terça-feira, 16 de agosto de 2016

No Coração das Trevas

de Joseph Conrad


por Márcia H Carvalho


“Quando era bem pequeno, tinha paixão por mapas. Ficava horas olhando a América do Sul, ou a África, ou a Austrália, e me perdia nas glórias da exploração. Naquela época havia na Terra muitos espaços em branco, e, quando via algum que parecia especialmente convidativo no mapa (...), eu colocava o dedo ali e dizia, ‘Quando crescer irei lá’”(p. 29).

Este era o sonho do marinheiro Marlow, personagem central do romance “No Coração das Trevas” escrito por Joseph Conrad e publicado em 1902. Marlow, que ao ver a possibilidade de concretizar um sonho de infância, embarca em um navio rumo ao pesadelo. Ao invés de se perder nas glórias da exploração acaba se perdendo nos perigos de um mundo novo.

Um mundo novo não tão admirável!

O mundo que Marlow visita e descreve aos companheiros está longe de ser um espaço em branco. Pelo contrário, está situado em algum lugar no continente africano, onde a selva é imensa, os canibais estão famintos e os selvagens dispostos a atacar durante uma forte névoa. Mas o que mais assusta neste mundo é a invasão do homem branco.    

Marlow vai parar neste mundo porque, por meio de uma tia influente, consegue uma vaga para trabalhar numa companhia de exploração de marfim. Substituiria um capitão que havia morrido enquanto trabalhava. Marlow seria o capitão de um pequeno barco a vapor que navegaria um rio transportando mercadorias.

Ao chegar à África, Marlow encontra o barco afundado. Demora meses para consertá-lo e colocá-lo em movimento. 

Enquanto isso, convive com os demais empregados da companhia. Se surpreende com o comportamento de alguns, como o do contador, que se veste de forma impecável mesmo vivendo em meio às precariedades de um alojamento na selva.

Nos diálogos entre Marlow e o contador um tal Sr. Kurtz é mencionado diversas vezes. Kurtz seria uma lenda da exploração. Havia conseguido uma imensa quantidade de marfim que nem todos os outros exploradores juntos teriam conseguido. Além da eficiência, era considerado um homem virtuoso.

Marlow finalmente consegue consertar o barco. Parte rumo ao interior com uma tripulação composta por canibais que não se alimentavam a dias. A partir daí, inicia-se a parte mais sombria do pesadelo. O barco se quebra novamente e é atacado por selvagens durante uma forte névoa.    

Em meio a esse pesadelo, Marlow precisa resgatar Kurtz do local onde se encontra, visto que está enfermo e cercado por nativos hostis. No entanto, ao conhecer Kurtz, Marlow percebe que ele não é um homem tão virtuoso quanto disseram. Pelo contrário, vê um ser tão obcecado pela glória que em nome dela seria capaz das maiores crueldades. Kurtz é ganancioso a ponto de matar diversos nativos, cortar-lhes a cabeça e coloca-las em estacas em frente ao seu alojamento. Aprendeu a conviver com várias tribos e tornou-se uma espécie de tirano.  

Marlow, ao conhecer Kurtz, confirma a dura realidade na exploração de marfim. Antes de conhece-lo, dissera que jamais havia visto algo tão irreal. Compara os empregados da companhia a um grupo de peregrinos infiéis enfeitiçados pelo marfim, movidos por uma ganância imbecil que tinha cheiro de cadáver. É isso que Kurtz parece representar.     

Ao relatar as atrocidades cometidas por Kurtz, Marlow transparece um sentimento híbrido em relação à colonização. Ao mesmo tempo que parece criticar as atrocidades inerentes à exploração, descreve os nativos como seres quase desumanos, talvez levando seus “ouvintes” a pensarem que a colonização fosse mesmo necessária.

A terra parecia extraterrena. Estamos habituados a comtemplar a forma acorrentada de um monstro subjugado, mas ali... ali era possível contemplar algo monstruoso e livre. Era extraterreno, e os homens eram... não, não eram inumanos. Bem os senhores sabem, isso era o pior... a suspeita de que não eram inumanos. Tal noção surgia aos poucos. Eles urravam e pulavam, e giravam e faziam caretas horrendas; mas o que nos impressionava era, precisamente, a ideia de que eram humanos... tanto quanto nós” (p.74).    

Passagens como esta, renderam ao romance “Coração das Trevas” e a Joseph Conrad críticas implacáveis. Intelectuais africanos, como o nigeriano Chinua Achebe, por exemplo, considerava o Canône da literatura inglesa um autor racista e defendia a proibição do romance. Logo, é difícil falar de “Coração das Trevas” sem falar de racismo, de preconceito, de ocidentalização. No entanto, a favor de Conrad pesa o fato de que no início do século XX ninguém era politicamente correto acerca de nada, principalmente no que tangia a culturas não ocidentais.     

Além disso, não existe uma leitura unidimensional de “Coração das Trevas”. Como toda obra literária, o romance de Conrad permite várias interpretações. Não é difícil perceber que o personagem Marlow, por exemplo, ao narrar sua estória, faz, na verdade, uma reflexão acerca de si mesmo:

“Nenhum amigo influente teria me servido melhor. Aquele barco me propiciara a chance de me expor... de descobrir o que era capaz de fazer. Não, não gosto de trabalhar. Prefiro vagabundear e pensar nas coisas boas que podem ser feitas. Não gosto de trabalhar... (...) mas gosto do que o trabalho encerra... a chance de encontrarmos a nós mesmo.  A nossa própria realidade... para nós mesmos, não para os outros... algo que ninguém pode saber.” (p. 64).

A viagem de Marlow a um mundo desconhecido pode, portanto, ser vista como uma busca pelo autoconhecimento.

Além da perspectiva psicanalítica, o curto romance de Conrad pode ser interpretado, ainda, como uma crítica ao colonialismo, ao imperialismo. De fato, o personagem Kurtz simboliza de forma óbvia o lado cruel da colonização.

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