terça-feira, 26 de janeiro de 2016

A TRÉGUA




de Mario Benedetti.

Resenha por Ana Studart

A Trégua é um ROMANCE ambientado em Montevidéu, Uruguai, publicado na década  de 60, quando Benedetti contava 40 anos de idade. Considerado como o seu melhor livro, foi tema de filme, indicado inclusive para Oscar de  melhor filme estrangeiro em 1974.
O  AUTOR era filho de prósperos imigrantes italianos. Nasceu em Paso de Los Toros, no Uruguai, mas  mudou com a família aos 4 anos para Montevidéu. Por problemas financeiros posteriores, não pode terminar os estudos e trabalhou desde os 14 anos numa empresa argentina. De volta a Montevidéu,  trabalha no semanário A Marcha, jornal de esquerda que recebeu como herói Che Guevara em sua breve visita ao Uruguai e apoiou a luta dos Tupamaros. Em 1953 publica “Quien de Nosotros” e no ano seguinte é nomeado diretor literário do semanário. A partir de então trabalha em vários jornais. Participa do movimento contra o Acordo Militar com os Estados Unidos e, após o Golpe de Estado de 1973, se exila em Buenos Aires, e depois no Peru e em Cuba. Volta ao Uruguai em 1983, período de muitas obras, chamado de “desexílio”. Recebeu a partir dos 50 anos inúmeros prêmios. Seus livros foram traduzidos para mais de 20 idiomas e é considerado um expoente da literatura latino-americana contemporânea. Sua última obra, “Testigo de Uno Mismo”, de 2008,  foi publicada um ano antes de sua morte, em maio de 2009.
O  TÍTULO, A Trégua, só é compreendido a partir da metade do livro, quando Martin Santomé, personagem principal, um viúvo preso a uma rotina desalentadora e prestes a se aposentar, se apaixona por uma nova funcionária que tem a metade da sua idade. Trégua que se encerra ao perder a jovem Avellaneda: ”É evidente que Deus me concedeu um destino escuro. Nem sequer cruel, simplesmente escuro. É evidente que me concedeu uma trégua. Não era felicidade. Apenas uma trégua.”
O TEMA CENTRAL aborda as dúvidas de um homem maduro e íntegro que conquista uma jovem, se sente em situação ridícula e receia pelo futuro a partir  da relação- será abandonado ao envelhecer, trocado no futuro por alguém mais jovem? Será  traído? Teria ele o direito de comprometer o futuro da jovem que  ama e quer ver feliz, vinculando-a a um homem velho?
O OBJETIVO do romance é discutir esse e outros temas, como o homossexualismo, a política, a existência de Deus, as crises da vida familiar.
O PDV é na primeira pessoa, em se tratando de um diário.
O TEXTO  é leve, simples, e muito bem elaborado. O romance é redigido em forma de diário, que  se inicia em 11 de fevereiro de um ano qualquer e se encerra  em 28 de fevereiro do ano seguinte. Magistralmente  o autor ressalta no texto algumas palavras, de forma a reforçar sua importância, iniciando-as com letra maiúscula. Por exemplo: a aposentadoria como o “Ócio Final”; Deus como a “Totalidade”; a detestável “Sogra Universal”; o momento de bem estar que é a “Ventura”; o romance com Laura Avellaneda, que é o “Nosso Assunto”; os “Outros” (em contraposição ao “Nosso Assunto”) - todos os homens que podem afastá-lo de Avellaneda.
Meu exemplar, ao final, ficou bastante sublinhado, de tanto que apreciei a construção das frases, os comentários bem humorados sobre fatos que relata, a ironia fina que desenvolve ao longo do livro. Há ainda uma delicadeza na abordagem das emoções e dos fatos que não é possível ignorar durante a leitura.
Curti o artifício do autor em responder perguntas no diário do dia seguinte, com frase curta: “Qual a cor dos olhos dela?” No dia seguinte: “São verdes, às vezes cinza azulados”.
Ou então:  “Esta noite vou sair com ela. Não pretendo lhe dizer nada”. No dia seguinte:  “Mas disse.”
O suspense crescente que começa com a compra de um xarope contra gripe para Avellaneda  e termina com  sua morte súbita,  sete dias depois, é um primor de texto: 
17 de setembro:“Avellaneda não foi ao escritório”.
18 de setembro: "Avellaneda não veio também hoje."
19 de setembro: “Hoje, sim,  comecei a ter saudade de Avellaneda”,
22 de setembro:  “Ela não poderia mandar um telegrama?”
E afinal o pungente texto do dia 23 de setembro, apenas repetindo  sete vezes:
“Meu Deus”.....
A ESTRUTURA - A Trégua relata a vida de Santomé em vários planos, ao mesmo tempo em que passeia por temas como o homossexualismo, a corrupção, a família, o Divino.
-O Trabalho- um desalento, um vazio. O narrador conta os dias- 6 meses e 28 dias- para se aposentar. Para produzir bem no escritório ele precisa lembrar da aposentadoria. “Do contrário,  meus dedos se crispam e a letra redonda me sai quebrada e deselegante.”  Mas para ele pior do que a rotina é  “o problema novo, o pedido repentino que  toma toda a sua atenção…” e então  “a fadiga se instala nas (…) costas e nuca como um emplastro poroso”. Com senso de humor comenta a demissão de Suarez depois do fim do romance com Valverde, filha do diretor da empresa. “Pode parecer insólito, mas o clima dessa empresa comercial depende, em grande parte, de um orgasmo privado”. No escritório, escreve Santomé “não existem amigos; existem sujeitos que a gente vê todos os dias.” Homem pouco ambicioso, rejeita promoção tentadora que lhe oferecem perto da aposentadoria.
-A Família –Martin Santomé enviuvou jovem e criou os filhos sozinho. Ele se descreve como  um homem maduro, bom, sem grande brilho, às vezes fraco, mas inteligente. Os filhos, mesmo adultos, continuam morando com o pai. Não se parecem com ele, têm mais energia e são mais decididos. O relacionamento entre eles é conflituoso, os filhos são ríspidos e não o respeitam. Esteban, é arredio, “um ressentido“. O mais novo, Jaime, rapaz sensível e inteligente, é o preferido, mas  “uma barreira invisível” os separa. Ele se revela no fim homossexual.  E Blanca que, como o pai, é “uma triste com vocação de alegre,”  termina sendo a confidente que o apoia na nova relação amorosa.
-O amor- É uma delicia acompanhar a evolução de Santomé com relação a Avellaneda. As estratégias criadas para abordá-la no início são hilárias: deve usar a franqueza ou o fingimento?- ele se pergunta.  Tenta encontrá-la casualmente indo aos lugares que ela frequenta, como um adolescente. Ensaia o que dizer. No primeiro encontro tropeça, engancha o paletó, derruba coisas. Mais tarde a dúvida: casar ou não casar? Se não casar, será para protegê-la ou para se proteger de uma traição? Essa insegurança, um traço forte do personagem, é bem definida nas anotações do dia 18 de maio, que enchem uma página e meia com dúvidas e pontos de interrogação, e terminam com uma frase bem humorada ao final: “”Se quer saber quais são as respostas a estas perguntas cruciais, leia nosso próximo número”.
A insegurança vai desaparecendo na medida em que o amor desponta. Primeiro ele  aprecia a nova assessora apenas "porque ela entende" o que ele diz. Constata que é tímida, não é  bonita, mas tem algo que o atrai. O que é? Ao final do romance, ele descobre que é tudo- a voz, a boca, o riso, os passos, e cada atrativo se apoiando no outro, formando um todo , “como uma soma insubstituível de atrativos”. Ela o retira do cansaço dos encontros às escuras nos motéis. Ressalto a frase, dita por uma mulher a Santomé: ’”Você faz amor com cara de empregado”, expressando o vazio  do sexo sem sentimento.
O Divino - A abordagem sobre a existência de Deus é dos melhores parágrafos do livro. Ao se perguntar como seria a sua vida se tivesse escolhido o sacerdócio ( e então não teria filhos, nem escritório, nem horários), acaba reconhecendo suas dúvidas a respeito do divino. Inclusive porque o raciocínio, intuição e sensibilidade que  Deus  deu ao homem não são suficientes nem para garantir sua existência nem sua não existência. E conclui com frase primorosa: ”Graças a um impulso do coração  posso acreditar em Deus e acertar, ou não acreditar em Deus e também acertar. E então? Talvez Deus tenha uma face de crupiê e eu seja apenas um pobre diabo  que joga no vermelho quando dá preto, e vice-versa.”    Mais adiante questiona :  Se Deus é a Totalidade, a Grande Coerência, se Deus é só energia que mantém vivo o universo,  se é algo tão incomensuravelmente infinito, “o que lhe posso importar eu, um átomo precariamente encarapitado num insignificante piolho de seu Reino?”
O País-   Benedetti fala do Uruguai através de seus monumentos, em tom de zombaria misturado a amor. “O Palácio Salvo é quase uma representação do caráter nacional: rude, deselegante, espalhafatoso, simpático. É tão feio, mas tão feio, que deixa a gente de bom humor”.  Critica os jornais, que “hoje dizem o contrário de ontem (…….) Como são diferentes e como são iguais” .
A Política-  Ao tratar dos temas corrupção e suborno,  o autor o faz com sarcasmo: sempre existiram. A diferença está na atitude da população: os rebeldes passaram a ser semi-rebeldes, os semi-rebeldes a resignados, e então perde-se escrúpulos e vem a conivência. Define dois partidos no Uruguai: o dos resignados e o dos maricas.
O Homossexualismo- a frase anterior sobre o "partido dos maricas" revela o preconceito do personagem com relação ao homossexualismo. As atitudes afeminadas de Santini, seu funcionário do escritório, lhe despertam aversão. As mãos de Santini se parecem com as de Avellaneda, só que as dela são femininas, e as dele, “afeminadas”. E reage  mal ao descobrir que Jaime, o filho predileto, é gay. “Penso que quando um sujeito já vem podre, não há educação que o cure. Não há atenção que o endireite”. “ Meu filho é um maricas. Um maricas. Igual ao repugnante do Santini. Eu preferiria que ele fosse ladrão, morfinônamo, imbecil. Quisera lastimá-lo, mas não consigo.”
A dor do  Envelhecimento- aparece quando descreve  Escayola, amigo que era alto, nervoso, piadista, e virou “um monstro pançudo, com um impressionante cangote, uns lábios carnudos e moles, uma careca com manchas que parecem de café respingado e umas bolsas horrorosas que lhe pendem abaixo dos olhos e  sacodem quando ele ri.” E também quando se compara a Avellaneda: “O tempo corre e a deixa a cada dia mais apetecível, mais Madura, mais fresca, mais mulher, e a mim, em contraposição, me ameaça a cada dia com me tornar mais  achacadiço, mais gasto, menos Valente, menos vital.”  E  depois: “Não quero que o futuro  me condene a ser um velho desprezado por uma mulher na plenitude de seus sentidos. Tenho a sensação de que em vez de nariz tenho um tomate maduro, com aquela madureza dos tomates dez segundos antes de começarem a apodrecer.” A descrição irônica que faz de si merece menção especial:  “...a calvície desequilibrada ( o lado esquerdo é mais deserto) o nariz mais largo, a verruga no pescoço, até o peito com ilhas ruivas, o ventre retumbante, os tornozelos varicosos, os pés com incuráveis e deprimentes micoses”.
Os PERSONAGENS são habilmente construídos, bem descritos, e definem sua forma ao longo do romance."
-Martin Santomé, o autor do diário, um solitário, de poucos amigos. Vamos conhecendo sua personalidade  através de comentários bem humorados, das dúvidas,  das reflexões  que faz no diário. É um homem inseguro, que conhece seus limites, e também inteligente e sensível.  Tem insônia nos fins de semana, o que o leva a avaliar que “Se um dia (ele)  se suicidar, será num domingo, o dia sem graça.” Essa personalidade depressiva se altera gradativamente com a chegada de Avellaneda ao escritório e com o crescente interesse que ela desperta nele.
- Isabel, a esposa da juventude, dos hormônios em dia, da paixão, que faleceu ao nascer Jaime, o terceiro filho. Para amar Isabel,  “bastava sentir-se atraído pelo seu corpo”. Ele lembra dos seus olhos verdes, mas já não se vê diante desse olhar. Sua lembrança esvanece mais ainda depois da segunda grande perda, a de Avellaneda. A uma antiga carta  que descobre de Isabel ele dedica 5 páginas do diário, para ao final concluir  que entre escolher Isabel e Avellaneda, ele diria – “Que lástima”, e iria procurar Avellaneda.
-Avellaneda,   descrita como uma boa moça, com traços de gente leal. "Tem atitude". Ela  parece iniciar o relacionamento com Santomé meio a contragosto, como que se rendendo à falta de esperança de alternativa melhor. Gosta de Santomé por se tratar de um homem bom, mas transborda melancolia nisso. A chegada dela ao novo apartamento que dividirá com Santomé é notável: Avellaneda chora. Ele pergunta por que. “Estou chorando porque é tudo uma lástima”, diz.  E ele pensa que é verdade: ”Tudo é uma lástima: que não houvesse apagão, que eu tenha 50 anos,   que ela seja boa moça, que meus três filhos,  que seu antigo namorado, que  o apartamento…”  Diferentemente da primeira esposa,  Isabel, Santomé considera que para amar Avellaneda, não basta apenas o físico:   “é necessário amar o nu mais a atitude- é que esta é pelo menos a metade de seu atrativo.”
-Esteban-  Ele não sabe como falar com esse filho, que é ríspido,  não o respeita, e às vezes é “suscetível como uma solteirona “. Mas a relação muda quando,  doente, Esteban se abre com o pai.  Ao sair do quarto o filho sorri e ele comenta, com humor: “E ele me dedicou um sorriso. Deus meu, parecia a cara de um estranho. Será possível? Por outro lado, um estranho cheio de simpatia. E é meu filho. Que bom”.
-Jaime é o filho preferido, que Santomé gostaria de encontrar mais vezes,  mas é o menos transparente. Embora tenha senso de humor, está sempre nervoso e insatisfeito. Santomé intui que ele tem um problema, mas não sabe qual é. Quando Jaime “sai do armário” sai também de casa, para não enfrentar a reação do pai ao homossexualismo.
-Blanca,  inicialmente arredia, ao iniciar um namoro passa a ser amável, tagarela, feliz. Apoia o romance do pai e se torna amiga de Avellaneda.
-O amigo Anibal, único a quem Santomé faz confidências. Católico, mulherengo, criativo, decidido, é a antítese de Santomé.  Mas é também aquele que soube dizer as palavras certas no enterro da mãe do amigo. A ele Santomé confessa seu relacionamento e suas dúvidas, e a resposta é franca:  “Todo o problema me parece muito claro. O que acontece é que você tem medo  de que, daqui a dez anos, ela lhe ponha chifres”. Santomé rejeita a ideia. Três dias depois Santomé escreve apenas uma pergunta no diário: “Com que então eu tenho medo de que, daqui a dez anos, ela me ponha chifres?” Dias depois volta ao assunto: “Afinal pode ser que Aníbal tenha razão, que eu esteja me esquivando do casamento mais por medo do ridículo do que para defender o futuro de Avellaneda.”
-O  reencontro com o amigo de infância Vignale é uma das passagens primorosas do livro. Reconhecido pelo amigo, Santomé se constrange por não saber de quem se trata. Acaba indo a casa dele para ver fotografias antigas e nelas reconhece o Bronco, um “imbecil que grudava no grupo e ria de todas as piadas, mesmo as mais sem graça.” Ao rir vendo a figura na foto percebe a gafe: Bronco é Vignale, que continuava “estúpido, chato e abobalhado, agora com uma família numerosa, barulhenta e cansativa, e ainda tem um caso com a concunhada" . Santomé ironiza:  nunca teria esse problema- primeiro jamais se casaria com a mulher dele e também “nunca se sentiria atraído pela carne mole da outra veterana.” Frase politicamente incorreta do livro..…
O DESFECHO  toma o leitor de surpresa. É o fim da trégua concedida à vida apagada de Santomé. Com verdadeiro pesar eu li a morte da jovem Avellaneda. Santomé repudia a palavra falecer, porque morrer é a palavra certa, “ morrer  é o desmoronamento da vida.” E não a vê morta- seria "injusto" que ele a visse e ela não pudesse vê-lo. Porque o autor  a mata no final? Para ironizar o destino? Para condenar um relacionamento com grande diferença de idades? Para questionar a existência de Deus? Ou apenas para dar um desfecho surpreendente?
A surpresa prossegue no encontro de Santomé com a mãe de Avellaneda, para descobrir que  ela havia perdido também um grande amor e, por isso, podia compreendê-lo.  Descobre que Avellaneda era filha de um romance proibido, rompido para manter o casamento. Ela diz: ”Laura (Avellaneda) era a última coisa que me restava dele. Por isso sinto outra vez que o coração é algo enorme que começa no estômago e acaba na garganta”.
O diário se encerra  no dia em que Santomé se aposenta, porque, para ele, o mundo perdeu o interesse.

CONCLUSÃO  - A Trégua é um livro arrebatante. Tudo é sincero nesse diário. A melancolia, a alegria, a raiva, a dúvida, a decepção, a ironia,  são sentimentos colocados com precisão e espontaneidade, numa narrativa simples e muitas vezes cômica, que conquista o leitor desde o início. O livro traz um elenco de personagens interessantes e complicados, e a interação  entre entre eles  traduz  a complexidade do relacionamento humano em todos os níveis -amoroso, profissional, familiar. Eu o recomendo com entusiasmo.


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