quarta-feira, 19 de setembro de 2018


TERRA E CINZAS
Autor: Atiq Rahimi

Editora Estação Liberdade Ltda. - S.Paulo – 2002 (78 páginas)
Resenha em  Setembro de 2018
Ma. Virginia de Vasconcellos

 
O autor Atiq Rahimi, sem dúvida, entende de guerras. Vivenciou seus horrores cedo em sua vida. Tinha apenas 17 anos quando a União Soviética invadiu seu país (1979), o Afeganistão. E durante a guerra, nos anos 80, fugiu rumo ao Paquistão, numa jornada que durou 8 dias, a pé. No Paquistão permaneceu durante um tempo e, em seguida, refugiou-se na França onde vive até os dias de hoje.

A Wikipedia nos conta que ele é nascido em Cabul, no ano de 1962. Estudou em uma escola franco-afegã e fala fluentemente o francês, embora seu primeiro romance, publicado em 1999 – que é este TERRA E CINZAS - tenha sido escrito em Dari, língua falada no norte e noroeste do Afeganistão.

Não só é formado em Letras, mas também em Cinema. E se destacou  na produção e direção de documentários e filmes longos. Entre eles, foi diretor de um filme baseado neste conto, estreado no Brasil, em 2004. [1]

 Atiq Rahimi, a meu ver, consegue uma proeza.
Contestando o nosso Paulinho da Viola, o autor “explica a vida num samba curto”...[2]  Como explicar um grande amor num samba curto? Diz nosso poeta Paulinho.
O grande amor aqui é substituído pela grande dor, e o samba curto pelo conto TERRAS E CINZAS.

O enredo é curto sim – mínimo, um fiapo mesmo. Porém denso, e recheado de pura melancolia e sensibilidade. Rahimi relata o impacto da violência da guerra na alma e no espírito do ser humano.

Qual é esse enredo? Após a destruição de um vilarejo e de seus habitantes, um ancião sobrevivente  escapa com seu neto em direção à mina onde trabalha seu filho, pai dessa criança. Dastaguir, o avô, quer contar ao seu filho Murad sobre as perdas e compartilhar sua dor.

O narrador apresenta o personagem sofrendo suas angústias da primeira linha até o final da narrativa. Noite e dia, na vigília ou no sono, sono este carregado de pesadelos. Apenas pequenas tréguas são permitidas quando Dastaguir masca naswar, o tabaco com narcótico. Pra piorar, o neto ficou surdo, numa simbologia que parece dizer que a guerra silencia o mundo dos infantes.

Além de padecer com os fatos trágicos ocorridos, Dastaguir teme pela dor que vai causar ao filho ao lhe contar sobre a desgraça na família.

Na caminhada rumo à mina, ele vai encontrando os outros personagens.
Com exceção da mulher de Murad, que é uma imagem fugaz, é um cenário onde só aparecem homens. Alguns com atitude solidária como Mirza Kadir, mas sempre num tom de mágoa contida. No texto não  cabe o senso de humor, nem o feminino. É um ambiente onde “os mortos são mais felizes que os vivos” (pag. 38); pois, “a guerra não tem coração” (pag40).

Por fim, surge o contramestre da mina, que com seus dizeres, faz Dastaguir explodir em dor pungente e avassaladora.[3]

O final do conto fica em aberto. Será que Murad vai ao encontro de Dastaguir?
Ele chora e diz pra si: “Se ele vier te procurar você reconhece seu filho Murad. Se não, é porque você não tem mais Murad algum” (pag. 77). E deixa o ancião em perene agonia.

O estilo é fluido, poético e de fácil leitura. Sem cair no sentimentalismo. Os detalhes de roupas, objetos e paisagem não importam muito. O que conta é o sofrimento que não desaparece – até o final da narrativa – narrativa esta que o autor parece fazer questão de deixar sem fecho. Pra frisar que é uma dor que não passa - nunca.

Concordo com os que dizem que esse conto é um PANFLETO ANTI-GUERRA.
A mensagem parece evidente e clara, mostrando que a destruição de fora pode ser monstruosa, mas a de dentro, a devastação no coração e na alma dos atingidos, pode ser incessante e eterna.[4]

Embora essa mensagem seja valorosa e fundamental, é difícil recomendar esse livro.
Porque este conto é como SOL DE INVERNO: ilumina, mas não aquece”. [5] Como explica o dito popular...
Não deixa esperança nem leveza. O horror da  guerra rouba qualquer possibilidade de diversão.

E inserindo no contexto no qual vivemos, na chamada “sociedade do espetáculo”, de super- valorização do entretenimento, um texto como esse não me deixa cantar o samba do Paulinho da Viola até o fim. Um samba que termina assim:

Ontem uma rocha fria,  hoje assim exposto, deixando sem medo entrar a vida......
“Rumo ao futuro, certo de meu coração mais puro.....

Esse conto não permite a vida sem medo e nem meu coração mais puro - rumo ao futuro.
 


[1] Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 2004,  o autor afirma que  O livro é íntimo demais, interiorizado. Minha ideia foi ir além dele”. 
[2] NUM SAMBA CURTO – Paulinho da Viola “Quem quiser que pense um pouco, eu não posso explicar meus encontros. Ninguém pode explicar a vida num samba curto
[3]A dor se transforma em bomba dentro do peito, uma bomba que explode num belo dia e te faz explodir também” (pag 30.); “Agora tua tristeza tomou forma, ela se transformou em bomba, ela vai explodir, ela vai te fazer explodir” (pag 73).
[4] Associar com o personagem que se torna terrorista no livro “Cicatriz de David” de Susan ABULHAWA lido pelo grupo em 2015, e também com o livro do Conrad – “O senhor das trevas” – que trata do “opressor de plantão” – no caso, o colonizador, também lido pelo grupo.
[5] Dito popular: “Conselho de velho é igual a Sol de inverno, ilumina, mas não aquece

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