Companhia das Letras, 2007
by Daniela
Giacomo
Casanova (1725-1798) viveu no século das Luzes, no espírito do Iluminismo. Suas
memórias já renderam inúmeros filmes (contei 17 filmes entre 1918 e 2005) e
livros, que exploram a mística do conquistador de almas femininas. É dessas memórias que Arthur Japin extrai o
argumento de “Os Olhos de Lucia”: o amante iluminista confessa que somente duas
mulheres não se beneficiaram de seus dons amorosos, uma delas foi seu primeiro
amor, aos 17 anos, por uma camponesa italiana de 14 anos. Ele se decepciona
quando ela desaparece e fica chocado quando a reencontra, anos depois,
prostituta em um bordel em Amsterdã, desfigurada e repulsiva. É a Lucia, a quem
Japin se encarrega de construir uma história sórdida e delicada, um debate
contínuo entre razão e emoção.
"O iluminismo representa a saída dos seres humanos de
uma tutelagem que estes mesmos se impuseram a si. Tutelados são aqueles que se
encontram incapazes de fazer uso da própria razão independentemente da direção
de outrem. É-se culpado da própria tutelagem quando esta resulta não de uma
deficiência do entendimento mas da falta de resolução e coragem para se fazer
uso do entendimento independentemente da direção de outrem. Sapere aude! Tem
coragem para fazer uso da tua própria razão! - esse é o lema do iluminismo"
(Imannuel Kant,1784)
Para explicar como a menina
Lucia criada em estado natural na propriedade dos Montereale,nas paisagens
rurais da Italia, se transforma na misteriosa prostituta Galathée de Pompignac
que encanta os homens de Amsterdã cobrindo seu rosto, a competente narrativa em
primeira pessoa vai alternando as memórias, infortúnios, escolhas, encontros de
cada época de sua vida, até entendermos o que ela quer dizer na abertura da
história:
“Se há uma coisa que eu sei
fazer é amar (...) Amo. Outros carregam suas tristezas no coração. Invisíveis,
elas os corroem por dentro. Minha salvação foi trazer a tristeza do lado de
fora, onde não passa despercebida a ninguém.”
Quando Lucia, aos 14 anos de idade, encontra Giacomo em Pasiano ela
experimenta um sentimento irreversível, consciência que provocou ‘de uma só
vez, dor e prazer’: “Nunca mais poderia simplesmente brincar com todos, com
qualquer um.” Giacomo conta ao irmão que ‘ela seria perfeita, não fosse por um
detalhe. Ela é "jovem demais”. O encanto mútuo dos jovens, acatado pelos pais e
pela condessa de Montereale, gera uma promessa de retorno do jovem aspirante a
diplomata em 6 meses, para buscar Lucia. A condessa encarrega o preceptor de
sua filha, Monsieur de Pompignac, de preparar a menina (um bloco de mármore
intacto, segundo ele) para o futuro casamento. Como uma Eva comendo a maçã, Lucia
aprendia tudo que lhe era oferecido com voracidade, mergulhou fundo e rápido no
conhecimento, tanto que foi se distanciando do seus pais, de sua natureza.
Monsieur de Pompignac, que lhe abriu os olhos para o mundo, também lhe passou
varíola antes de morrer da doença.
Tendo estudado e testemunhado a evolução de doença, Lucia pede as seus
pais que a amarrem a uma cama, para que ela não possa ceder à se coçar até a
morte. “Desisti do meu corpo, deixei-o para trás, abandonado. Era como se eu
tivesse encontrado abrigo em minha alma. Recolhi-me, escondida, tremendo num
cantinho.” Depois de 3 semanas de delírio, sem consciência do que acontecia, a
febre passou em um Domingo de Ramos. A doença não arruinou o corpo de Lucia, mas
seu rosto, no qual as pústulas da varíola tinham estourado enquanto ela se
debatia em delírios, ficou desfigurado. A
vida doce de Lucia acabava ali. Nascia, na sobrevivente de quinze anos, a
história de Galathée de Pompignac.
Não suportando a ideia de ser rejeitada por seu amor Giacomo, Lucia foge
de Pasiano, deixando Casanova desconsolado, pensando que ela tinha engravidado
de um mensageiro e deixado Montereale sem olhar para trás. Nascia, na suposta
traição do seu primeiro amor, o Casanova conquistador de corações, que nunca
mais cederia o seu.
Dezesseis anos depois, em Amsterdã, Galathée é uma prostituta com
clientes cativos, que frequenta a ópera. Esconde o mundo com um véu, para que
este fique com um aspecto mais gentil. Não é de imediato que reconhece no
Chevalier de Seingalt seu antigo amor, mas já no primeiro encontro reconhece
seu sofisticado poder de sedução: “Dava a impressão de que qualquer faceta do
meu caráter o fascinava, técnica avançada que eu identificava perfeitamente.
Entre as artes da sedução, era esta a mais delicada e, por isso mesmo, a mais
efetiva.”
Os diálogos entre os dois amantes são deliciosos embates entre razão e
intuição. Para quem acompanha de trás do véu, sempre dolorosos. Vivendo o
dilema de ser novamente confrontada com uma possível rejeição do homem que ama,
escolhe mais uma vez fugir e poupá-lo da verdade. Afinal, não sucumbiu e
conseguiu a liberdade de amar. “A América ainda tem poucas cicatrizes.”
Japin, que com esse romance ganhou o Libris Literature Prize no ano de
2003, preenche as lacunas dessa história de Lucia e Giacomo, desenvolvendo
muito bem as paisagens, ambientes e personagens, com uma voz feminina
convincente e cenas fortes (vide a agonia e os delírios da adolescente durante
o ciclo da varíola e a descrição da casa de fiar). O autor faz um belo trabalho
de costura da cativante história de Lucia no tema central do livro, que é o
conflito entre razão e emoção, o argumento iluminista. A inocência que
caracterizou o encontro inicial dos dois amantes dá lugar a um novo encontro,
em que o amor é entendido e praticado com um nível de racionalidade que só o
sofrimento consegue forjar.
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