terça-feira, 11 de outubro de 2016

DESONRA


de J. M. Coetzee

por Priscila Fernandes Costa

Desonra conta a história de David Lurie, um professor universitário de 52 anos, divorciado, pai de Lucy, filha única de seu primeiro casamento e que vive sozinho num apartamento na Cidade do Cabo, na Africa do Sul. 
Sua vida transcorre quase que exclusivamente ligada ao  trabalho. Professor-adjunto no departamento de Comunicação da Universidade da Cidade do Cabo, ele dedica diariamente muitas horas do dia a uma disciplina que considera ridícula. Como não tem nenhum respeito pela matéria que ensina, reconhece que também não causa qualquer impressão – positiva ou negativa – nos alunos. Passa-lhes a idéia de que “a sociedade humana criou a linguagem para poder comunicar seus pensamentos, sentimentos e intenções”,  mas sua opinião pessoal – que ele guarda somente para si – é de que a origem da fala está no canto, e as origens do canto na necessidade de preencher com som o imenso vazio da alma humana. Continua ensinando porque é assim que ganha a vida e também porque, segundo ele, aprende a ser humilde e faz com que perceba seu papel no mundo. “A ironia não lhe escapa: aquele que vai ensinar acaba aprendendo a melhor lição, enquanto os que vão aprender não aprendem nada.” Outrora foi professor de línguas modernas e ao longo de seus 25 anos de carreira publicou três livros, mas nenhum deles lhe trouxe nenhuma notoriedade. Nos últimos anos tem acalentado o desejo de um trabalho sobre Byron, uma ópera de câmara, e “enquanto enfrenta as aulas de comunicações, frases, melodias e fragmentos da obra ainda não escrita flutuam por sua cabeça”.
Se considera um lobo solitário por opção e diz ter resolvido o problema  do sexo, pois todas as quintas feiras encontra-se com Soraya, uma garota de programa alta e magra, por quem  diz começar a nutrir uma afeição que, acredita, pode não ser amor, mas que se aproxima muito deste afeto. Na área sexual, diz ter um  temperamento intenso, mas nunca passional. Passou a infância em uma família de mulheres: mãe, tias  e irmãs; mais tarde elas foram substituídas por amantes, esposas e uma filha. Tornou-se, portanto, um apreciador de mulheres, um mulherengo. Seu porte físico deu-lhe um certo magnetismo e teve bastante sucesso com o sexo feminino. Mas de repente, tudo isso acabou. Da noite para o dia perdeu seus poderes de sedução. Agora, quando quer uma mulher, tem que fazer um grande esforço para conquistá-la e muitas vezes precisa comprá-la. Passou a viver a sexualidade numa promiscuidade ansiosa e agitada, transando com as esposas de seus colegas, com turistas que encontrava em bares ou com prostitutas.
O relacionamento com Soraya termina depois que,  casualmente, ele a vê na rua acompanhada de dois meninos..., seus filhos. Um mal-estar crescente surge, então, entre os dois, ela passa a trata-lo com uma frieza cada vez maior, como apenas mais um cliente, até que finalmente pede que ele nunca mais lhe telefone.
Num fim de tarde, saindo da Universidade, encontra-se com uma de suas alunas, Melanie Isaacs. Aproxima-se dela, puxa conversa e a seguir convida-a para tomar alguma coisa em sua casa; ela aceita. Em casa abre uma garrafa de vinho, serve bolachas e queijo e ao som de um quinteto de Mozart desenvolve um diálogo cheio de insinuações e subentendidos. Dois dias depois procura nos arquivos do departamento os dados pessoais de Melanie. De posse de seu telefone, convida-a para almoçar de maneira tão incisiva que não lhe deixa nenhuma possibilidade de recusa. Depois do almoço, ele a leva novamente para sua casa e no chão da sala faz amor com ela. A partir deste encontro, Melanie se submete ao assédio de Devid com um misto de mal-estar e lisonja, mas sobretudo com passividade. Tenta fugir das investidas do professor, mas ao mesmo tempo cede ao seus pedidos para encontrá-la; falta às suas aulas, mas o recebe quando ele aparece em sua porta. Lurie está tomado de desejo por Melanie e por isto mesmo nada o detém. Reconhece tratar-se de um grande erro, mas vai em frente mesmo assim.
Passados alguns dia David é convocado para uma reunião com o vice-reitor quando, então, fica sabendo que Melanie havia registrado uma queixa de abuso sexual contra ele. Quando questionado a respeito, Lurie despreza os códigos politicamente corretos do ambiente universitário, assume toda a culpa, recusa qualquer possibilidade de se defender e aceita passivamente a demissão imposta pela direção da Universidade. Cai em desgraça – que  aliás é a tradução literal do título do livro: Disgrace – e decide, então, deixar a Cidade do Cabo indo para o interior, onde pretende passar uma temporada na fazenda de sua filha Lucy, no Cabo Leste.
A filha vive sozinha nesta propriedade, onde toca um hotel para cães, cultiva flores – narcisos -  e alguns legumes que vende no mercado local. Conta apenas com a ajuda de Petrus, um nativo e empregado seu, que se  entitula cuidador de cachorros e jardineiro.
David tenta aos poucos se acomodar à vida no campo: ajuda Lucy na fazenda, cuida dos cães e ainda trabalha como voluntário numa clínica veterinária de propriedade de uma amiga da filha. Pai e filha dão longas caminhadas com os cachorros pelos arredores da fazenda, e David aproveita estes momentos para expressar sua preocupação com a segurança de Lucy, que optou por viver sozinha em um lugar tão distante e perigoso. Pede que ela volte para a cidade, propõe comprar-lhe uma casa, mas Lucy não tem nenhuma intenção de deixar suas terras.
Certo dia. Durante a caminhada que fazem diariamente, cruzam com dois homens e um rapaz que passam apressados por eles. Ficam apreensivos com o aparecimento daquelas três figuras, mas, mesmo assim, seguem em frente. Quando voltam pra casa percebem que os cães estão agitados e que os três estão lá esperando por eles; dizem que precisam entrar na casa para telefonar, pois a irmã de um deles está em trabalho de parto. Lucy entra na casa com os homens e pede que o pai espere do lado de fora. Passados alguns minutos sem que saiba o que está acontecendo lá dentro, David entra na casa e imediatamente recebe um golpe na cabeça, desmaia e é arrastado até o lavabo, onde fica preso e impossibitado de ir em socorro da filha. Ao recobrar os sentidos, grita por Lucy várias vezes, mas não obtem nenhuma resposta. Ouve passos no corredor, e a porta do banheiro se abre. Um homem surge em sua frente, joga álcool combustível em seu corpo, acende um fósforo e o  tranca novamente. David consegue apagar o fogo com a água da privada, mas sofre queimaduras no couro cabeludo. Quando a porta é aberta novamente vê Lucy de costas para ele. O saldo desta tragédia é que Lucy, além de ter sido estuprada pelos homens, descobre, algum tempo depois, que está grávida. Ela mergulha, então,  na escuridão da depressão e da apatia e parece não se interessar por nada em sua volta; mais ainda,  recusa-se a falar no acontecido, e até mesmo ser examinada por um médico. De forma categórica  diz ao pai que vai ter a criança que está gestando.
De maneira trágica e dolorosa David entra em contato com a realidade da Africa do Sul pós-apartheid, onde é “um risco possuir coisas, um carro, um par de sapatos, um maço de cigarros. Coisas insuficientes em circulação, carros, sapatos, cigarros insuficientes. Gente demais, coisas de menos”. A promessa de que o fim do apartheid significaria uma vida melhor para todos está longe de acontecer. Ainda hoje a sociedade sul-africana convive com a miséria, a injustiça e a desigualdade.
Confrontado com o desejo de vingança de seus agressores, mas impotente para levar adiante seu intento, David sente que seu prazer de viver expirou e que ele começa a flutuar para o seu fim. Reconhecer essa nova realidade o deixa desesperado: “O sangue da vida está abandonando seu corpo e o desespero está tomando seu lugar, um desespero que é como um gás,  inodoro, insípido, impalpável.“ O mundo no qual estão vivendo é constituido de ódio e brutalidade, ressentimento e desejo de vingança, e  também de impotência, apatia e submissão. Sujeição e submissão por décadas de escravidão;  é a desforra daqueles que durante várias gerações foram despojados de suas terras e de suas condições de cidadãos.  Pela primeira vez, Lurie tem uma amostra de como será ser velho, cansado até os ossos, sem esperança, sem desejos, indiferente ao futuro.
Parece que somente depois de testemunhar o estupro de sua filha, e de sofrer um ataque físico, David consegue refletir sobre as consequências de seu caso desastroso com Melanie.  A violência, então, pode ser exercida de várias maneiras, pode até mesmo aparecer travestida de desejo amoroso. David reconhece, ainda, que o abuso e a violação do outro não estão restritos apenas à esfera sexual. Procura, então, o pai da ex-aluna  e depois de muitos rodeios se desculpa com ele. Mas as coisas não são tão simples assim. O senhor Isaacs lhe mostra que pedir desculpas quase nunca é suficiente para apagar os danos provocados pelos abusos infringidos, seja no nível coletivo, seja de maneira individual.
            Os fenômenos de violência são muito complexos e acontecem em vários esferas: psicológica, física, social e simbólica. O assédio sexual, até bem recentemente, não  era reconhecido como crime. Esta modalidade de violência caracteriza-se por abordagens grosseiras, ofensas e propostas inadequadas que constrangem, humilham, amedontram e tentam reduzir o outro, sobretudo as mulheres, a um objeto passivo. Por meio da força os homens abusadores/estupradores reafirmam seu papel de gênero tradicional dominante. Os estupradores justificam seus crimes dizendo que só se apropriam do corpo daquelas mulheres, por exemplo, que se mostram disponíveis. Com isto tentam passar a ideia de que nada mais fazem do que atender ao desejo de suas vítimas. Quando encontram a recusa por parte delas,  entendem isto como um artifício de sedução: a mulher que diz “não”, na verdade quer dizer “sim”.
Na maioria dos casos de estupro – mas talvez também nos casos de violência em geral – a motivação do estuprador/agressor parece ser a degradação e a dominação da vítima. O prazer obtido não provém do ato sexual em si mesmo, mas do fato de ter reduzido sua vítima em mero objeto de gozo, um resto, dejeto. 
Numa linguagem fluída, narrada em terceira pessoa Coetzee nos traça um retrato não apenas da Africa do Sul, mas também do Ocidente, com seus problemas intratáveis e insolucionavés. Uma história densa e real, recomendada para quem pode suportar a crueza da vida e das relações humanas.

* * *

Nenhum comentário:

Postar um comentário