quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Terra e Cinzas


de Atiq Rahimi

Comentários de Carlos Guido Azevedo
Enredo:
Os aviões russos destruíram mais uma aldeia afegã, dessas tantas que ouvimos no noticiário sem prestar atenção ao seu nome complicado e ao número de vítimas civis.
Mas nesta aldeia mora a família de Dastaguir que assiste estupefato a destruição de tudo ao redor, vê sua mulher, sua nora e os demais da família consumidos pelo fogo e pelas bombas, salvos apenas o próprio e o neto Yassin. Não há mais nada a fazer além de ir ao encontro do filho Mourad que trabalha na mina para dar a triste notícia e mostrar seu filho sobrevivente, embora surdo pelo troar das bombas.
Dastaguir tem um problema de como contar a Mourad essa triste realidade, tem medo da brusca reação dele pelo seu gênio violento. Já chegou a passar seis meses preso por ter aberto a cabeça do vizinho Yagoub Shab que tentara seduzir sua mulher.
Agora Dastaguir vai para a mina e se concentra em busca da frase perfeita para falar ao filho. É um duelo entre a lógica e a emoção. Evidentemente, nenhuma frase é bastante boa para explicar o inexplicável.
Dastaguir chega à mina e tenso, pede ao capataz que o leve ao filho, mas ele está na hora de trabalho. É informado que o filho já soube do ocorrido.
Esta informação cai como um raio sobre Dastaguir que esperava um comportamento radical do filho em defesa da família, esperava que ele fosse à aldeia enterrar seus entes queridos e nada disso aconteceu. Grande decepção de vida. Grande perda emocional. O filho não é quem ele pensava que era. Não é seu filho. Não merece mais sua atenção.  Por mais que seja informado dos atos de revolta e de autodestruição do filho. Por mais que lhe sejam contados os atos de loucura e o esforço do capataz para fazer o filho voltar à razão e retornar ao trabalho, nada disso faz mais sentido para Dastaguir, que resolve ir embora sem esperar seu filho. Ele já não é mais seu filho.
Comentários:
Um texto espetacular, desenvolvido de modo seco e direto com um PV onisciente, com visão de palco como se fora uma peça de teatro onde o dramaturgo descreve a cena, sempre crua, seca e simples, os diálogos que são poucos e densos e os próprios pensamentos dos personagens.
Tem como tema central a tragédia do Afeganistão durante uma das tantas guerras que esse povo vem sofrendo, dando relevância à inquebrantável coesão familiar e a dureza do coração do povo afegão em relação à ausência de flexibilidade quanto aos seus valores e comportamentos sociais e familiares.
O espaço tempo em que se desenvolve a trama é de uma simplicidade franciscana e abre o vazio a ser preenchido com o conflito psicológico e o tratamento da dor e do ódio naturais nesse ambiente conflagrado.
A formação do enredo é lenta e feita através dos pensamentos de Dastaguir que rememora aos poucos o circo de horror dos bombardeios a destruição da vila e a morte dos seus familiares.
A relação avô e neto é uma sub trama que dá emoção ao texto, no geral, muito seco e triste.
Os poucos diálogos do enredo são quase monólogos porque o outro está quase sempre ausente em seus próprios pensamentos. O comerciante Mirza Qadir é um oásis de bom senso neste ambiente de loucura e acaba sendo um apoio para abrigar, por algumas horas Yassin,  para evitar que ele, surdo pelos bombardeios e, em sua inocência, acreditando que os russos roubaram a voz das pessoas, esteja presente no momento do traumático encontro com o pai.
Nele o comerciante descreve o processo de formação da dor no interior de cada um:
“Sabes uma coisa paizinho, a dor acaba por fundir e sair pelos olhos, ou torna-se afiada como uma lâmina e sai pela boca, ou então, transforma-se numa bomba dentro de nós, uma bomba que explodirá em belo dia e te fará explodir a ti...”.
No geral, o andamento do enredo obedece fielmente à descrição da jornada de Dastaguir até o clímax de sua perplexidade com o fato de seu filho já ter sido informado do ocorrido e não ter tomado as ações que sua expectativa consolidara em seu interior.
Daí a negativa suprema: “não é o meu filho, não é mais o meu filho, assim não agiria Mourad de Dastaguir. Mourad já não existe. Mourad desapareceu...”.
Para nós brasileiros o mesmo anti clímax de Juca Pirama de Gonçalves Dias:  "Tu choraste em presença da morte? Na presença de estranhos choraste? Não descende o cobarde do forte; Pois choraste, meu filho não és! Possas tu, descendente maldito, De uma tribo de nobres guerreiros, Implorando cruéis forasteiros, Seres presa de vis Aimorés.”
Relevante quando o velho trôpego e fora de sí, sai da mina e, tendo deixado sua caixa de naswar para o filho como prova de vida, apanha uma pitada de terra cinzenta e a deposita na língua, como última cena do enredo.

Gostei muito. Bom conhecer bons escritores.
Recomendo, sem restrições.

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