“Quando era bem pequeno, tinha paixão por mapas. Ficava horas olhando a América do Sul, ou a África, ou a Austrália, e me perdia nas glórias da exploração. Naquela época havia na Terra muitos espaços em branco, e, quando via algum que parecia especialmente convidativo no mapa (...), eu colocava o dedo ali e dizia, ‘Quando crescer irei lá’”(p. 29).
Este
era o sonho do marinheiro Marlow, personagem central do romance “No Coração das
Trevas” escrito por Joseph Conrad e publicado em 1902. Marlow, que ao ver a
possibilidade de concretizar um sonho de infância, embarca em um navio rumo ao
pesadelo. Ao invés de se perder nas glórias da exploração acaba se perdendo nos
perigos de um mundo novo.
Um
mundo novo não tão admirável!
O
mundo que Marlow visita e descreve aos companheiros está longe de ser um espaço
em branco. Pelo contrário, está situado em algum lugar no continente africano,
onde a selva é imensa, os canibais estão famintos e os selvagens dispostos a
atacar durante uma forte névoa. Mas o que mais assusta neste mundo é a invasão
do homem branco.
Marlow
vai parar neste mundo porque, por meio de uma tia influente, consegue uma vaga
para trabalhar numa companhia de exploração de marfim. Substituiria um capitão
que havia morrido enquanto trabalhava. Marlow seria o capitão de um pequeno
barco a vapor que navegaria um rio transportando mercadorias.
Ao
chegar à África, Marlow encontra o barco afundado. Demora meses para
consertá-lo e colocá-lo em movimento.
Enquanto
isso, convive com os demais empregados da companhia. Se surpreende com o
comportamento de alguns, como o do contador, que se veste de forma impecável
mesmo vivendo em meio às precariedades de um alojamento na selva.
Nos
diálogos entre Marlow e o contador um tal Sr. Kurtz é mencionado diversas
vezes. Kurtz seria uma lenda da exploração. Havia conseguido uma imensa
quantidade de marfim que nem todos os outros exploradores juntos teriam
conseguido. Além da eficiência, era considerado um homem virtuoso.
Marlow
finalmente consegue consertar o barco. Parte rumo ao interior com uma
tripulação composta por canibais que não se alimentavam a dias. A partir daí,
inicia-se a parte mais sombria do pesadelo. O barco se quebra novamente e é
atacado por selvagens durante uma forte névoa.
Em
meio a esse pesadelo, Marlow precisa resgatar Kurtz do local onde se encontra,
visto que está enfermo e cercado por nativos hostis. No entanto, ao conhecer
Kurtz, Marlow percebe que ele não é um homem tão virtuoso quanto disseram. Pelo
contrário, vê um ser tão obcecado pela glória que em nome dela seria capaz das
maiores crueldades. Kurtz é ganancioso a ponto de matar diversos nativos,
cortar-lhes a cabeça e coloca-las em estacas em frente ao seu alojamento.
Aprendeu a conviver com várias tribos e tornou-se uma espécie de tirano.
Marlow,
ao conhecer Kurtz, confirma a dura realidade na exploração de marfim. Antes de
conhece-lo, dissera que jamais havia visto algo tão irreal. Compara os
empregados da companhia a um grupo de peregrinos infiéis enfeitiçados pelo
marfim, movidos por uma ganância imbecil que tinha cheiro de cadáver. É isso
que Kurtz parece representar.
Ao
relatar as atrocidades cometidas por Kurtz, Marlow transparece um sentimento
híbrido em relação à colonização. Ao mesmo tempo que parece criticar as atrocidades
inerentes à exploração, descreve os nativos como seres quase desumanos, talvez
levando seus “ouvintes” a pensarem que a colonização fosse mesmo necessária.
“A terra parecia extraterrena. Estamos
habituados a comtemplar a forma acorrentada de um monstro subjugado, mas ali...
ali era possível contemplar algo monstruoso e livre. Era extraterreno, e os
homens eram... não, não eram inumanos. Bem os senhores sabem, isso era o
pior... a suspeita de que não eram inumanos. Tal noção surgia aos poucos. Eles
urravam e pulavam, e giravam e faziam caretas horrendas; mas o que nos
impressionava era, precisamente, a ideia de que eram humanos... tanto quanto
nós” (p.74).
Passagens
como esta, renderam ao romance “Coração das Trevas” e a Joseph Conrad críticas
implacáveis. Intelectuais africanos, como o nigeriano Chinua Achebe, por
exemplo, considerava o Canône da literatura inglesa um autor racista e defendia
a proibição do romance. Logo, é difícil falar de “Coração das Trevas” sem falar
de racismo, de preconceito, de ocidentalização. No entanto, a favor de Conrad
pesa o fato de que no início do século XX ninguém era politicamente correto acerca
de nada, principalmente no que tangia a culturas não ocidentais.
Além
disso, não existe uma leitura unidimensional de “Coração das Trevas”. Como toda
obra literária, o romance de Conrad permite várias interpretações. Não é
difícil perceber que o personagem Marlow, por exemplo, ao narrar sua estória,
faz, na verdade, uma reflexão acerca de si mesmo:
“Nenhum amigo influente teria me servido
melhor. Aquele barco me propiciara a chance de me expor... de descobrir o que
era capaz de fazer. Não, não gosto de trabalhar. Prefiro vagabundear e pensar
nas coisas boas que podem ser feitas. Não gosto de trabalhar... (...) mas gosto
do que o trabalho encerra... a chance de encontrarmos a nós mesmo. A nossa própria realidade... para nós mesmos,
não para os outros... algo que ninguém pode saber.” (p. 64).
A viagem
de Marlow a um mundo desconhecido pode, portanto, ser vista como uma busca pelo
autoconhecimento.
Além
da perspectiva psicanalítica, o curto romance de Conrad pode ser interpretado,
ainda, como uma crítica ao colonialismo, ao imperialismo. De fato, o personagem
Kurtz simboliza de forma óbvia o lado cruel da colonização.
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