terça-feira, 8 de novembro de 2022

A vergonha - Annie Ernaux

Por Christiane Girard



    A escrita como forma do vivido, vida, obra e singularidade.   

Para compreender melhor a obra de Ernaux é necessário pensá-la junto com a história de vida da autora. É a partir desse cenário que a obra se constrói. A obra é um produto dessa realidade e permite uma interpretação sem fim do que foi vivido. Numa entrevista, a autora expressa essa ideia de maneira precisa: “Eu escrevo a vida e vivo a escrita”.

Annie Ernaux nasceu em 1940, em Yvetot, cidade localizada na região da Normandie (França), durante a segunda guerra, filha única de um casal de origem camponesa, que quando jovens foram operários e depois comerciantes. O que é valorizado por eles nessa última atividade é o fato de não terem chefe. Faz parte de um desejo de ascensão social.

Eles têm um comércio no bairro, ou seja, seus clientes são seus vizinhos. Acoplado ao café eles têm uma mercearia. O café é frequentado entre outros clientes pelos trabalhadores da construção civil, pelos moradores mais solitários e pelos alcoólatras do bairro. Vivem num apartamento sem conforto que é colado ao café. Não há banheiro, não há chuveiro. Assim, mesmo, é o mundo da Annie, seu mundo não questionado até que encontra o mundo da escola.

Sendo filha única, foi possível para os pais que ela frequentasse a escola privada religiosa da cidade. Há uma possibilidade de obter bolsas no quadro das obras sociais educativas, oportunidade que ela pôde aproveitar já que era excelente aluna e sua mãe era uma católica fervorosa. Na grande maioria lá vão os filhos da burguesia da província.

Oficialmente, a escola pública não oferece ensino religioso, de fato, com sua forma de escrever (escrita realista) ela revela ambiguidade da realidade da democracia francesa daquela época: os ricos e as pessoas de renome se socializam no mesmo espaço. A convivência interclasse não é favorecida. É difícil depois de ter lido “a distinção" de Bourdieu deduzir outra leitura. O que Annie vai mostrar é o caminho para reencontrar a emoção, a sensação, a experiência do que foi vivido (por exemplo, a vergonha) produto de um contexto e de uma história singular. Essa forma de escrever é perturbadora porque não permite contestar os fatos descritos já que representam experiências, representam a própria vida.

Na escola, rapidamente, ela vai perceber seu lugar no meio das outras alunas: o lugar das mal-educadas, no sentido próprio da expressão. Aquelas alunas que não dispõem de capital cultural. Não conhecem as regras e os costumes de classe. Os padres organizam as confissões semanais e lhe parece que apenas ela é suja e cometeu pecados graves, apenas ela parece ser agitada pelas emoções sexuais da puberdade (ver neurose de classe). Nas camadas populares as crianças amadurecem mais cedo. Na burguesia parecem protegidas mais tempo do contato com a realidade.

Annie é a melhor aluna da sala durante toda a escolaridade. Ler, escrever sempre fará parte de sua vida, o que lhe permitirá cursar letras na universidade. Até agora é interessante notar que a vida dela que estou resumindo é aquela descrita nas obras. Os livros são historicidade de seu percurso. Ela decide ser professora e passa brilhantemente nos concursos necessários. Assim, mesmo no coração permanece a certeza de não estar no lugar previsto por alguém como ela. A noção de trânsfuga de classe se enrijece.

Viver da escrita é para ela durante muito tempo impensável. Ela não pertence ao mundo de quem escreve. Por essa razão, seu trabalho de professora lhe permite escrever sem a tensão de ter uma atividade reservada aos letrados. Ela começa a escrever aos 19 anos e se casa com um jovem de família da burguesia da província com quem teve dois filhos. Durante esses anos de vida familiar ela interrompe a escrita, mas diz saber que quando voltar a escrever com seu estilo de escrita que poderíamos comparar ao “cinema realité”(documentário ao vivo), ela provocará uma separação. Efetivamente, ela faz o livro e se separa do marido, mas nunca mais deixará de escrever.

 A problemática da obra

Sua problemática é a consciência de estar morando em dois mundos! Mas, sobretudo, o preço que se paga por isso. Os lugares de origem e a socialização neles não podem ser arrancados. É uma raiz que faz parte da árvore que somos. Deve-se acrescentar a esse fato que existe um sentimento ambivalente de traição à família de origem nos casos de trânsfugas de classe. Uma ambivalência que se expressa por não poder fugir do peso de ter vergonha de seus pais quando se ascende a uma classe superior. Eles não conhecem os códigos, aparecem como vulneráveis e, consequentemente, não protegem seus filhos, pelo contrário, os desnudam. É uma violência.

Entre outros aspectos a vergonha de ter vergonha de quem amamos. Uma violência de classe lida além do marxismo. Vivida, observada, a escrita de Annie Ernaux é a matéria dessa violência. Sua escrita é concreta, sem florear, sem bálsamo para acalmar. Toda a sua obra expressa essa tensão. Não se trata de uma obra intimista. É uma análise preciosa das dinâmicas sociais coletivas. É uma obra onde o social é responsabilizado, não culpabilizado. A autora não conta sua história pessoal, ela compartilha o mundo que viveu de 1940 até os dias atuais a partir do seu lugar. A esse respeito sugere-se a leitura do livro “Os anos”.

Ela compartilha por meio da sua obra a leitura dos valores, a cultura letrada e popular, os acontecimentos do momento e é impossível não interpelar o leitor, sobretudo quando as gerações são próximas. Por exemplo, ela explica que quando está escrevendo um dos seus livros está acontecendo a guerra em Sarajevo. Mesmo não sendo tema da obra, a autora não é indiferente a esse fato, que considera importante para compreender a época onde se escreve o texto.

Nos estudos de sociologia clínica percebe-se que muitas perturbações psíquicas têm origem social tal como a neurose de classe que se vivencia de diversas formas. Uma das manifestações é que os filhos são incentivados a galgar posições valorizadas, mas quando conseguem acabam afastando-se da família de origem, a mesma se distanciando igualmente por não possuir as regras do novo meio dos filhós. E os filhos passam a viver a dor de não pertencer por inteiro a nenhum dos grupos.

A obra de Annie Ernaux foi visitada pela sociologia clínica e o estudo foi muito precioso. Nesse campo dizemos que o indivíduo é produto de uma história da qual ele tenta ser Sujeito, produzindo por sua vez história. Isto significa que ser consciente de sua história é entender o que nos submete. Annie usa várias vezes a frase bíblica: a verdade te libertará. E ela busca sua verdade por meio da escrita.

A verdade da emoção em primeiro lugar e depois a palavra. É o que sentimos, a verdade da experiência do sentir. Por exemplo, quando a mãe de Annie diz “seu pai morreu”, o que nos faz captar a cena e vivenciá-la é o trecho em que a autora descreve a mãe apertando em suas mãos o pano de prato! Uma figura do desamparo. Algo familiar para suportar o estranho. Não é uma clínica do sujeito, é uma clínica do social. No caso citado, o pano de prato se reporta à convivência com o marido na cozinha, trata-se do marido, o companheiro com quem se compartilhava as refeições onde se vivia na cozinha, a convivência subtraída de repetente e o desamparo, o pano é apertado na mão.

A obra é grande: la place, la femme gelée, l’evenement, les armoires vides, passion simple, les années.... Como classificar uma obra tão singular? Considera-se que uma escrita realista tem sido uma opção. A autora não escreve romances, não há ficção, nem autobiografia. Mas, então, é literatura? Ela mesma diz: é sociologia, é história, é literatura. Felizmente ela não se importa mais, diz ela, com o purismo do campo. Ela sabe que é literatura viva e não poderia viver sem escrever.

Ela tem muitos detratores masculinos, as críticas são que ela escreve como os homens escrevem (?!) ou, outra crítica, consiste em acusá-la de colocar em cena uma personagem de “midinette” (adolescente atrasada) no livro “la passion simple”. O que ela responde, além do que já foi dito, é que sua maior alegria é quando um leitor diz que ela escreveu a história dele. Revela, também, o machismo atual. No entanto, agora que lhe foi atribuído o Prêmio Nobel de Literatura, o quanto é uma é literatura inovadora.

Gostaria de acrescentar duas linhas sobre a obra. A sua originalidade no estilo de escrita é uma crítica social na concepção de uma sociologia crítica e sociologia compreensiva (levar em conta o sentido que as pessoas dão a suas ações). Na sociologia clínica, já que a autora diz que suas obras são também obras sociológicas, tentamos evitar o perigo do vivido sem conceito e do conceito sem vida. Essa metodologia tende a dialetizar a relação entre a análise e a experiência evitando cometer um erro: estar no plano do vivido, como se ele tivesse seu sentido em si. 

O saber do homem não vem de seu interior, mas é uma ilusão empirista que assimila o real a percepção subjetiva do mesmo. Mergulhar no vivido permite produzir representações, ou seja, são expressões da relação imaginária que cada indivíduo tem com suas condições de existência. A análise dessas condições é indispensável para compreender o vivido. E é para guiar essa análise que a teoria é necessária. Os conceitos que nos parecem importantes na obra: o vivido, as experiências, o concreto, a historicidade.

O livro “A vergonha”

O estudo da vergonha foi e é um tema fecundo a estudar tanto na literatura como no campo das ciências sociais pelos múltiplos níveis de reflexão que permite. O livro começa com um quase crime presenciado pela narradora quando tinha doze anos. Seus pais são apresentados por ela do ponto de vista ideológico e social. Ela os situa economicamente, culturalmente e mostra a trajetória social deles. São percursos fiéis da história. Na relação de casal, a mãe parece ter autoridade e o pai seria mais submisso.

Entretanto, em um domingo de junho de 1952, o pai fora de si tenta matar a esposa. A filha (Annie Ernaux) descobre a cena e aterrorizada pede para parar. Nunca mais a cena será esquecida. Há um antes e um depois do ocorrido. O que foi descortinado é a realidade de seu mundo, no qual ela é testemunha e atriz. Ela vive a experiência e a compartilha. O “JE” (“eu” em português) da narrativa permite uma interação. Para o leitor é fundamental. Não está no exterior, mas sim na relação com a escritora. Parece que antes daquele domingo de junho de 1952 ela era criança, depois já está num outro momento de vida, mas a marca deixada é como uma cortina que foi aberta e que não pode ser fechada.

Talvez seja isso que nos toca: o impacto do medo e da violência na experiência real de uma vida e a literatura restituindo exatamente o que queima ainda.

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