de J. M. Coetzee
por Priscila Fernandes Costa
Desonra conta a história de David Lurie, um professor
universitário de 52 anos, divorciado, pai de Lucy, filha única de seu primeiro
casamento e que vive sozinho num apartamento na Cidade do Cabo, na Africa do
Sul.
Sua vida transcorre quase que exclusivamente ligada ao trabalho. Professor-adjunto no departamento
de Comunicação da Universidade da Cidade do Cabo, ele dedica diariamente muitas
horas do dia a uma disciplina que considera ridícula. Como não tem nenhum
respeito pela matéria que ensina, reconhece que também não causa qualquer
impressão – positiva ou negativa – nos alunos. Passa-lhes a idéia de que “a sociedade
humana criou a linguagem para poder comunicar seus pensamentos, sentimentos e
intenções”, mas sua opinião pessoal
– que ele guarda somente para si – é de que a origem da fala está no canto, e
as origens do canto na necessidade de preencher com som o imenso vazio da alma
humana. Continua ensinando porque é assim que ganha a vida e também porque,
segundo ele, aprende a ser humilde e faz com que perceba seu papel no mundo. “A ironia não lhe escapa: aquele que vai
ensinar acaba aprendendo a melhor lição, enquanto os que vão aprender não
aprendem nada.” Outrora foi professor de línguas modernas e ao longo de
seus 25 anos de carreira publicou três livros, mas nenhum deles lhe trouxe
nenhuma notoriedade. Nos últimos anos tem acalentado o desejo de um trabalho
sobre Byron, uma ópera de câmara, e “enquanto
enfrenta as aulas de comunicações, frases, melodias e fragmentos da obra ainda
não escrita flutuam por sua cabeça”.
Se considera um lobo solitário por opção e diz ter resolvido
o problema do sexo, pois todas as
quintas feiras encontra-se com Soraya, uma garota de programa alta e magra, por
quem diz começar a nutrir uma afeição
que, acredita, pode não ser amor, mas que se aproxima muito deste afeto. Na
área sexual, diz ter um temperamento
intenso, mas nunca passional. Passou a infância em uma família de mulheres:
mãe, tias e irmãs; mais tarde elas foram
substituídas por amantes, esposas e uma filha. Tornou-se, portanto, um
apreciador de mulheres, um mulherengo. Seu porte físico deu-lhe um certo
magnetismo e teve bastante sucesso com o sexo feminino. Mas de repente, tudo
isso acabou. Da noite para o dia perdeu seus poderes de sedução. Agora, quando
quer uma mulher, tem que fazer um grande esforço para conquistá-la e muitas
vezes precisa comprá-la. Passou a viver a sexualidade numa promiscuidade
ansiosa e agitada, transando com as esposas de seus colegas, com turistas que
encontrava em bares ou com prostitutas.
O relacionamento com Soraya termina depois que, casualmente, ele a vê na rua acompanhada de
dois meninos..., seus filhos. Um mal-estar crescente surge, então, entre os dois,
ela passa a trata-lo com uma frieza cada vez maior, como apenas mais um
cliente, até que finalmente pede que ele nunca mais lhe telefone.
Num fim de tarde, saindo da Universidade, encontra-se com uma
de suas alunas, Melanie Isaacs. Aproxima-se dela, puxa conversa e a seguir
convida-a para tomar alguma coisa em sua casa; ela aceita. Em casa abre uma
garrafa de vinho, serve bolachas e queijo e ao som de um quinteto de Mozart
desenvolve um diálogo cheio de insinuações e subentendidos. Dois dias depois procura
nos arquivos do departamento os dados pessoais de Melanie. De posse de seu
telefone, convida-a para almoçar de maneira tão incisiva que não lhe deixa
nenhuma possibilidade de recusa. Depois do almoço, ele a leva novamente para sua
casa e no chão da sala faz amor com ela. A partir deste encontro, Melanie se
submete ao assédio de Devid com um misto de mal-estar e lisonja, mas sobretudo
com passividade. Tenta fugir das investidas do professor, mas ao mesmo tempo
cede ao seus pedidos para encontrá-la; falta às suas aulas, mas o recebe quando
ele aparece em sua porta. Lurie está tomado de desejo por Melanie e por isto
mesmo nada o detém. Reconhece tratar-se de um grande erro, mas vai em frente
mesmo assim.
Passados alguns dia David é convocado para uma reunião com o
vice-reitor quando, então, fica sabendo que Melanie havia registrado uma queixa
de abuso sexual contra ele. Quando questionado a respeito, Lurie despreza os
códigos politicamente corretos do ambiente universitário, assume toda a culpa,
recusa qualquer possibilidade de se defender e aceita passivamente a demissão
imposta pela direção da Universidade. Cai em desgraça – que aliás é a tradução literal do título do
livro: Disgrace – e decide, então, deixar
a Cidade do Cabo indo para o interior, onde pretende passar uma temporada na
fazenda de sua filha Lucy, no Cabo Leste.
A filha vive sozinha nesta propriedade, onde toca um hotel
para cães, cultiva flores – narcisos - e
alguns legumes que vende no mercado local. Conta apenas com a ajuda de Petrus,
um nativo e empregado seu, que se
entitula cuidador de cachorros e jardineiro.
David tenta aos poucos se acomodar à vida no campo: ajuda
Lucy na fazenda, cuida dos cães e ainda trabalha como voluntário numa clínica
veterinária de propriedade de uma amiga da filha. Pai e filha dão longas
caminhadas com os cachorros pelos arredores da fazenda, e David aproveita estes
momentos para expressar sua preocupação com a segurança de Lucy, que optou por
viver sozinha em um lugar tão distante e perigoso. Pede que ela volte para a cidade, propõe comprar-lhe uma casa, mas
Lucy não tem nenhuma intenção de deixar suas terras.
Certo dia. Durante a caminhada que fazem diariamente, cruzam
com dois homens e um rapaz que passam apressados por eles. Ficam apreensivos
com o aparecimento daquelas três figuras, mas, mesmo assim, seguem em frente.
Quando voltam pra casa percebem que os cães estão agitados e que os três estão
lá esperando por eles; dizem que precisam entrar na casa para telefonar, pois a
irmã de um deles está em trabalho de parto. Lucy entra na casa com os homens e
pede que o pai espere do lado de fora. Passados alguns minutos sem que saiba o
que está acontecendo lá dentro, David entra na casa e imediatamente recebe um
golpe na cabeça, desmaia e é arrastado até o lavabo, onde fica preso e
impossibitado de ir em socorro da filha. Ao recobrar os sentidos, grita por
Lucy várias vezes, mas não obtem nenhuma resposta. Ouve passos no corredor, e a
porta do banheiro se abre. Um homem surge em sua frente, joga álcool combustível
em seu corpo, acende um fósforo e o tranca
novamente. David consegue apagar o fogo com a água da privada, mas sofre
queimaduras no couro cabeludo. Quando a porta é aberta novamente vê Lucy de
costas para ele. O saldo desta tragédia é que Lucy, além de ter sido estuprada
pelos homens, descobre, algum tempo depois, que está grávida. Ela mergulha,
então, na escuridão da depressão e da
apatia e parece não se interessar por nada em sua volta; mais ainda, recusa-se a falar no acontecido, e até mesmo
ser examinada por um médico. De forma categórica diz ao pai que vai ter a criança que está
gestando.
De maneira trágica e dolorosa David entra em contato com a
realidade da Africa do Sul pós-apartheid, onde é “um risco possuir coisas, um carro, um par de sapatos, um maço de
cigarros. Coisas insuficientes em circulação, carros, sapatos, cigarros
insuficientes. Gente demais, coisas de menos”. A promessa de que o fim do
apartheid significaria uma vida melhor para todos está longe de acontecer.
Ainda hoje a sociedade sul-africana convive com a miséria, a injustiça e a
desigualdade.
Confrontado com o desejo de vingança de seus agressores, mas
impotente para levar adiante seu intento, David sente que seu prazer de viver
expirou e que ele começa a flutuar para o seu fim. Reconhecer essa nova
realidade o deixa desesperado: “O sangue
da vida está abandonando seu corpo e o desespero está tomando seu lugar, um
desespero que é como um gás, inodoro,
insípido, impalpável.“ O mundo no qual estão vivendo é constituido de ódio
e brutalidade, ressentimento e desejo de vingança, e também de impotência, apatia e submissão. Sujeição
e submissão por décadas de escravidão; é
a desforra daqueles que durante várias gerações foram despojados de suas terras
e de suas condições de cidadãos. Pela
primeira vez, Lurie tem uma amostra de como será ser velho, cansado até os
ossos, sem esperança, sem desejos, indiferente ao futuro.
Parece que somente depois de testemunhar o estupro de sua
filha, e de sofrer um ataque físico, David consegue refletir sobre as consequências
de seu caso desastroso com Melanie. A
violência, então, pode ser exercida de várias maneiras, pode até mesmo aparecer
travestida de desejo amoroso. David reconhece, ainda, que o abuso e a violação
do outro não estão restritos apenas à esfera sexual. Procura, então, o pai da
ex-aluna e depois de muitos rodeios se
desculpa com ele. Mas as coisas não são tão simples assim. O senhor Isaacs lhe
mostra que pedir desculpas quase nunca é suficiente para apagar os danos
provocados pelos abusos infringidos, seja no nível coletivo, seja de maneira
individual.
Os fenômenos
de violência são muito complexos e acontecem em vários esferas: psicológica,
física, social e simbólica. O assédio sexual, até bem recentemente, não era reconhecido como crime. Esta modalidade
de violência caracteriza-se por abordagens grosseiras, ofensas e propostas
inadequadas que constrangem, humilham, amedontram e tentam reduzir o outro, sobretudo
as mulheres, a um objeto passivo. Por meio da força os homens
abusadores/estupradores reafirmam seu papel de gênero tradicional dominante. Os
estupradores justificam seus crimes dizendo que só se apropriam do corpo
daquelas mulheres, por exemplo, que se mostram disponíveis. Com isto tentam
passar a ideia de que nada mais fazem do que atender ao desejo de suas vítimas.
Quando encontram a recusa por parte delas, entendem isto como um artifício de sedução: a
mulher que diz “não”, na verdade quer dizer “sim”.
Na maioria dos casos de estupro – mas talvez também nos casos
de violência em geral – a motivação do estuprador/agressor parece ser a
degradação e a dominação da vítima. O prazer obtido não provém do ato sexual em
si mesmo, mas do fato de ter reduzido sua vítima em mero objeto de gozo, um
resto, dejeto.
Numa linguagem fluída, narrada em terceira pessoa Coetzee nos
traça um retrato não apenas da Africa do Sul, mas também do Ocidente, com seus
problemas intratáveis e insolucionavés. Uma história densa e real, recomendada
para quem pode suportar a crueza da vida e das relações humanas.
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