sábado, 16 de maio de 2015

Caçando Carneiros - Haruki Murakami


 by Daniela


“- A chave do mistério está na fraqueza – disse o Rato. É aí que tudo começa. Você com certeza não entenderia esta fraqueza.
- O ser humano é fraco.
- Você está generalizando – disse o Rato, fazendo as articulações dos dedos estalar. – Você não chega a lugar nenhum generalizando. Neste momento, estou lhe falando de coisas muito pessoais.
Calei-me.
-A fraqueza costuma apodrecer a gente por dentro. Feito gangrena. Eu vinha sentindo isso desde a metade da faixa dos vinte anos. Era por isso que eu vivia irritado. Você é capaz de imaginar o que é sentir-se apodrecendo gradativamente, de sentir-se assim o tempo todo?”
‘Caçando Carneiros’ foi o terceiro livro publicado do escritor japonês Haruki Murakami e o que deu início a sua carreira internacional, em 1982. O autor, nascido em 1949, hoje é publicado em mais de 50 países e vem sendo cotado para o Nobel de literatura.
‘Caçando Carneiros’ (‘A Wild Sheep Chase’, na tradução inglesa) é também o terceiro livro de uma trilogia entitulada por alguns como trilogia ‘boku’ ou trilogia do Rato, que sucede ‘Hear the Wind Sing’ (1979) e Pinball, 1973 (1980). A trilogia, sempre narrada em primeira pessoa, trata da história de dois amigos (o narrador sem nome e o Rato) da mesma cidade de Kobe, entre 1970 e 1978, em busca de significado para suas vidas desiludidas. Em japonês, a primeira pessoa pode ser utilizada formalmente (‘watashi) ou informalmente (‘boku’); e o autor utiliza o pronome informal, o que cria um efeito que não pode ser traduzido.
As 50 primeiras páginas do livro desvendam partes da memória passada e acontecimentos na rotina do narrador, que está prestes a fazer 30 anos no ano de 1978, tem um trabalho pouco desafiante com um sócio bêbado e, recém-divorciado, namora uma modelo de orelhas poderosas. A moça e suas orelhas começam a introduzir na história os elementos surreais e oníricos que vão, aos poucos, predominando na atmosfera do livro. Uma foto de carneiros em paisagem campestre enviada pelo amigo Rato, que lhe pede que seja publicada, acaba por colocar a vidinha medíocre do narrador em um outro patamar, misterioso e mitológico. Começa a busca por um carneiro incomum, com marca de estrela, nas profundezas rurais do Japão, que culmina num encontro com seu amigo Rato, recém migrado para o outro lado levando o que restou do carneiro e seu poder. O narrador fica com um cheque, sem a moça das orelhas, chorando na praia, prestes talvez a retomar sua vida monótona.
Embarcar no fim de uma trilogia é como chegar ao cinema com o filme já no meio, em muitas cenas a gente fica com cara de paisagem, sem entender as referências. O que a ‘garota que dormia com qualquer um’, que lia e fumava vorazmente, tem a ver com o resto da história? O que o Rato significa para o narrador, que tipo de amigos eles foram, o que eles viveram juntos antes? Por que o narrador tem e busca uma vida monótona?
A mitologia em volta do carneiro com uma estrela é a parte mais interessante. Qual é o significado do carneiro? O Doutor Carneiro nos conta que não era incomum nas tribos do norte da china e Mongolia a experiência de ser possuído, um carneiro entrando um corpo é uma benção dos deuses, o que supostamente teria acontecido com Genghis Khan. Murakami não parece ter a pretensão de um realismo mágico a la Garcia Marquez, a estranheza dos acontecimentos é colocada de forma crua, abrupta. Não é para acreditar, não se coloca um cenário envolvente de magia, tudo só acontece e a gente fica achando esquisito.
O carneiro parece representar uma força maligna, talvez conectada ao imperialismo japonês durante a guerra e ao ressurgimento da direita extremista no Japão contemporâneo. O Rato se recusa a servir a esse poder do carneiro e a ser imortal, talvez recusando ser parte do sistema que tirou o idealismo de sua geração, deixando-a em busca de sentido e identidade.
Apesar de alguns bons diálogos (por exemplo, ele no restaurante com a modelo de orelhas, no primeiro encontro) e um bom manejo da trama misteriosa, que prende principalmente no terço final do livro, não considero que este livro seja uma boa introdução à obra do autor.  Tomado isoladamente passa a ideia de futilidade, superficialidade; há várias cenas sem utilidade na narrativa, descrições excessivamente detalhadas de ambientes e rotinas, desdobramentos inverossímeis e pontas soltas. Como num daqueles sonhos sem sentido. A moça das orelhas e seu poder, aparentemente tão essenciais para a trama (ela antecipou o telefonema sobre o carneiro; ela escolheu o Hotel Golfinho do Doutor Carneiro; o poder dela tinha alguma coisa a ver com o tipo do poder do carneiro?),  de repente evapora da história, como atriz de novela que fica doente.
No entanto, pesquisando um pouco sobre o autor, sua obra e sobre a trilogia, aprendi que há uma legião de admiradores (e outros tantos críticos) do autor, dentro e fora do Japão. Os seguidores reconhecem elementos recorrentes em suas obras, como gatos, cerveja, ondas de nostalgia, bar de jazz, um narrador fumante meio entediado, insights filosóficos sobre o mundano; orelhas, spaghetti cozinhando, música e literatura ocidental, metáforas interessantes, boas descrições do cenário natural, reflexões sobre o desejo humano e os sentimentos; consciência da perda e questões sobre o sentido da existência.
Os comentários mais interessantes e esclarecedores sobre Haruki Murakami que encontrei estão em um blog entitulado ‘The Faint Light’, que já foi um blog voltado para literatura, até 2011, mas cujo autor hoje se declara com mais interesse no marxismo. Ele tem três longos posts sobre a política em Haruki Murakami, que são muito interessantes e valem a pena. O que segue são alguns dos comentários e explicações extraídos dos posts sobre esta trilogia.




Ainda que pareça que quase todas as obras de Murakami estejam permeadas de uma ironia pesada e uma atitude superior em relação à política, principalmente quanto  a iniciativas concretas de mudanças na sociedade, o autor do blog defende que suas primeiras obras, a trilogia em questão, deixam transparecer a consciência política do autor, forjada pela sua participação no movimento estudantil japonês em 1968, que estão como pano de fundo destes primeiros trabalhos. Tanto seus personagens quanto Murakami são profundamente marcados pelo impasse, derrota e desilusão com o movimento, pela luta em lidar com este passado e achar uma saída, o que é o ponto de partida de exploração da psique individual, característica de todo o seu trabalho. Esta trilogia, portanto, é caracterizada por um desespero pequeno-burguês e desilusão com a participação política.
No primeiro livro (Hear the Wind Sing), o narrador (estudante de biologia)  e o Rato se encontram na Universidade de Tokyo, onde ambos estudam. A narrativa acontece entre 8 e 26 de agosto de 1970, antes do semestre escolar recomeçar. Os dois frequentam o bar do ‘J’, bebem cerveja, leem, ouvem radio, saem com garotas, e não discutem em profundidade sua amizade. O Rato decide deixar a universidade e se torna um escritor, enviando uma cópia de seu mais recente romance para o amigo todo Natal. Ambos participaram do movimento estudantil e foram feridos em confrontos com a polícia, detalhes pouco explicitados na narrativa, mas que podem ser inferidos de algumas passagens. Um leitor japonês da idade de Murakami vai saber do que ele pincela em algumas passagens: o movimento estudantil se desintegrou na primavera de 1970 e durante as férias de verão os radicais tiveram que encarar a volta às aulas na ausência do movimento estudantil. O narrador e o Rato claramente perderam o idealismo e estão vivendo a realidade da desilusão.
No Segundo livro da trilogia, Pinball, 1973, o narrador está três anos adiante do primeiro livro, formado e trabalhando como tradutor em um pequena firma, com um sócio. Tornou-se um assalariado, que três anos ele abominava como ideal de vida. Torna-se obcecado por máquinas de pinball e mora com duas amigas gêmeas. O Rato voltou a sua cidade natal e progride em sua carreira de escritor. Aparentemente, o narrador e o Rato poderiam ser dois lados da mesma pessoa, ou ainda, o Rato parece viver no inconsciente do narrador, como uma memória. A vida do narrador é entediante e sem significado maior. Grande parte das memórias do narrador neste livro tratam de uma namorada (com nome, Naoko), estudante de francês que se enforca por motivos misteriosos e que vai aparecer em outro livro do autor.
Caçando Carneiros marca uma mudança de estilo e substância na obra de  Murakami, que a partir deste livro começou a se dedicar totalmente à escrita. Uma vez mais a história conecta o fim do movimento estudantil, com os problemas atuais do narrador, sua distância emocional da vida. Juntos, estes três livros representam um busca por identidade: O que sobra para indivíduo na ausência de um movimento par tornar um mundo um lugar melhor, na ausência de uma causa coletiva? A exploração que Murakami faz desta questão nestes e em seus livros posteriores leva a uma porta sem saída. De um ponto de vista político, poderíamos dizer que o individualismo de Murakami não oferece alternativa a um sistema que reduz tudo, incluindo o impulso criativo e a intimidade sexual a uma massa amorfa. Pode-se argumentar que é papel da política e não da literatura oferecer alternativas.  



Um comentário:

  1. Comentários sobre o romance CAÇANDO CARNEIROS de
    Haruki Murakami

    Texto e ritmo- Mais da metade do romance forma um preâmbulo de leitura agradável, onde o autor apresenta fatos corriqueiros com belas descrições, tudo numa narrativa elegante, fomada por palavras simples, fáceis de assimilar, mas empregadas de forma cuidadosa.
    Aos poucos o autor adiciona ação ao enredo, ao mesmo tempo em que cria suspense, introduzindo no romance uma missão repleta de fatos extraordinários.
    Murakami é capaz de tornar críveis eventos absurdos – (pag208)

    Ambientação- não fosse pelas referências à geografia do Japão – montanhas e cidades- a história poderia se desenrolar em qualquer lugar do mundo. O autor não insere elementos orientais no romance, que se desenrola sem quimonos e hachis para as refeições. Nada de peixe cru- o narrador cozinha omeletes, sanduiches, massas, risotos, e assados para as refieções.
    Os parágrafos com descrições, alguns bem longos, são minuciosos e interessantes.
    Algumas descrições são inusitadas- por exemplo, dando ao horário cheiro e vida- “cheiro de horas mortas no ar” (pag 264)

    Os personagens são bem delineados, cada um com seu fardo meio sombrio. Desalento.
    O personagem principal, que não revela seu nome pelo fato de ser cem por cento o narrador, é uma pessoa comum, que leva uma vida banal e passa boa parte do livro se criticando.

    O romance tem diálogos curiosos, alguns deles surreais.

    O objetivo do livro parece ser uma critica à política de direita e ao poderio econômico, representado pelo Chefe. Talvez uma paródia ao lobo vestido em pele de carneiro. Foi assim que tentei entender o diálogo da pag 324: “Experimentou ligar para Deus?””Não tive tempo, sabe?

    Os capítulos com títulos ilustram o assunto tratado, o que facilita a leitura de recapitulação.

    Murakami fecha a narrativa sem deixar pontas soltas.

    Trata-se de um romance muito festejado, mas apenas uma leitura interessante.

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