quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

O REINO DESTE MUNDO


de Alejo Carpentier
Tradução de Marcelo Tápia
Editora Martins Fontes, 2009
por Maria Albeti Vitorino

Alejo Carpentier (1904-1980) nasceu em Havana, Cuba, e faleceu em Paris. Filho de um arquiteto francês e uma pianista russa, desde cedo se envolve com questões e ideologias políticas. Preso, aos 24 anos, se refugia em Paris, onde teve a oportunidade de se aproximar da intelectualidade francesa. Regressa à Cuba em 1939, saindo posteriormente, em 1945, para morar na Venezuela. Retorna ao seu país em 1959, após a vitória da Revolução Cubana. Falecue na França, onde exercia função diplomática desde 1966.
Carpentier inaugura o estilo real maravilhoso influenciado pela visita ao Haiti, em 1943, onde segundo ele foi possível ter “contato cotidiano com algo que poderíamos chamar de real maravilhoso” (p. 10), um patrimônio não somente do Haiti, mas de toda a América. Outras obras do autor: Os Passos Perdidos (1953), Guerra do tempo (1958) e os O Século das Luzes (1962). O Reino deste Mundo foi lançado em 1948, no México.
No Prólogo do livro O Reino deste Mundo, o autor nos apresenta o real maravilhoso que ele conhece a partir do “nada irreal sortilégio das terras do Haiti” (p.7), palco de fatos extraordinários que aconteceram na ilha de São Domingos. Em seguida, coloca um trecho da comédia “O Novo Mundo descoberto por Cristóvão Colombo”, de Lope de Vega, onde o Diabo interpela Deus sobre a ida de Colombo para a América “Não sabes que há muitos anos dali sou o dono?”, o que sinaliza a dimensão dos acontecimentos que serão narrados dali em diante.
Carpentier recria os principais acontecimentos políticos do final do século XVIII, anteriores à independência da colônia de São Domingos, até o período republicano, começo do século XIX. Nesse intervalo ocorre a transição da colônia francesa governada por brancos para uma nação governada por negros e mulatos.
A narrativa está vinculada à estória do personagem principal, o escravo Ti Noel, que da juventude à velhice vive as desventuras do povo haitiano.  Os acontecimentos narrados são reais, mas se limitam àquilo que o escravo é capaz de perceber e compreender, numa visão de oprimidos e não de opressores ou vencedores. Para melhor contextualização desses acontecimentos, procurou-se fazer um paralelo com a história oficial, colocando-se alguns comentários adicionais.
O livro trata de três revoltas, a primeira delas, ocorre em 1754, sob a liderança do escravo Mackandal, que pertence ao mesmo senhor de Ti Noel, Lenormand de Mezy. Este escravo procura manter vivas as tradições de sua terra e do seu povo, bem como a disposição da luta pela liberdade, utilizando-se de narrativas sobre os reinos da África. Mackandal aprende sobre magia e ervas venenosas com uma velha escrava, que vive isolada na montanha, foge e organiza uma rebelião, usando a tática de envenenamento da água, que mata plantações, animais e senhores brancos.
Após quatro anos, a rebelião é sufocada e Mackandal morto, mas para os escravos ele continua vivo, servindo de inspiração ao seu povo na busca da liberdade. Este fato ocorre antes da Revolução Francesa, mas a referência aparece de forma muito sutil, por meio do rosto do Rei da França, em um jornal na Cidade do Cabo.
Vinte anos depois, explode uma segunda rebelião liderada pelo negro jamaicano Bouckman, que tem como estopim a negativa dos senhores brancos de obedecerem à decisão de libertar os escravos, que veio da metrópole. Os escravos abandonam as plantações e fazem um verdadeiro massacre, matam os senhores, violentam as mulheres e saqueiam os engenhos.
Essa rebelião ocorreu em 1791 e a ordem de libertar os escravos das colônias veio dos líderes da Revolução Francesa, com base na Declaração dos Direitos do Homem. Como as autoridades e senhores branco de São Domingos não obedeceram, Toussaint L’Ouverture (conhecido como Napoleão Negro) liderou essa rebelião. Esse personagem é citado na página 39 do livro, como o marceneiro Toussaint.
A rebelião é debelada, Bouckman é morto, os escravos são massacrados. Monsieur Lenormand consegue salvar os seus escravos, com os quais decide embarcar para Santiago de Cuba, como quase toda elite branca. Em Santiago, Ti Noel toma conhecimento das novidades que estão ocorrendo na Ilha de São Domingos, que o autor mostra dando destaque à chegada de Paulina Bonaparte, irmã de Napoleão e mulher do General Leclerc.
  Esses acontecimentos ocorrem em 1801, quando Napoleão Bonaparte envia a São Domingos uma expedição com 25 mil soldados, sob o comando de Leclerc, para intervir no levante dos escravos e tentar restabelecer a escravidão.  Leclerc perdeu o combate e acabou falecendo, atacado pela febre amarela, em 1802.
Depois disso, São Domingos entra num verdadeiro clima de desordem, as antigas regras são desobedecidas, os brancos continuam descontentes e os negros revoltosos. Dessalines, um ex-escravo, analfabeto, mulato, assume o poder, expulsa as tropas francesas e proclama a independência da colônia, que recebe o nome indígena de Haiti, palavra que significa montanha. Dois anos depois, Dessalines é deposto e morto, o país tem o controle dividido e Henri Christophe funda um reino ao norte. Este rei, o primeiro da América, é o cozinheiro citado na página 50, que depois se tornou artilheiro colonial.
Ti Noel retorna ao Haiti, após ser vendido para outro senhor e conseguido a liberdade, e tem a sensação de que anda “sobre uma terra em que a escravidão havia sido abolida para sempre” (p. 84), entretanto ao retornar à fazenda do seu antigo dono, que se encontra em ruínas, descobre um novo Haiti, liderado por negros e mulatos, porém com uniformes napoleônicos e costumes de influência europeia. Como toda a população, é forçado a trabalhar para o novo soberano, como escravo, na construção de uma fortaleza.
Ti Noel desabafa quanto a essa outra escravidão: 
 Pior ainda [que a dos franceses], pois havia uma infinita miséria em ver-se espancado por um negro, tão negro como os demais, tão beiçudo e acarapinhado, tão nariz largo como os demais; tão igual, tão malnascido, tão marcado a ferro, possivelmente, como os demais  (p. 93).   
Após um tempo Ti Noel é liberado e volta à fazenda do seu amo, que passa a habitar como se fosse o dono.  Enquanto isso, o rei empareda um bispo católico, tem um colapso nervoso, é deposto e comete suicídio. Sua mulher e duas filhas vão para Roma, acompanhadas por Solimán, o antigo criado de Paulina Bonaparte, que consegue ter acesso ao Palácio Borghese, onde encontra uma estátua de Paulina (a Vênus de Canova), cujas lembranças o levam de volta às suas origens, ao encontro dos seus deuses.
Ti Noel participa do saque ao Palácio do Rei – Sans Souci – e sente-se cada vez mais  um soberano nos seus domínios, até chegarem os republicanos para tomarem posse das terras e implantarem um novo período de trabalho forçado.
Temendo uma nova escravidão, o ex-escravo decide se metamorfosear, tal como o mandinga Mackandal, em insetos e animais. Entretanto, quanto mais fugia da escravidão, e a cada animal que se transformava caía debaixo de novo jugo, como no caso das formigas, ou era marginalizado, ao se transformar em ganso.
De volta à condição humana, Ti Noel, sentiu-se  "velho, de séculos incontáveis” e percebe que no Reino dos Céus, “não há grandeza a se conquistar” e conclui que “homem só pode encontrar sua grandeza, sua máxima medida no Reino deste Mundo” (p. 131).
Por fim, num belo cenário preparado pela natureza, alça seu vôo em direção a Bois Caïman, lugar onde se realizavam as cerimônias vodu de enfrentamento ao domínio francês.
O livro trata de homens, da raça negra, subtraídos da sua terra, das suas raízes, dos seus nomes e que vivem como escravos, num clima tropical, de natureza exuberante. O ambiente é repleto de sincretismo entre as religiões africanas e a religião católica, que foi fundamental para sustentar o desejo de liberdade dos escravos.
O autor usa uma linguagem muito rebuscada, o que às vezes dificulta a leitura, sendo necessário usar o dicionário com bastante frequência.  O livro tem poucas páginas, mas contem muitas referências históricas, literárias e mitológicas que se consultadas, expandem o universo da narrativa. Existem muitas citações em francês e na língua dos escravos, que se fossem traduzidas para o português, poderiam facilitar o entendimento.
Gostei muito da narrativa, recomendo, mas é um livro que precisa ser lido e relido, mais de uma vez. A linguagem é muito simbólica e algumas sutilezas podem passar despercebidas numa primeira leitura.

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