quarta-feira, 10 de agosto de 2016

O Coração das Trevas

de Joseph Conrad



comentários por Carlos Guido Azevedo
Impressionou-me o desenvolvimento da estória, através de um narrador falando initerruptamente, o marinheiro Marlowe, em um ambiente de conforto e segurança de um Iate ao mar, calmo e silencioso, sob a atenção permanente dos ouvintes.
Fazendo com que o leitor se coloque, automaticamente como um deles, acomodado, paciente e concentrado na longa estória, que sabe ser de aventura e perigo do narrador, que pede seu julgamento e avaliação, porque ele mesmo tem dúvida se agiu sempre da maneira correta, mas quer sua opinião sobre um certo senhor Kurtz que ele aprendeu a admirar e pode não ter sido uma pessoa muito correta.
A sua específica aventura inicia quando, como marinheiro desempregado, consegue por indicação de parentes, vir a ser o capitão de uma pequena e velha embarcação que deve subir o rio que adentra a floresta nativa do Congo, para resgatar o senhor Kurtz, um funcionário da companhia colonizadora que explora o marfim da região e, para a qual se tornou um problema, que pode vir a prejudicar o negócio, por suas práticas pouco ortodoxas.
Impressionou-me a forma como o senhor Kurtz vai sendo apresentado, aos poucos, por ouvir falar, pela admiração que impõe aos seus ouvintes, por sua retórica, pelos valores morais e éticos que defende, pelo sucesso no comércio de marfim e, pouco a pouco vão sendo presumidas suas práticas, sua insensibilidade e, até o se deixar tratar como um deus, por algumas tribos.
A viagem, vai sendo relatada em uma situação de permanente risco e insegurança até o resgate efetivo do Senhor Kurtz, doente e à beira da morte, mas defendido e adorado pelos nativos quando Marlowe tem acesso a documento escrito por ele, a pedido da companhia, sobre como civilizar a selva, que julga sua, e onde parece justificar suas ações de agir como um deus e, supostamente, cometer todas as espécies de insensatez e desvario para obter o marfim que julga seu, e não da companhia que o enviou, mas não nos apresenta o documento.
A figura do senhor Kurtz que vai se revelando, aos poucos, dentro da viagem para resgatá-lo do meio dos nativos, que resistem e o defendem. Vai sendo construída por frases e indicativos de ouvir dizer, sem jamais apontar qualquer dado significativo de sua real personalidade. Sempre descrito como um homem carismático de grande talento na administração de um dos postos da empresa, sagaz na obtenção do precioso marfim, que alguns acham que são, na maioria, fósseis, e muito eloquente em seus textos e em suas falas.
Um fato marcante foi seu histórico retorno ao coração da selva, em uma canoa remada por quatro nativos, uma das vezes que quase retorna à civilização, abandonando o barco que transportava sua preciosa carga de marfim.
Marlowe assiste a morte do senhor Kurtz que exala suas últimas palavras: ‘Um horror!  um horror!’, que parecem sintetizar o que se passava no coração da selva, para se conseguir o precioso marfim. Mas, Marlowe, o admira, o ajuda, apoia e parece querer construir uma imagem positiva para o símbolo da cruel colonização, da barbárie, da loucura do poder. Busca ocultar os seus escritos, apaga nota de rodapé que não acha conveniente, e finalmente compõe um cenário próprio para sua morte junto à pretendente de Kurtz, mantendo o amor e a admiração desta ao seu amado.
Minha maior surpresa foi perceber que Conrad tinha, na verdade, me ludibriado, feito um mágico que força a atenção da plateia para um ponto de fuga, enquanto realiza seu aparente milagre.
Percebi que enquanto o narrador trata das loucuras apontadas e escandalosamente presumidas para Kurtz, todas, seguramente todas as atitudes aéticas, escravocratas e brutas da colonização, vão sendo executadas com naturalidade e expressas com certa simpatia por Marlowe, como sendo a coisa certa a ser feita naquele momento, sem necessidade de justificativa ou explicação, raras vezes com uma leve desculpa de que o costume ali, era aquele.
Sob a naturalidade descrita na aventura de Marlowe o leitor vai sendo anestesiado sem perceber a crueldade intrínseca da aventura colonizadora, Um Horror! Um Horror! muito além dos limites da perversidade humana e da sua capacidade de produzir aberrações comportamentais, submeter seus semelhantes as mais degradantes situações, trabalho escravo, mutilações e até a morte.
A velha relação conquistador / conquistados, colonizadores / colonizados, dominador / dominados e consequente destruição da cultura e dos costumes locais para trazer evolução e civilidade aos selvagens, toda ela praticada por Marlowe e sua empresa, enquanto apontava para Kurtz, e, eu cego olhava para Kurtz, antecipava suas ações, torcia contra e a favor de Marlowe.
Percebi que enquanto o narrador falava, eu me mantinha anestesiado para o que se passava alí, imaginando as arbitrariedades e horrores que se passariam, lá, na tribo de Kurtz.
Em total insensibilidade com os valores humanos, presumindo como o Marlowe, que o colonizador tem direito natural sobre tudo, como um deus que merece ser obedecido e adorado, porque controla o Ser da Caldeira e domina o Espírito do Apito da embarcação que libera os espíritos maus, fazendo os nativos estremecerem e obedecerem e fugirem da brincadeira de terem suas flechas revidadas a bala como diversão, ou achando natural o asco do sapato sujo de sangue do nativo, jogado fora por Marlowe.
Assim, custei a descobrir que Marlowe e Kurtz são a mesma pessoa, ou têm a mesma cabeça, a minha, que estava capturado também para este mundo de Horror em que acabei comungando sem perceber o quanto ele me comprometeu ao partilhar suas ideias, práticas e valores.

Muitos outros aspectos me impressionaram positivamente no livro e, seguramente não foi o fato dele ter servido de base para o filme Apocalipse Now, tão comentado.

APRECIEI E INDICO SEM RESTRIÇÕES.

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