de Mario Benedetti.
Resenha por Ana Studart
A Trégua é um ROMANCE ambientado em Montevidéu,
Uruguai, publicado na década de 60,
quando Benedetti contava 40 anos de idade. Considerado como o seu melhor livro,
foi tema de filme, indicado inclusive para Oscar de melhor filme estrangeiro em 1974.
O
AUTOR era filho de prósperos
imigrantes italianos. Nasceu em Paso de Los Toros, no Uruguai, mas mudou com a família aos 4 anos para Montevidéu.
Por problemas financeiros posteriores, não pode terminar os estudos e trabalhou
desde os 14 anos numa empresa argentina. De volta a Montevidéu, trabalha no semanário A Marcha, jornal de
esquerda que recebeu como herói Che Guevara em sua breve visita ao Uruguai e
apoiou a luta dos Tupamaros. Em 1953 publica “Quien de Nosotros” e no ano
seguinte é nomeado diretor literário do semanário. A partir de então trabalha
em vários jornais. Participa do movimento contra o Acordo Militar com os
Estados Unidos e, após o Golpe de Estado de 1973, se exila em Buenos Aires, e depois
no Peru e em Cuba. Volta ao Uruguai em 1983, período de muitas obras, chamado
de “desexílio”. Recebeu a partir dos 50 anos inúmeros prêmios. Seus livros
foram traduzidos para mais de 20 idiomas e é considerado um expoente da
literatura latino-americana contemporânea. Sua última obra, “Testigo de Uno
Mismo”, de 2008, foi publicada um ano
antes de sua morte, em maio de 2009.
O
TÍTULO, A Trégua, só é
compreendido a partir da metade do livro, quando Martin Santomé, personagem
principal, um viúvo preso a uma rotina desalentadora e prestes a se aposentar, se
apaixona por uma nova funcionária que tem a metade da sua idade. Trégua que se
encerra ao perder a jovem Avellaneda: Ӄ evidente que Deus me concedeu um
destino escuro. Nem sequer cruel, simplesmente escuro. É evidente que me
concedeu uma trégua. Não era felicidade. Apenas uma trégua.”
O TEMA
CENTRAL aborda as dúvidas de um
homem maduro e íntegro que conquista uma jovem, se sente em situação ridícula e
receia pelo futuro a partir da relação-
será abandonado ao envelhecer, trocado no futuro por alguém mais jovem?
Será traído? Teria ele o direito de
comprometer o futuro da jovem que ama e
quer ver feliz, vinculando-a a um homem velho?
O OBJETIVO
do romance é discutir esse e outros temas, como o homossexualismo, a política,
a existência de Deus, as crises da vida familiar.
O PDV
é na primeira pessoa, em se tratando de um diário.
O TEXTO é leve, simples, e muito bem elaborado. O
romance é redigido em forma de diário, que
se inicia em 11 de fevereiro de um ano qualquer e se encerra em 28 de fevereiro do ano seguinte. Magistralmente
o autor ressalta no texto algumas
palavras, de forma a reforçar sua importância, iniciando-as com letra
maiúscula. Por exemplo: a aposentadoria como o “Ócio Final”; Deus como a “Totalidade”;
a detestável “Sogra Universal”; o momento de bem estar que é a “Ventura”; o
romance com Laura Avellaneda, que é o “Nosso Assunto”; os “Outros” (em
contraposição ao “Nosso Assunto”) - todos os homens que podem afastá-lo de
Avellaneda.
Meu exemplar, ao final, ficou bastante
sublinhado, de tanto que apreciei a construção das frases, os comentários bem
humorados sobre fatos que relata, a ironia fina que desenvolve ao longo do
livro. Há ainda uma delicadeza na abordagem das emoções e dos fatos que não é
possível ignorar durante a leitura.
Curti o artifício do autor em
responder perguntas no diário do dia seguinte, com frase curta: “Qual a cor dos
olhos dela?” No dia seguinte: “São verdes, às vezes cinza azulados”.
Ou então: “Esta noite vou sair com ela. Não pretendo
lhe dizer nada”. No dia seguinte: “Mas
disse.”
O suspense crescente que começa com a
compra de um xarope contra gripe para Avellaneda e termina com sua morte súbita, sete dias depois, é um primor de texto:
17 de setembro:“Avellaneda não foi ao escritório”.
18 de setembro: "Avellaneda não veio também hoje."
17 de setembro:“Avellaneda não foi ao escritório”.
18 de setembro: "Avellaneda não veio também hoje."
19 de setembro: “Hoje, sim, comecei a ter
saudade de Avellaneda”,
22 de setembro: “Ela não poderia mandar um
telegrama?”
E afinal o pungente texto do dia 23 de
setembro, apenas repetindo sete vezes:
“Meu Deus”.....
A ESTRUTURA - A
Trégua relata a vida de Santomé em vários planos, ao mesmo tempo em que passeia
por temas como o homossexualismo, a corrupção, a família, o Divino.
-O Trabalho- um desalento, um vazio. O narrador conta os dias- 6 meses
e 28 dias- para se aposentar. Para produzir bem no escritório ele precisa
lembrar da aposentadoria. “Do contrário,
meus dedos se crispam e a letra redonda me sai quebrada e deselegante.” Mas para ele pior do que a rotina é “o problema novo, o pedido repentino que toma toda a sua atenção…” e então “a fadiga se instala nas (…) costas e nuca como
um emplastro poroso”. Com senso de humor comenta a demissão de Suarez depois do
fim do romance com Valverde, filha do diretor da empresa. “Pode parecer
insólito, mas o clima dessa empresa comercial depende, em grande parte, de um
orgasmo privado”. No escritório, escreve Santomé “não existem amigos; existem
sujeitos que a gente vê todos os dias.” Homem pouco ambicioso, rejeita promoção
tentadora que lhe oferecem perto da aposentadoria.
-A Família –Martin Santomé enviuvou jovem e criou os filhos sozinho. Ele
se descreve como um homem maduro, bom,
sem grande brilho, às vezes fraco, mas inteligente. Os filhos, mesmo adultos,
continuam morando com o pai. Não se parecem com ele, têm mais energia e são mais
decididos. O relacionamento entre eles é conflituoso, os filhos são ríspidos e
não o respeitam. Esteban, é arredio, “um ressentido“. O mais novo, Jaime, rapaz
sensível e inteligente, é o preferido, mas “uma barreira invisível” os separa. Ele se revela no fim homossexual. E Blanca que,
como o pai, é “uma triste com vocação de alegre,” termina sendo a confidente que o apoia na nova
relação amorosa.
-O amor- É uma delicia acompanhar a evolução de Santomé com relação a
Avellaneda. As estratégias criadas para abordá-la no início são hilárias: deve
usar a franqueza ou o fingimento?- ele se pergunta. Tenta encontrá-la casualmente indo aos lugares
que ela frequenta, como um adolescente. Ensaia o que dizer. No primeiro
encontro tropeça, engancha o paletó, derruba coisas. Mais tarde a dúvida: casar
ou não casar? Se não casar, será para protegê-la ou para se proteger de uma
traição? Essa insegurança, um traço forte do personagem, é bem definida nas
anotações do dia 18 de maio, que enchem uma página e meia com dúvidas e pontos
de interrogação, e terminam com uma frase bem humorada ao final: “”Se quer
saber quais são as respostas a estas perguntas cruciais, leia nosso próximo
número”.
A insegurança vai desaparecendo na
medida em que o amor desponta. Primeiro ele aprecia a nova assessora apenas "porque ela entende" o
que ele diz. Constata que é tímida, não é
bonita, mas tem algo que o atrai. O que é? Ao final do romance, ele descobre
que é tudo- a voz, a boca, o riso, os passos, e cada atrativo se apoiando no
outro, formando um todo , “como uma soma insubstituível de atrativos”. Ela o
retira do cansaço dos encontros às escuras nos motéis. Ressalto a frase, dita
por uma mulher a Santomé: ’”Você faz amor com cara de empregado”, expressando o
vazio do sexo sem sentimento.
O Divino
- A abordagem sobre a existência de Deus é dos melhores parágrafos do livro. Ao
se perguntar como seria a sua vida se tivesse escolhido o sacerdócio ( e então
não teria filhos, nem escritório, nem horários), acaba reconhecendo suas
dúvidas a respeito do divino. Inclusive porque o raciocínio, intuição e
sensibilidade que Deus deu ao homem não são suficientes nem para
garantir sua existência nem sua não existência. E conclui com frase primorosa: ”Graças
a um impulso do coração posso acreditar
em Deus e acertar, ou não acreditar em Deus e também acertar. E então? Talvez
Deus tenha uma face de crupiê e eu seja apenas um pobre diabo que joga no vermelho quando dá preto, e
vice-versa.” Mais adiante questiona
: Se Deus é a Totalidade, a Grande
Coerência, se Deus é só energia que mantém vivo o universo, se é algo tão incomensuravelmente infinito, “o
que lhe posso importar eu, um átomo precariamente encarapitado num insignificante
piolho de seu Reino?”
O País- Benedetti fala do Uruguai através de seus
monumentos, em tom de zombaria misturado a amor. “O Palácio Salvo é quase uma
representação do caráter nacional: rude, deselegante, espalhafatoso, simpático.
É tão feio, mas tão feio, que deixa a gente de bom humor”. Critica os jornais, que “hoje dizem o
contrário de ontem (…….) Como são diferentes e como são iguais” .
A Política- Ao tratar dos temas corrupção e suborno, o autor o faz com sarcasmo: sempre existiram.
A diferença está na atitude da população: os rebeldes passaram a ser
semi-rebeldes, os semi-rebeldes a resignados, e então perde-se escrúpulos e vem
a conivência. Define dois partidos no Uruguai: o dos resignados e o dos
maricas.
O Homossexualismo- a frase anterior sobre o "partido dos maricas" revela o preconceito do personagem com relação ao homossexualismo. As
atitudes afeminadas de Santini, seu funcionário do escritório, lhe despertam
aversão. As mãos de Santini se parecem com as de Avellaneda, só que as dela são
femininas, e as dele, “afeminadas”. E reage mal ao descobrir que Jaime, o filho predileto,
é gay. “Penso que quando um sujeito já vem podre, não há educação que o cure. Não
há atenção que o endireite”. “ Meu filho é um maricas. Um maricas. Igual ao repugnante
do Santini. Eu preferiria que ele fosse ladrão, morfinônamo, imbecil. Quisera lastimá-lo,
mas não consigo.”
A dor do Envelhecimento-
aparece quando descreve Escayola, amigo
que era alto, nervoso, piadista, e virou “um monstro pançudo, com um
impressionante cangote, uns lábios carnudos e moles, uma careca com manchas que
parecem de café respingado e umas bolsas horrorosas que lhe pendem abaixo dos olhos
e sacodem quando ele ri.” E também
quando se compara a Avellaneda: “O tempo corre e a deixa a cada dia mais
apetecível, mais Madura, mais fresca, mais mulher, e a mim, em contraposição,
me ameaça a cada dia com me tornar mais
achacadiço, mais gasto, menos Valente, menos vital.” E depois: “Não quero que o futuro me condene a ser um velho desprezado por uma
mulher na plenitude de seus sentidos. Tenho a sensação de que em vez de nariz
tenho um tomate maduro, com aquela madureza dos tomates dez segundos antes de
começarem a apodrecer.” A descrição irônica que faz de si merece menção
especial: “...a calvície
desequilibrada ( o lado esquerdo é mais deserto) o nariz mais largo, a verruga
no pescoço, até o peito com ilhas ruivas, o ventre retumbante, os tornozelos
varicosos, os pés com incuráveis e deprimentes micoses”.
Os PERSONAGENS são habilmente construídos, bem descritos, e definem
sua forma ao longo do romance."
-Martin
Santomé, o autor do diário, um solitário, de poucos amigos. Vamos
conhecendo sua personalidade através de
comentários bem humorados, das dúvidas, das reflexões que faz no diário. É um homem inseguro, que
conhece seus limites, e também inteligente e sensível. Tem insônia nos fins de semana, o que o leva a
avaliar que “Se um dia (ele) se
suicidar, será num domingo, o dia sem graça.” Essa personalidade depressiva se
altera gradativamente com a chegada de Avellaneda ao escritório e com o
crescente interesse que ela desperta nele.
- Isabel, a esposa da juventude, dos hormônios em dia, da paixão, que faleceu ao nascer
Jaime, o terceiro filho. Para amar Isabel,
“bastava sentir-se atraído pelo seu corpo”. Ele lembra dos seus olhos
verdes, mas já não se vê diante desse olhar. Sua lembrança esvanece mais ainda depois
da segunda grande perda, a de Avellaneda. A uma antiga carta que descobre de Isabel ele dedica 5 páginas
do diário, para ao final concluir que
entre escolher Isabel e Avellaneda, ele diria – “Que lástima”, e iria procurar
Avellaneda.
-Avellaneda, descrita como uma boa moça, com traços de
gente leal. "Tem atitude". Ela parece
iniciar o relacionamento com Santomé meio a contragosto, como que se rendendo à
falta de esperança de alternativa melhor. Gosta de Santomé por se tratar de um
homem bom, mas transborda melancolia nisso. A chegada dela ao novo apartamento
que dividirá com Santomé é notável: Avellaneda chora. Ele pergunta por que.
“Estou chorando porque é tudo uma lástima”, diz. E ele pensa que é verdade: ”Tudo é uma lástima:
que não houvesse apagão, que eu tenha 50 anos,
que ela seja boa moça, que meus três filhos, que seu antigo namorado, que o apartamento…” Diferentemente da primeira esposa, Isabel, Santomé considera que para amar
Avellaneda, não basta apenas o físico: “é necessário amar o nu mais a atitude- é que
esta é pelo menos a metade de seu atrativo.”
-Esteban- Ele não sabe como falar com esse filho, que é ríspido, não o respeita, e às
vezes é “suscetível como uma solteirona “. Mas a relação muda quando, doente, Esteban se abre com o pai. Ao sair do quarto o filho sorri e ele comenta,
com humor: “E ele me dedicou um sorriso. Deus meu, parecia a cara de um
estranho. Será possível? Por outro lado, um estranho cheio de simpatia. E é meu
filho. Que bom”.
-Jaime é o
filho preferido, que Santomé gostaria de encontrar mais vezes, mas é o menos transparente. Embora tenha
senso de humor, está sempre nervoso e insatisfeito. Santomé intui que ele tem
um problema, mas não sabe qual é. Quando Jaime “sai do armário” sai também de casa, para
não enfrentar a reação do pai ao homossexualismo.
-Blanca, inicialmente arredia, ao iniciar um namoro passa a ser amável,
tagarela, feliz. Apoia o romance do pai e se torna amiga de Avellaneda.
-O amigo Anibal, único a quem Santomé faz confidências. Católico,
mulherengo, criativo, decidido, é a antítese de Santomé. Mas é também aquele que soube dizer as
palavras certas no enterro da mãe do amigo. A ele Santomé confessa seu
relacionamento e suas dúvidas, e a resposta é franca: “Todo o problema me parece muito claro. O que
acontece é que você tem medo de que,
daqui a dez anos, ela lhe ponha chifres”. Santomé rejeita a ideia. Três dias
depois Santomé escreve apenas uma pergunta no diário: “Com que então eu tenho
medo de que, daqui a dez anos, ela me ponha chifres?” Dias depois volta ao
assunto: “Afinal pode ser que Aníbal tenha razão, que eu esteja me esquivando
do casamento mais por medo do ridículo do que para defender o futuro de
Avellaneda.”
-O reencontro com o amigo de infância Vignale é uma das passagens primorosas
do livro. Reconhecido pelo amigo, Santomé se constrange por não saber de quem
se trata. Acaba indo a casa dele para ver fotografias antigas e nelas reconhece
o Bronco, um “imbecil que grudava no grupo e ria de todas as piadas, mesmo as
mais sem graça.” Ao rir vendo a figura na foto percebe a gafe: Bronco é Vignale,
que continuava “estúpido, chato e abobalhado, agora com uma família numerosa, barulhenta
e cansativa, e ainda tem um caso com a concunhada" . Santomé ironiza: nunca teria esse problema- primeiro jamais se
casaria com a mulher dele e também “nunca se sentiria atraído pela carne mole
da outra veterana.” Frase politicamente incorreta do livro..…
O DESFECHO
toma o leitor de surpresa. É o fim da
trégua concedida à vida apagada de Santomé. Com verdadeiro pesar eu li a morte
da jovem Avellaneda. Santomé repudia a palavra falecer, porque morrer é a
palavra certa, “ morrer é o
desmoronamento da vida.” E não a vê morta- seria "injusto" que ele a visse e ela
não pudesse vê-lo. Porque o autor a mata no final?
Para ironizar o destino? Para condenar um relacionamento com grande diferença
de idades? Para questionar a existência de Deus? Ou apenas para dar um desfecho
surpreendente?
A surpresa prossegue no encontro de
Santomé com a mãe de Avellaneda, para descobrir que ela havia perdido também um grande amor e, por
isso, podia compreendê-lo. Descobre que Avellaneda
era filha de um romance proibido, rompido para manter o casamento. Ela diz: ”Laura (Avellaneda) era a
última coisa que me restava dele. Por isso sinto outra vez que o coração é algo
enorme que começa no estômago e acaba na garganta”.
O diário se encerra no dia em que Santomé se aposenta, porque, para ele, o mundo perdeu o interesse.
CONCLUSÃO - A Trégua é um livro arrebatante. Tudo é
sincero nesse diário. A melancolia, a alegria, a raiva, a dúvida, a decepção, a
ironia, são sentimentos colocados com
precisão e espontaneidade, numa narrativa simples e muitas vezes cômica, que
conquista o leitor desde o início. O livro traz um elenco de personagens
interessantes e complicados, e a interação
entre entre eles traduz a complexidade do relacionamento humano em
todos os níveis -amoroso, profissional, familiar. Eu o recomendo com entusiasmo.
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