Comentários de Carlos Guido Azevedo
Muito interessante e qualificado
o livro de Alain Mabanckou com amplas inovações de estilo, grafia e sonoridade.
O livro foi escrito em francês respeitando a sonoridade de língua falada no
Congo. Não faz uso do ponto e nem inicia capítulo ou parágrafo com maiúscula.
Quebrando assim, algumas regras
da linguagem escrita e inovando no estilo, a fábula se desenvolve, cheia de pensamentos filosóficos e
questionamentos humanos através da voz de um porco espinho, que segundo a
tradição do Congo é um duplo animal, propriedade firmada pela tradição do Congo
como característica que cada pessoa carrega que pode ser pacífico ou nocivo e
que atende ao “outro ele mesmo” de cada um, numa visão muito psicanalítica do
alter-ego, como as especialistas do grupo poderão explicar.
A alegoria desenvolvida por
Nabanckou nas memórias do Porco-Espinho é uma prosopopeia na qual os animais
pensam e falam como humanos e carregam o pior da humanidade, compreendendo suas
dores e incertezas.
A confissão do Porco Espinho ao
grande Baobá após a morte de Kibandí do qual o porco falante era o duplo nocivo
é de uma humanidade sem precedente, com claras alusões ao remorso pela
sequência de assassinatos do qual ele julga ter participado, obrigado pela sua
condição de duplo nocivo, porque, ao fim e ao cabo, era obrigado a suprir a
fome de sangue do outro ele mesmo de Kibandí.
Relata sua formação no bando de
porcos-espinhos e a marcação constante que o porco mestre lhe aplicava, talvez
já soubesse que estaria talhado para ser duplo nocivo e lhe transmitia lições
que viriam a ser úteis para sua vida isolada. Dizia o mestre para que ele
viesse a aceitar seu destino: "de tanto esperar uma condição melhor, o sapo
ficou sem rabo para toda a eternidade”.
“A modéstia é as vezes um obstáculo que
nos impede de existir, temos de valorizar nossas próprias qualidades”.
“Eu sou
como um surdo que corre até perder o fôlego. Se virem um surdo correr, não
façam perguntas, sigam-no, pois ele não escutou o perigo, ele o viu”.
Participou efetivamente, conta
ele ao Baobá, de 99 assassinatos e todos realizados com perícia de mestre com o
lançamento de seus espinhos mais mortíferos, e em nenhum dos casos deixou
qualquer tipo de prova ou rastro que incriminasse seu original humano.
Através de sua dualidade como
duplo nocivo ele descobriu a leitura e o interesse pelas grandes questões da
humanidade que lhe eram passados diretamente pela mente do original humano.
Todo o desenrolar da vida de
Kibandí é repassada para o Baobá na digressão do porco-espinho seu duplo animal.
Nela se revela um ser rejeitado e sofredor que saiu da sua aldeia Mossaká com
sua mãe, após a morte do pai e foram viver na aldeia Sêkêpembê, onde viveram
como estrangeiros, sem poder participar das reuniões e festas da aldeia.
Especializado em fazer telhados,
Kibandí foi um bom profissional, mas, feio como um percevejo, magro como um
prego de moldura de foto, foi rejeitado por Kimanú sua pretendente e por estas
e outras acabou alcoólico viciado em vinho da palma.
Seu sofrimento acabou
desenvolvendo sua capacidade de desejar o mal aos outros por qualquer que fosse
o motivo, desencadeando a ação do duplo nocivo para alimentar seu “outro ele
mesmo” que desejava a morte de seus oponentes.
Nestas condições o porco espinho
falante desenvolvia a sua missão de assassinar através do lançamento de seus
espinhos mortais os inimigos de Kibandí, o que na tradição do Congo
correspondia a comer o inimigo, ou seja, desejar e provocar a sua morte.
A centésima morte seria a de dois
gêmeos, o que feria a tradição e a capacidade de ação do duplo nocivo e
trazendo a morte do original humano do porco-espinho e por consequência a do
seu duplo animal.
No entanto, está ele ali ao pé do
Baobá contando a estória e se descobrindo vivo e crendo que o Ser lá de cima o
quer para outras missões. Pois só por Ele é que pode acontecer isso dele estar vivo
e com todo este sentimento de remorso e autocomiseração. Afinal Deus existe.
Gostei e recomendo com louvor.
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