Companhia das Letras, 1998
por Claudine Duarte
“Naqueles primeiros anos amorfos, em que a
memória tinha apenas começado, em que a vida era cheia de Começos e sem Fins, e
Tudo era Para Sempre, Esthappen e Rahel pensavam em si mesmos juntos como Eu, e
separadamente, individualmente, como Nós. Como se fossem uma rara espécie de
gêmeos siameses, fisicamente separados, mas com identidades conjuntas.
(...) E isso são só as pequenas coisas.”
Tristeza. Mais do que a angústia citada na contracapa.
Tristeza é o sentimento que escorre pelas trezentas e poucas páginas do livro O Deus das Pequenas Coisas, primeiro
romance da escritora indiana Suzanna Arundhati Roy. Publicada em 1997
coincidentemente com o aniversário de 50 anos da independência da Índia, a obra
integrou a lista de best-sellers do NY Times e, bem recebida pela crítica,
conferiu à autora o The Man Booker Prize.
Ayemenem, cidade da região central de Kerala, Índia, é o
cenário que abriga a família dos gêmeos Esthappen e Rahel, personagens que
acompanhamos de forma desprovida de ordem cronológica entre 1969, quando tem 7
anos, até o ano de 1933, quando a narrativa é interrompida. Arundhati Roy
escolhe narrar a história de forma onisciente, penetrando nas casas e mentes
das pessoas, marcando presença até mesmo quando descreve os gestos da mariposa
que mora no coração de Rahel.
Penso no romance como um palácio de memórias, pelo qual
passeamos para cima e para baixo, para frente e para trás. Guiados pela
narradora em seus saltos temporais, adentramos salas, quartos e jardins povoados
pelas vozes de cada personagem.
Imagino entrar numa grande sala e encontrar Baby Kochama, a
solteira e amarga tia-avó de Esta e Rahel. Ali, nos contaria de seu amor por um
padre irlandês e sua frustrada tentativa de ser uma freira... Talvez, com seu
grande corpo espremido numa poltrona violeta, nos falasse de seu arrependimento
por ter espiado e estraçalhado a vida dos que a rodeiam. Talvez. Mas talvez,
simplesmente nos fitasse com a amargura dos que depositam nos outros toda a frustração
de uma vida.
Ao sair da sala, nos encontramos na cozinha com Mammachi,
irmã de Baby Kochama, avó dos gêmeos e proprietária da fábrica Paraíso, Picles
& Polpas. Ela contaria de sua família: “Todos
desrespeitavam as regras. Todos ultrapassavam territórios proibidos. Todos
desafiavam as leis que determinavam quem podia ser amado e como. E quanto.” Isso
nos abriria caminho para observar o injusto sistema de castas da Índia e o modo
que a autora escolheu para criticar a colonização ocidental, as consequências
da globalização e das conversões religiosas.
Mais alguns passos e nos encontramos com Pappachi –
impecavelmente vestido com um terno de 3 peças e relógio de ouro - que, entre
mariposas e borboletas desintegradas, segura um dos livros de sua coleção Tesouro dos Insetos da Índia e prenuncia
sua ausência precoce, seu desconforto com mulheres
que trabalham, seu humor que o leva a maltratá-las e uma profunda decepção:
Como os ingleses que admirava tanto puderam lhe ser tão desleais? Sua
descoberta – “A” mariposa – não levou seu nome e sim do diretor que o sucedeu
no Departamento de Entomologia... E agora é um fantasma de pernas peludas no
meio de sua família, descendente de cristãos sírios.
Ainda nos corredores desse palácio de memórias, conhecemos Chacko,
um dos filhos de Mammachi e Pappachi, que nos fala sobre seus estudos em
Oxford, onde conheceu Margareth e tiveram uma garotinha, a Sophie Mol. Segura 2
rosas e nos diz que vai busca-las no aeroporto. Está feliz e orgulhoso. Sua
ex-mulher é branca e usa um vestido estampado de flores.
Ao descermos a escada nos deparamos com o corpo da pequena
Sophie estirado numa das cadeiras da sala antes de seguir para seu funeral na
igreja. É outro Chacko que conhecemos após o afogamento da filha. “Já
então Esthappen e Rahel tinham aprendido que o mundo tem outras formas de
quebrar homens”. Encontramos Mammachi. "A
dor dela própria a entristecia. A dele a devastava.”
Através de uma porta trancada, escutamos Ammu contar parte
de suas desventuras. Filha de Mammachi e, como ela, espancada por Pappachi e
sem pretendentes, aceitou se casar com o também violento e alcoolatra Baba.
Dessa união, vieram os gêmeos, Estha e Rahel. Quebrando um tabu, se divorcia e
retorna para Ayemenem com os 2 filhos para novamente romper uma regra e se
tornar amante de Velutha, um ‘paravan’. Sua família descobre o caso e, como
punição, a exila na própria casa antes de expulsá-la, condenando que sua breve e triste vida termine longe dos próprios
filhos.
Para encontrarmos Velutha, temos que sair da casa e
caminharmos até a fábrica de Picles e Geléia, que Chacko, pretenso marxista,
julgava sua. Talvez, na estrada passemos pela barraca em que uma geladeira
vermelha nos relembre “em letras tristes TUDO VAI MELHOR COM COCA-COLA”.
Velutha, um paravan
(intocável), cuida da manutenção da fábrica, numa atitude condescendente de
Mammachi. É um membro do Partido
Comunista Indiano e nos diz que aderiu por ser o único partido político que
propõe o completo desmantelamento do sistema de castas. No entanto,
pressente que seus companheiros não defenderão seu relacionamento com Ammu, demonstrando
a hipocrisia dos políticos da época que fazem vista grossa ao seu brutal
assassinato pelos policiais corruptos.
Da história de amor que vive com Ammu, em apenas treze
noites, Velutha nos conta de pequenos atos, pequenas vidas e como as pequenas
coisas podem representar momentos felizes e de esperança. “Amanhã” era a palavra que usavam para se despedir. Uma promessa de Deus das Pequenas Coisas.
Voltando à casa, novamente encontramos Baby Kochama, velha e
alheia aos fatos que desencadeou com sua atitude vingativa, preenche cupons de
Listerine. Poderia ganhar 2 mil rúpias... mais de 20 anos se passaram. Os
gêmeos se reencontram.
No quarto ao lado – o mesmo que abrigou o exilio de Ammu,
assistimos ao reencontro de seus filhos Estha e Rahel, agora com 31 anos – a
primeira vez que estão juntos desde que eram crianças. Rahel estudou nos
Estados Unidos, se casou e se divorciou, carregando com ela um olhar vazio em
que “vários tipos de desespero disputam a
primazia”. Estha, vitima de abusos na infância não nos fala nada, com
palavras. Havia deixado sua voz na estação de trem ao ser Devolvido ao pai,
depois de ter traído Velutha. Recusou-se a ir para a faculdade, fez trabalhos domésticos para seu pai e sua madrasta, tudo dentro de uma invisível bolha de silêncio:
“Quando a quietude chegou, foi para ficar e expandir-se dentro de Estha.
Brotou de sua cabeça e o envolveu com braços pantanosos. Embalando-o ao ritmo
de uma pulsação antiga, fetal. Projetou seus tentáculos com ventosas furtivas
deslizando pelo interior do crânio, aspirando os picos e depressões de sua
memória, deslocando velhas frases, que surrupiava da ponta da língua. Despiu seus
pensamentos das palavras que os descreviam deixando-os esfolados, nus.
Indizíveis. Entorpecidos. E para um observador, portanto, quase ausentes.
Lentamente, ao longo dos anos, Estha foi se retirando do mundo. Acostumou-se ao
inquieto polvo que vivia dentro dele e esguichava uma tinta tranquilizante
sobre seu passado. Gradualmente, a razão de seu silêncio foi se escondendo,
sepultada no fundo das dobras serenas do fato em si.” P. 23
“A palavra que o polvo de Estha não conseguia atingir: SIM. Não adiantava
passar o aspirador de pó. Ela estava alojada ali, no fundo de alguma dobra ou
sulco, como um fiapo de manga entre molares. Que não se consegue tirar.” P.42
Estha e Rahel se tocam e permanecem abraçados, “mais uma vez
eles quebraram as Leis do Amor.” Vemos lágrimas. Partilham sofrimento. “Eles se
conheciam antes da Vida começar.”
"Em termos puramente práticos, provavelmente seria correto afirmar que tudo começou quando Sophie Mol chegou a Ayemenem. Que apenas doze horas podem alterar a trajetória de uma vida inteira. E que, quando isso acontece, essas poucas horas, como os destroços saqueados de uma casa incendiada, o relógio calcinado, a fotografia rasgada de um momento feliz, a mobília enegrecida, podem ser ressuscitados das ruínas e examinados. Preservados. Explicados.Talvez seja verdade que as coisas podem mudar em um dia. Pequenos acontecimentos,
coisas triviais, esmigalhados, reconstituídos. Revestidos de novos significados
– de repente elas se tornam os descarnados de uma história... Mesmo assim,
dizer que tudo começou quando Sophie Mol chegou a Ayemenem é apenas uma das
maneiras possíveis de ver as coisas...
Também seria viável
afirmar que tudo começou há milhares de anos. Muito antes de virem os
marxistas. Antes de os britânicos tomarem Malabar, antes da Ascendência
Holandesa, antes da chegada de Vasco da Gama, antes da conquista de Calicut
pelos zamorin. Antes de os três bispos sírios vestidos de púrpura serem
assassinados pelos portugueses e encontrados boiando no mar, com serpentes
marítimas enroladas em seus peitos e ostras enredadas em suas barbas
emaranhadas. Pode-se argumentar que tudo começou antes de que o cristianismo
chegasse num navio e se difundisse em Kerala como o chá de um saquinho no
bule.” P. 43
Gostei
muito do livro, porém recomendo com restrições. Indico a leitura para quem não
se incomoda com narrativas circulares. Recomendo aos que se encantam com os
romances que apresentam temas complexos em múltiplas camadas, tais como
incesto, loucura, abusos e transgressões sociais. Recomendo aos que gostarão de
ver um encontro de História e Literatura. Recomendo com alerta para aqueles que
conseguem adentrar, sem sequelas, no Coração das Trevas dos homens dito
civilizados.
“O que Esthappen e Rahel
testemunharam aquela manhã, embora não soubessem então, era uma demonstração
clínica em condições controladas (não era guerra, afinal, nem genocídio) da
busca de ascendência da natureza humana. De estrutura. De ordem. De monopólio
completo. Era a História humana, mascarada em Propósito Divino, revelando-se
para uma platéia de menoridade.
Não havia nada de
acidental no que ocorreu aquela manhã. Nada incidental. Não era um assalto circunstancial,
nem um acerto de contas pessoal. Era uma era imprimindo a si mesma naqueles que
viviam nela.
A História ao vivo.
Se machucaram Velutha
mais do que tencionavam, foi só porque qualquer parentesco, qualquer ligação
entre eles e ele, qualquer implicação de que, pelo menos biologicamente, ele
era um semelhante, tinha se rompido havia muito. Eles não estavam prendendo um
homem, estavam exorcizando o medo.
(...)
Afinal, não estavam combatendo uma epidemia. Estavam apenas vacinando uma comunidade contra um levante.” P. 318
(...)
Afinal, não estavam combatendo uma epidemia. Estavam apenas vacinando uma comunidade contra um levante.” P. 318
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