segunda-feira, 27 de junho de 2016

Os Olhos de Lucia - Arthur Japin

Companhia das Letras, 2007
by Daniela

   Giacomo Casanova (1725-1798) viveu no século das Luzes, no espírito do Iluminismo. Suas memórias já renderam inúmeros filmes (contei 17 filmes entre 1918 e 2005) e livros, que exploram a mística do conquistador de almas femininas.  É dessas memórias que Arthur Japin extrai o argumento de “Os Olhos de Lucia”: o amante iluminista confessa que somente duas mulheres não se beneficiaram de seus dons amorosos, uma delas foi seu primeiro amor, aos 17 anos, por uma camponesa italiana de 14 anos. Ele se decepciona quando ela desaparece e fica chocado quando a reencontra, anos depois, prostituta em um bordel em Amsterdã, desfigurada e repulsiva. É a Lucia, a quem Japin se encarrega de construir uma história sórdida e delicada, um debate contínuo entre razão e emoção.

 "O iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma tutelagem que estes mesmos se impuseram a si. Tutelados são aqueles que se encontram incapazes de fazer uso da própria razão independentemente da direção de outrem. É-se culpado da própria tutelagem quando esta resulta não de uma deficiência do entendimento mas da falta de resolução e coragem para se fazer uso do entendimento independentemente da direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem para fazer uso da tua própria razão! - esse é o lema do iluminismo" (Imannuel Kant,1784)

   Para explicar como a menina Lucia criada em estado natural na propriedade dos Montereale,nas paisagens rurais da Italia, se transforma na misteriosa prostituta Galathée de Pompignac que encanta os homens de Amsterdã cobrindo seu rosto, a competente narrativa em primeira pessoa vai alternando as memórias, infortúnios, escolhas, encontros de cada época de sua vida, até entendermos o que ela quer dizer na abertura da história:
   
Se há uma coisa que eu sei fazer é amar (...) Amo. Outros carregam suas tristezas no coração. Invisíveis, elas os corroem por dentro. Minha salvação foi trazer a tristeza do lado de fora, onde não passa despercebida a ninguém.

   Quando Lucia, aos 14 anos de idade, encontra Giacomo em Pasiano ela experimenta um sentimento irreversível, consciência que provocou ‘de uma só vez, dor e prazer’: “Nunca mais poderia simplesmente brincar com todos, com qualquer um.” Giacomo conta ao irmão que ‘ela seria perfeita, não fosse por um detalhe. Ela é "jovem demais”. O encanto mútuo dos jovens, acatado pelos pais e pela condessa de Montereale, gera uma promessa de retorno do jovem aspirante a diplomata em 6 meses, para buscar Lucia. A condessa encarrega o preceptor de sua filha, Monsieur de Pompignac, de preparar a menina (um bloco de mármore intacto, segundo ele) para o futuro casamento. Como uma Eva comendo a maçã, Lucia aprendia tudo que lhe era oferecido com voracidade, mergulhou fundo e rápido no conhecimento, tanto que foi se distanciando do seus pais, de sua natureza. Monsieur de Pompignac, que lhe abriu os olhos para o mundo, também lhe passou varíola antes de morrer da doença.

   Tendo estudado e testemunhado a evolução de doença, Lucia pede as seus pais que a amarrem a uma cama, para que ela não possa ceder à se coçar até a morte. “Desisti do meu corpo, deixei-o para trás, abandonado. Era como se eu tivesse encontrado abrigo em minha alma. Recolhi-me, escondida, tremendo num cantinho.” Depois de 3 semanas de delírio, sem consciência do que acontecia, a febre passou em um Domingo de Ramos. A doença não arruinou o corpo de Lucia, mas seu rosto, no qual as pústulas da varíola tinham estourado enquanto ela se debatia em delírios, ficou desfigurado.  A vida doce de Lucia acabava ali. Nascia, na sobrevivente de quinze anos, a história de Galathée de Pompignac.

   Não suportando a ideia de ser rejeitada por seu amor Giacomo, Lucia foge de Pasiano, deixando Casanova desconsolado, pensando que ela tinha engravidado de um mensageiro e deixado Montereale sem olhar para trás. Nascia, na suposta traição do seu primeiro amor, o Casanova conquistador de corações, que nunca mais cederia o seu.

   Dezesseis anos depois, em Amsterdã, Galathée é uma prostituta com clientes cativos, que frequenta a ópera. Esconde o mundo com um véu, para que este fique com um aspecto mais gentil. Não é de imediato que reconhece no Chevalier de Seingalt seu antigo amor, mas já no primeiro encontro reconhece seu sofisticado poder de sedução: “Dava a impressão de que qualquer faceta do meu caráter o fascinava, técnica avançada que eu identificava perfeitamente. Entre as artes da sedução, era esta a mais delicada e, por isso mesmo, a mais efetiva.”

   Os diálogos entre os dois amantes são deliciosos embates entre razão e intuição. Para quem acompanha de trás do véu, sempre dolorosos. Vivendo o dilema de ser novamente confrontada com uma possível rejeição do homem que ama, escolhe mais uma vez fugir e poupá-lo da verdade. Afinal, não sucumbiu e conseguiu a liberdade de amar. “A América ainda tem poucas cicatrizes.”



   Japin, que com esse romance ganhou o Libris Literature Prize no ano de 2003, preenche as lacunas dessa história de Lucia e Giacomo, desenvolvendo muito bem as paisagens, ambientes e personagens, com uma voz feminina convincente e cenas fortes (vide a agonia e os delírios da adolescente durante o ciclo da varíola e a descrição da casa de fiar). O autor faz um belo trabalho de costura da cativante história de Lucia no tema central do livro, que é o conflito entre razão e emoção, o argumento iluminista. A inocência que caracterizou o encontro inicial dos dois amantes dá lugar a um novo encontro, em que o amor é entendido e praticado com um nível de racionalidade que só o sofrimento consegue forjar. 

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