrou
na extensão plana e cinzenta dos pampas o cenário perfeito para organizar os
seus pensamentos, aqueles ‘que iriam servir-lhe para libertar a espécie humana
da servidão da matéria’, e ajudá-lo a recuperar seus poderes, que percebe
enfraquecidos após a humilhação sofrida. Apesar de ter a expectativa de
controle do novo espaço e relações por meio de suas faculdades mentais, a
planície e as pessoas (Garay-Lopez, Gina, Waldo) vão se mostrando impenetráveis,
o que o deixa ‘exasperado por depender dos outros para verificar seus palpites
e suas intuições no exterior’. Seus supostos dons para leitura telepática não antecipam
a epidemia (como Waldo) nem impedem que ele tenha pensamentos delirantes (a la
Bentinho) que seu amigo Garay-Lopez trouxe a epidemia, “mas não por medo (...)
ele trouxe a epidemia porque recebeu a carta e queria ver a cor do cabelo do
que vai sair dentre as pernas de Gina”. A materialidade de sua astúcia prática
em lidar com os ventos da modernidade que está chegando para os gauchos da
planície acaba se impondo, a medida que
a epidemia varre as últimas resistências.
“A Ocasião” tem um narrador heterodiegético, aquele que não participa da história que está contando. Nesse caso, o narrador está fora da história, ocupando a posição de relatar ao leitor ou acontecimentos e emoções que nem sempre o personagem está ciente. Na abertura do romance, o narrador dialoga com o leitor sobre o protagonista (“Chamemo-lo simplesmente Bianco”), mas ao longo do texto, essa separação vai se tornando menos perceptível, colocando o leitor diretamente dentro das memórias, devaneios ou delírios de Bianco, cúmplice de como ele vê o exterior.
“Bianco, apesar de não ser o narrador de sua história, detém o ponto de vista do texto, usurpando a voz na profusão incessante das analepses (técnica narrativa que consiste em relatar acontecimentos anteriores ao tempo presente da história ou mesmo anteriores ao início da ação). Bianco também se serve de um espaço para difundir, com liberdade, seu ponto de vista com respeito ao rearranjo da realidade. (...) Intervindo, primeiramente, no ponto de vista da história, posteriormente Bianco monopoliza a ação e o desenvolvimento da narrativa. Essa ilusão narrativa, já que se trata de um narrador heterodiegético, se constrói devido ao fato de o narrador gradativamente se eclipsar em benefício da ação do protagonista. Os recursos das analepses beneficiam a indefinição de qual voz se ouve no texto. Algumas analepses se manifestam como monólogo interior ou segundo o ponto de vista da personagem; quanto a elas, o conflito se manifesta quando não se distingue a “voz” da personagem da voz do narrador, devido à indefinição entre monólogo interior e discurso indireto livre. Bianco, por sua vez, ultrapassa os limites de mera personagem narrada e se coloca conjuntamente ao narrador, promulgando a estética saeriana do conflitante espaço entre realidade e ficção. (Mota 2011)
Os
parágrafos longos, as descrições minuciosas e coloridas da paisagem, das
roupas, dos corpos (de Gina grávida, de Garay-Lopez sendo tomado pela febre
amarela), dos pensamentos e estados emocionais de Bianco, ou de determinadas
cenas são bastante marcantes na obra. Destaque para as cenas da passagem do
bando de cavalos selvagens (p 25-28) e da cena em que vê Gina observando o
cavalo tentando cobrir a égua no curral de sua casa (p.95-98). O índio Waldo e
seus versos proféticos, em dísticos octossílabos, é uma história dentro da
história, que corre paralela e que anuncia o real: Hic Incipti Pestis (Aqui
começa a peste). Há pouco espaço para o negacionismo.
Segundo
Romano (tradução livre), ‘o elemento histórico se articula com a crítica à
representação da realidade a partir da noção de causalidade. O título alude a
esse conceito, já que ‘ocasión’ significa ‘causa ou motivo porque se faz ou
acontece uma coisa (se trata da segunda acepção da palavra; ecos da primeira
acepção ‘oportunidade de tempo ou lugar, que se oferece para executar ou
conseguir uma coisa’ ressoam na interpretação dada sobre o espaço da planícia e
o tempo da segunda metade do século XIX como propícios para que deles brote o
relato). Contra a concepção lógica, histórica, linear e progressista da
modernidade, ‘A Ocasião’, desde o título, postula outra relação, distinta da
lei da causalidade, entre os acontecimentos. Trazendo essas ideias para um
plano mais concreto, e de acordo com a afirmação de Saer de que o uso do
passado na narrativa sempre tende a marcar a persistência de certos problemas
no presente, ‘A Ocasião’ tem como cenário uma época em que havia crença cega na
possibilidade de um progresso ininterrupto baseado na prosperidade material, o
que não está muito distante da atitude triunfalista e confiante de nossas
sociedades de consumo. Nessa linha, uma das mensagens costuradas no romance
poderia ser resumida pelas palavras do escritor e crítico literário francês
Blanchot: ...quanto mais se afirma o mundo como um futuro, um dia da verdade
onde tudo terá valor, onde tudo terá sentido, onde tudo ser realizará sob o
domínio do homem e para o seu uso, mais parece que a arte deva descer até o
ponto em que nada tenha sentido, mais importante que mantenha o movimento, a
insegurança e a desventura do que escapa de toda a percepção e de todo o fim. O
artista e o poeta receberam a missão de nos recordar obstinadamente sobre o
erro, de nos orientar por esse espaço onde tudo o que propomos, tudo o que
adquirimos, tudo o que somos, tudo o que se abre sobre a terra e o céu, retorna
a sua insignificância, aproxima-se do não ser e da não verdade, como se dali
surgisse a fonte de toda a autenticidade’ ( …cuanto más se afirma el mundo
como futuro y el pleno día de la verdad donde todo tendrá valor, donde todo
tendrá sentido, donde todo se realizará bajo el dominio del hombre y para su
uso, más parece que el arte deba descender hacia ese punto donde nada aún tiene
sentido, más importante se hace que mantenga el movimiento, la inseguridad y la
desventura de lo que escapa de toda percepción y de todo fin. El artista y el
poeta han recibido la misión de recordarnos obstinadamente el error, de
orientarnos hacia ese espacio donde todo lo que nos proponemos, todo lo que
hemos adquirido, todo lo que somos, todo lo que se abre sobre la tierra y el
cielo, retorna a lo insignificante, donde lo que se aproxima es lo no-serio y
lo no-verdadero, como si a lo mejor surgiese de allí la fuente de toda
autenticidad) (p. 236). (ROMANO,1999)
MOTA,
Raquel Alves. A voz poética dos protagonistas: a (re)construção do real em La
ocasión, de Juan José Saer, e em Dom Casmurro, de Machado de Assis. 2011;
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/view/3723)
MOTA,
Raquel Alves. O ESPAÇO DE ‘LA GRANDE’ DE JUAN JOSÉ SAER POR MEIO DE
PERSPECTIVAS DISTÓPICAS: OS CONFLITOS QUANTO À POSSIBILIDADE DA EXPERIÊNCIA NO
MUNDO. Revista de Ciências Humanas, Vol. 19, n. 1 – Jan. – Jun./2019
(https://periodicos.ufv.br/RCH/article/view/9186)
MOTA,
Raquel Alves. Perspectiva fenomenológica de Juan José Saer: a discussão do
realismo no espaço da lhanura. Caligrama: Revista de Estudos Românicos, [S.l.],
v. 23, n. 1, p. 79-98, maio 2018. ISSN 2238-3824. Disponível em:
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/caligrama/article/view/11913>.
Acesso em: 12 jun. 2022.
ROMANO,
E. . LA OCASIÓN PARA NARRAR HISTORIA, REALIDAD Y ALEGORÍA EN UN TEXTO DE JUAN
JOSÉ SAER, NRFH, XLVII (1999), núm. 1, 99-119
(https://nrfh.colmex.mx/index.php/nrfh/article/view/2085/2076)
Artifícios
da criação: uma conversa com Juan José Saer
https://doi.org/10.1590/S0101-33002005000300012. NOVOS ESTUDOS 73, NOVEMBRO
2005.
ANA
CECÍLIA OLMOS. Contra a civilização e a barbárie. Folha de São Paulo, 03 de
julho 2005. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0307200519.htm
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