terça-feira, 10 de março de 2015

O LEGADO DE ESZTER


de Sándor Márai – Companhia Das Letras, 2001

 Por Claudia Oliveira


“Qual é o seu limite, Lajos?” Perguntei (...)

“Que pergunta é essa, qual o limite?”, perguntou inseguro

“Qual é o limite?” Repeti. “Imagino que todo homem tenha algum limite íntimo em que há uma medida para o bem e para o mal. De certo modo, para tudo o que é possível entre os homens. Mas você não tem limites”.

“São apenas palavras”, disse, e como se entediado fez um gesto de resignação. (...)

  Os limites das relações humanas são brilhantemente discutidos pelo romancista, poeta e dramaturgo húngaro Sándor Márai no livro “O Legado de Eszter”. A obra leva o leitor a um interessante mergulho nas idiossincrasias da alma humana por meio das lembranças e reflexões da personagem Eszter. Trata-se de uma história sem final feliz, como já anuncia a narradora no primeiro parágrafo,
“Não sei o que Deus ainda reserva para mim. Entretanto, antes de morrer, quero contar a história do dia em que Lajos esteve comigo pela última vez e me roubou.”
em que cada personagem mantém-se fiel ao papel que cumpre na vida, agindo na maturidade da mesma maneira como se comportaram vinte e cinco anos antes.
Eszter é a narradora e protagonista, narra seu próprio infortúnio com a expectativa de quem não tem muito tempo de vida e de quem espera solucionar as últimas dúvidas por meio do compartilhamento de sua história e suas emoções.
 
Ao me presentear, a vida foi maravilhosa, e ao me roubar, perfeita ... que mais posso esperar? Tenho de morrer, pois esta é a lei e porque cumpri meu dever.
(...) Tenho de confessar que em minha vida e realizações não há sombra da ira e ímpetos bíblicos, sim, nem mesmo da certeza e dureza que marcavam as opiniões que amiúde expressava na presença de estranhos acerca de Lajos e meu destino.
Era uma mulher de meia idade, que vivia na casa herdada dos país em uma cidade do interior. Não se considerava infeliz, embora admitisse que tinha a “consciência amarga da juventude perdida”, também não se considerava feia, mas alegava não ter “a beleza que atrai os homens”. Era loira, “alta, esguia e proporcionada” e passara dos 45 anos de idade. Olhava-se como “a mulher que esperava o amante”. Vivia uma vida pacata: “Experimentávamos a segurança que é um pouco a do náufrago, um pouco a segurança da felicidade sem anseios”. Convivia com os traumas do passado e com as lembranças da família de forma quase resignada, diante da impotência de reformular o caminho de vida que traçara, até o momento em que é comunicada da volta de Lajos, e alguma esperança de uma vida diferente renasce.
Lajos é o anti-herói da narrativa. Foi o único homem que Eszter diz ter amado na vida. Com suas atitudes influencia e marca indelevelmente os demais personagens do romance. Lajos era um mentiroso compulsivo, e todos o sabiam. Tinha mais de 50 anos, era moço da capital, verborrágico, artificial, aventureiro, manipulador, infantil, ligado a escândalos políticos e a negócios desonestos. Faltava-lhe o “senso de realidade”, sobrava-lhe o “devaneio excessivo”. Eszter creia que ele era portador de uma “fonte de energia”.
Lajos era fiel à Nietzsche, que determinou  que vivêssemos perigosamente. Entretanto, ele próprio temia o perigo; nas aventuras, nas aventuras políticas, bem como nas afetivas, lançava-se com alarde, mas com armas secretas, mentiras premeditadas, as costas quentes, um estojo de maquiagem no bolso e as cartas escandalosas do inimigo, que guardara.
Completam a narrativa os seguintes personagens:
Nunu, com quase 70 anos, era aposentada do serviço postal, viva na casa com Eszter, que a considerava serena, lúcida, solene, justa, áspera, ajuizada, calada, de indiferença imparcial e realista. Acreditava saber tudo sobre Eszter, o que a ofendia ao mesmo tempo que a orientava. Sobre sua própria vida, nada falava. Taciturna e precavida era considerada pela narradora uma parente necessária, a verdadeira família. Era cética em relação a Lajos, conhecia-o bem, mas não era imune às suas armadilhas.
Endre era um notário de personalidade calma, que desejou esposar Eszter, que recusou-se por achá-lo um tanto enfadonho, embora o tivesse como um bom amigo. Era o único personagem que contava com certo respeito (ou medo) de Lajos, por haver encoberto suas desonestidades no passado. “Não se impressionava com seu feitiço e, a seu modo, conserva uma indiferença interior à irradiação e ao encantamento que, segundo acredita, derramam-se de Lajos sobre tudo e todos”. Tenta, em vão, proteger Eszter dos golpes de Lajos.

O livreiro Laci é irmão de Eszter. Confiante e agressivo, foi o responsável por apresentar Lajos à família. Não pôde resistir nem na juventude, nem mais de vinte anos depois, aos encantos de Lajos, de quem se dizia credor. Ambos foram no passado considerados “grandes promessas” embora “Ninguém era capaz de precisar o que Laci e Lajos ‘prometiam’”. Nutria grande ciúmes pela irmã, que era “seu ponto fraco”, e não tolerava segredos.
Tibor também desejou casar-se Eszter, mas também fora recusado pois, segundo ela, “em segredo, ainda esperava por Lajos”. Também foi seduzido pelas artimanhas deste. Jovem e calmo, era um bom amigo e junto a Endre formava uma espécie de dupla protetora de Eszter.
Vilma era a irmã morta de Eszter e ex-mulher de Lajos. Tem importância na trama do romance pelas emoções que desperta em Eszter e pela descoberta de que roubara cartas endereçadas a ela e que poderiam ter mudado seu destino. Era invejosa e despertava na irmã grande mágoa por tê-la tomado seu grande amor.
Eva e Gábor eram “as crianças”, os “órfãos” como preferia designá-los Lajos que “os exibia indiferente, de frente e de lado, como se tivesse encontrado na rua essas crianças maltrapilhas, abandonadas por Deus e pelos homens (...)”. Embora vítimas das irresponsabilidades e aventuras do pai, não pareciam recriminá-lo pela infância tumultuada. Eszter descreve Gábor como “engenheiro formado, um jovem obeso, indolente, afetado e soturno”, e Eva como “jovenzinha muito urbana, crescidinha, (...) o sorriso algo irônico, magoado e ansioso” de “uma voz doce, um tanto melodiosa”. No decorrer da narrativa, Eva confrontará a tia Eszter sobre suas atitudes passadas e reclamará a herança de sua mãe, um anel.
 Personagens secundários são o jovem Béla e sua mãe Olga, que acompanham Lajos na visita à casa de Eszter. A mulher cuidava das tarefas domésticas de Lajos, e à Eszter parecia uma aventureira cansada e mal-humorada. Dizia-se traída e abandonada, mas em nenhum momento comoveu a narradora, que não teve simpatias por ela. Seu filho, que Eszter descreveu como estranho, triste e distante, era o noivo de que Eva não gostava, mas se via obrigada a casar-se, mesmo sendo apaixonada por outro homem, em função de uma dívida do pai. Passara dos 30 e era secretario no escritório de um partido político, “parecia mais velho que o próprio Lajos”.
A casa com seu grande jardim, o anel e as três cartas escritas por Lajos são também elementos importantes da narrativa e ganham importância pelo impacto que têm na vida da protagonista.
            A romance começa com o recebimento de uma carta de Lajos avisando que voltaria já no dia seguinte, o que provoca lembranças em todos os personagens e leva ao desfecho que motivará Eszter à decisão contar sua história. A volta desse homem, diretamente do passado, após anos de ausência de notícias, faz que a narradora veja-se obrigada a confrontar o seu passado.
“O homem vive ... e um dia percebe que ‘cumpriu’ ou ‘não cumpriu’ seu dever. Começo a crer que as decisões solenes e definitivas, que traçam o relevante na linha do destino de nossas vidas, são bem menos conscientes do que acreditamos mais tarde, nos momentos de rememoração e lembranças. Fazia vinte anos que não via Lajos, e pensava estar a salvo das memórias.”  
Lajos chegara à vida de Eszter e de sua família há mais de vinte anos e trouxe à casa “agitação romanesca”. Sua presença acabara por mudar os hábitos de todos que buscaram “compensar suas falhas” lendo os autores favoritos de Lajos, trocando os móveis da casa, mudando o jeito de se vestir e até bebendo menos, como no caso do pai de Eszter. Com o tempo, todos da família já tinha com ele um vínculo de dependência, embora a narradora tenha resistido, inicialmente, à sua astúcia:
Hoje diria que, diante daquela ilusão cruel, fui eu que fiquei lúcida e resistente por mais tempo; mas por que embalar-me nesse triunfo mesquinho? Sim, ‘vi’ Lajos desde o primeiro instante: e não acorri cega e ávida a seu serviço? Era tão sério e frágil.

Lajos e Eszter se apaixonaram, ele pediu sua mão, mas casou-se com sua irmã. Após a morte de Vilma, distancia-se de Eszter, “após a separação, sumiu de modo espantoso, como se tivesse enfiado uma cartola mágica. Não tive notícias dele durante anos”, que passa a viver na antiga casa da família com Nunu:
Não sobrou nada, a não ser a casa e o jardim. A casa estava hipotecada por alguma dívida insignificante. Sempre acreditei possuir uma natureza tenaz, obstinada e prática. Assim que fiquei só, reconheci que até então vivera em algum lugar entre as nuvens – aquelas nuvens cheias de raios – e pouco sabia de verdadeiro e confiável sobre a realidade terrena. Nunu dizia que, para nós duas, o jardim e a casa bastavam. Ainda hoje, não compreendo como poderiam ‘bastar’.

O período que Eszter passou em companhia de Lajos parece ter sido o ápice de sua vida e, talvez por isto, ao final ela concorde entregar-lhe tudo, como que um pagamento por ele ter proporcionado algum momento de excitação pela vida. A partida de Lajos significou a interrupção desta fase e sua volta o fim da vida de normalidade que se instalara posteriormente:
Por algum tempo, minha vida foi verdadeiramente ‘perigosa’ na proximidade de Lajos. Agora que o perigo passara, percebi que nesse lugar nada restou; percebi que aquele perigo era o único – e verdadeiro -  sentido da vida.

Por vezes a vida era, na casa e no jardim, como uma vida de verdade, com projetos, dever, conteúdo interior. Só não tinham nenhum sentido; poderia perdurar assim por décadas, porém eu não resistiria se de um dia para outro decretassem que a interrompesse. Era uma vida uniforme e sem perigos.
Houve, por parte das personagens, certa preparação para recebê-lo. Nunu preocupou-se com o pouco que restara da prataria da casa. Endre, Tibor e Laci rememoraram o passado ficaram curiosos. Havia certa expectativa de que Lajos poderia querer corrigir os erros do passado e saldar suas dívidas. Eszter alternava momentos de esperança e de desconfiança, ficou “subitamente” “bem-humorada, como alguém que nenhum perigo ameaça”, mas já premeditava os problemas que esta visita lhes causaria:
Pensei que Lajos ainda não chegara e já me tirava alguma coisa. Parecia que não podia ser diferente. Essa era a lei, a lei dele. Lei terrível, pensei; e comecei a tremer.

O dia da volta de Lajos marca o início e o fim da narrativa do romance. As horas que a antecederam sua chegada, desde o recebimento da carta, dão à Eszter uma oportunidade de rememorar o passado, e os anos que se passaram de sua partida até a decisão de escrever do livro propiciam-lhe a chance de fazer um balanço da vida.
Lajos trouxe de volta o tempo e as aventuras atemporais da vida. Eu sabia que não mudara. Sabia que Nunu teria razão. Sabia que não haveria como se opor a ele. E, ao mesmo tempo, sabia que ainda não suspeitava da verdade sobre a vida, sobre a minha vida e a dos outros, e só por meio de Lajos descobriria a verdade – sim, por meio de Lajos, o mentiroso.
Nós o recebemos, porque eram impossível deixar de fazê-lo, e tudo era exatamente tão atemorizador, desagradável e inadiável pra ele como para nós.
Lajos chegou e o dia começou, o dia da visita de Lajos (...). Gostaria de ser fiel no relato desse dia. Custei compreender o significado real da visita. Começou como a apresentação de um circo itinerante. (...) Terminou de modo muito simples. Lajos foi embora, o dia, uma parte da vida, findou. Continuamos vivendo.
Embora todos na casa suspeitassem da verdadeira intenção de Lajos, ele foi recebido com certa alegria e encantamento. “Tibor e Laci mergulharam extasiados nas maravilhas do espetáculo”. Chegou de maneira teatral, mas Eszter não identificou nesta teatralidade qualquer premeditação, sabia que Lajos era bom improvisador. Como que se seguisse um roteiro, primeiro tenta conquistar a simpatia dos que lhe esperavam com presentes, palavras e até uma tartaruga adestrada. O segundo ato seria o momento da tentativa de se fazer de vítima das circunstâncias, como se todos devessem-lhe alguma coisa, e de se colocar como o salvador de Eszter. No terceiro ato, enfim, mostraria a real intensão  de sua visita, o esbulho final!

“Sente-se Lajos”, disse. “O que você quer de mim?”
Sentia-me calma e bem-intencionada. Já não o temia. Esse homem fracassou; e o pensamento não me trouxe satisfação; não senti nada exceto compaixão, uma profunda e humilhante compaixão. (...)
De repente, sentia-me bem mais velha, madura. (...)
“Quero acertar tudo”, repetiu mecanicamente.
“O que quer acertar?”
Olhei-o nos olhos e desatei a rir (...). Passado algum tempo não é possível “acertar-se” nada entre as pessoas; compreendi essa verdade desesperançada ali, no banco de pedra. O homem vive e remenda, repara, constrói e depois, por vezes, estraga a vida; mas com a passagem do tempo percebe que o todo, que se erigiu daquela forma, a partir dos erros e acasos, não é modificável. Lajos já não podia fazer mais nada. Quando alguém emerge do passado e anuncia em tom comovido que deseja acertar “tudo”, o propósito só pode suscitar compaixão e riso; o tempo já “acertou” tudo, a seu modo singular, o único possível.
“Deixe, Lajos. Naturalmente, estamos todos contentes em vê-lo... as crianças, você. Não conhecemos seus planos, mas estamos felizes por vê-lo novamente, ao menos uma vez. Não falemos no passado. Você não deve a ninguém, não deve nada”. (...)
Somente a comoção e o desconforto excessivos permitiram afirmar que o passado não existia mais e Lajos “não devia a ninguém”. (...)
“É provável que você não tenha vindo apenas por isso”. (...)
“Não”, disse e tossiu. “Não foi só por isso que vim. Eszter, tenho de falar com você ainda uma vez”.
“Não tenho mais nada”, disse sem querer e ousada.
“Já não preciso de nada”, respondeu; e não se ofendeu. “Desta vez sou eu quem deseja dar. Veja, vinte anos se passaram, vinte anos! Não haverá mais tantos vinte anos na vida! Ao longo de vinte anos tudo fica mais claro, mas transparente, mais compreensível. Sei o que aconteceu, sei também o porquê”. (...)
“Não há nada que possa me dar. Você levou tudo, estragou tudo”.
Respondeu o que eu esperava:
“É verdade”. (...)
“Uma pergunta Eszter”, disse em voz baixa, grave. “Uma única pergunta”.
Fechei os olhos; senti calor, vertigem. (...) Meu Deus, agora ele vai perguntar. O quê? Talvez, por que tudo aconteceu? Talvez fosse eu a medrosa? Não, desta vez terei de responder! Respirei fundo e o encarei, pronta para a resposta.
“Diga, Eszter”, perguntou num sussurro, com intimidade, “esta casa continua sem ônus”

O clímax do romance dá-se com as 3 visitas que Eszter recebe em seu quarto: Eva, Lajos e Endre. 
A conversa com a sobrinha começa com um pedido de ajuda de uma menina que parece frágil e se diz abandonada pela tia, e termina em desentendimento. Eva, a princípio, suplica-lhe ajuda, enfatizando que apenas Eszter era capaz de auxiliá-los. Depois, começam as cobranças, primeiro em relação à partida de Eszter depois da morte da mãe, deixando-a com três anos e meio aos cuidados do pai aventureiro. Não só a angústia pela cobrança, mas pelo fato de estar frente a filha da falecida irmã causa-lhe grande desconforto. Antevia na moça “alguma coisa da futura Vilma, furiosa e passional”. Logo vêm as acusações, “Você fez por vingança. Por que me olha assim? Foi má e vingativa” (...) “Sinto que você nos deve”.
Ao leitor não é possível saber se há um acordo entre Lajos e Eva para tentar sensibilizar Eszter e dar-lhe o golpe final, tampouco se a condescendência com a qual a filha falava do pai, após este impor-lhe uma infância nômade e desconfortável, era verdadeira. Mas a revelação sobre as 3 cartas escrita por Lajos dão à Eva a justificativa para as acusações e assustam e desnorteiam Eszter, que não sabia da existência de tais cartas. Nestas cartas, que foram roubadas por Vilma, Lajos “implorava que o libertasse daquela prisão emocional” e contava de seu amor.
“mas você não respondeu à carta e depois tudo se deteriorou de modo tão horrível, Eszter... não se irrite... agora que tudo acabou creio que você também é culpada pelo que aconteceu”.
Neste ponto da narrativa, a relação de Ezter com a irmã, que a invejava, é revisitada e fica claro a magnitude do conflito que existia entre ambas:
Minha irmã Vilma me odiava. Eva enunciara a verdade: entre nós ardia um ódio ancestral, um força sem nome, sombria, cujo significado perdeu-se com os anos. Não seria possível explicitar – em forma de libelo – por que nos odiávamos – pois eu também a odiava e não buscava motivo ou pretexto! -, (...). Ela sempre foi mais forte, também no ódio. (...) e quando Vilma morreu, no lugar dos vínculos entre parentes, restou só a desolação de terrenos alagados.
(...) nem no limiar da morte a perdoaria, assim como ela, ainda que na vertigem final, não poderia me perdoar. Cobri o rosto com a mão e chorei. Ela disse: “Você ainda lembrará de mim!”.
Neste momento, é possível perceber o quanto Eszter ainda era atormentada pelo passado e como ainda não tinha conseguido explicá-lo a si mesma, uma vez que a lembrança da irmã morta era suficiente para desestabilizá-la e para transportá-la ao mesmo ponto de disputa de quando a irmã morrera.
Como são poderosos os mortos!, pensei impotente. Nesse momento, Vilma vivia de novo, pela transformação misteriosa da existência com que somente os mortos podem interferir na vida, os mortos que imaginamos debaixo da terra nas algemas químicas da decomposição. Mas um dia ressurgem e atuam. Talvez seja este o dia de Vilma, este dia de hoje!, pensei.

Eva cobra o anel que a mãe lhe deixara em herança. Tal anel havia sido entregue por Lajos à Eszter após o enterro de Vilma. A sobrinha dizia necessitar dele para fugir com o homem que verdadeiramente amava. Mas a tia tenta protege-la e a Lajos  e recusa-se a entregar o anel que sabia falso, dando início a uma discussão. O anel simboliza no romance o falso compromisso de Lajos com Eszter.
“Papai me contou que você guarda minha herança. Foi só isso que mamãe deixou. Devolva o anel, Eszter. Agora, imediatamente. O anel, ouviu?” (...)
Bastava estender a mão, abrir a gaveta e devolver o anel que a filha de Vilma exigia nesse tom e com tanto ódio. Fiquei imóvel, impotente, os braços cruzados, e decidi conservar o segredo da baixeza de Lajos a todo custo.
A entrada de Lajos no quarto de Eszter, no seu lugar particular no mundo, dá início a total revelação quanto à personalidade de Lajos, e não deixa dúvida, mesmo ao leitor que ainda estava cético em relação às suas intenções, de sua falha de caráter e falta empatia pelos sentimentos alheiros. Sua fala inicial resume o que pensava: “Afinal, isso tudo nem é grande coisa!”. Mas mesmo assim, o que se segue é uma tentativa de Lajos de justificar fins nobres por meios inadequados:
“O anel, o anel!”, disse exasperado. “Não venha agora com anel. Eu disse a Eva que você guardava o anel? É possível. Por que o fiz? Porque naquela hora era o que devia dizer, era o mais simples, o mais inteligente. Você menciona o anel, Laci alguma promissória ... o que vocês querem? Tudo isso passou, não existe mais. A vida anula tudo. Não se pode viver sempre sob acusações. Quem é inocente, quem é poderoso – no íntimo, como você fala – a ponto de ter direito de indiciar os outros a vida toda? A própria lei reconhece que com o tempo esse direito prescreve. Só vocês não querem reconhecer.”
“Não acha que está sendo injusto?”, perguntei mais baixo.
“É possível”, disse, também diminuindo a voz. “Limite! Limite íntimo! Quando a vida não tem limites. Afinal, entenda. É possível que tenha dito alguma coisa a Eva, errei, ontem ou há dez anos atrás, com dinheiro, anéis ou palavras. Nunca decidi meus atos. Enfim, somos responsáveis apenas pelo que planejamos, pelo que desejamos. Somos responsáveis apenas por nossas intensões... O que são os atos? Sempre uma surpresa arbitrária. Ficamos plantados olhando enquanto agimos. Mas a intenção, Eszter, a intenção é a culpada. Minhas intenções sempre foram boas”, disse satisfeito.
“Sim”, disse insegura. “É possível que suas intenções fossem boas”.
“Eu sei”, afirmou com mais delicadeza e um pouco de mágoa, “que não sou adequado ao mundo. O que desejam de mim? Que mude aos cinquenta e seis anos de idade? Só quis o bem de todos. Mas as possibilidades do bem são limitada na Terra. É preciso embelezar a vida, caso contrário fica insuportável. Foi por isso que disse o que disse a Eva sobre o anel. Naquela hora, essa possibilidade a tranquilizava. Foi por isso que há quinze anos atrás afirmei a Laci que o pagaria, embora soubesse que não o faria, foi por isso que disse muitas coisas às pessoas, e no momento em que enunciava as palavras encorajadoras ou agradáveis, já sabia que jamais cumpriria minha palavra. Foi também por isso que disse a Vilma que a amava”.

A mentira e a incapacidade de se desvencilhar dela são os temas largamente discutidos no livro. Lajos era um mentiroso patológico, ele mesmo o admitia e todos os que conviviam com ele tinham certeza disso. Mesmo assim, devido à seu poder de convencimento e a fraqueza dos outros, conseguia tirar do que o cercavam tudo que queria. Talvez isto acontecesse porque tais pessoas de alguma maneira o admirassem por sua coragem e desenvoltura, ou porque ainda acreditassem na bondade humana. No entanto, quanto a Lajos, o texto não deixa dúvida, ele não acreditava na verdade: “A vida contém uma mentira ancestral; custamos a notá-la”.

Veja Eszter, há vinte anos falamos de coisas diferentes. Não é tão simples. Você enuncia meus pecados – você e os outros – e esses pecados, infelizmente, são verdades. Você fala do anel e de mentiras, promessas que não cumpri, promissórias que não paguei. Existe mais, Eszter. Existe coisa pior. (...) Sempre fui um homem fraco.
Lajos, em certo ponto da história, cria a lei da mentira, a lei do esbulho, a lei da aniquilação daquele que o ama:
“Mas então o que de fato você quer de mim? Qual foi meu pecado? Minhas dívidas? Meus divertimentos? No que eu menti? Nos detalhes. Entretanto houve um momento” apontou as cartas, “em que não menti, em que estendi as mãos, porque tinha vertigem como um bailarino na corda bamba durante a apresentação. Nessa hora você não me ajudou. Ninguém me ofereceu a mão. Pois continuei dançando (...). Você sabe que não sou particularmente emotivo, sim, não sou passional. Interessava-me pela vida... os acontecimentos... o jogo, como você disse há pouco... Não sou, nunca fui o homem que arrisca tudo por uma mulher, por um amor. Hoje posso afirmar que nem mesmo em sua direção era arrastado por uma paixão irresistível. (...) Não vim para pedir. Eu vim para exigir. Agora você entende?...”, perguntou baixo, sério e afável.
“Exigir?”, repeti quase sem voz. “Interessante. Pois então exija.”
“Sim”, disse. “Tentarei. É claro que de acordo com os papéis e a lei não tenho nada a exigir de você. Porém existe outro tipo de lei. Talvez ainda não saiba, mas chegou a hora de descobrir que além das leis da virtude há outras, igualmente poderosa, igualmente válidas ... (...) Há outra coisa, uma lei mais dura e severa a impor que essa ou aquela pessoa tem a ver com a outra... Como entre cúmplices. Essa lei determinou que eu tenho a ver com você. (...) Não há mais razão para modéstia: creio Eszter, que entre nós sou eu o de caráter mais firme. É claro que não o de ‘mais caráter’ no sentido propalado pelos manuais de ética. Ainda assim, eu, o cambaleante, o descrente, o fugitivo, fui eu que no íntimo e com toda a força de vontade consegui permanecer fiel à outra lei (...) a lei verdadeira... É uma lei dura... Preste atenção. O que um dia se iniciou tem de ser encerrado: essa é a lei do mundo.
(...)
“Você tem a ver comigo ainda hoje (...). Você entende? Você é responsável por tudo o que aconteceu comigo, como eu também respondo por você... a meu modo... sim, ao modo do homem. Você tinha de saber disso um dia. Você precisa vir comigo, conosco. Levaremos Nunu também. Ouça, Eszter, por uma vez terá de acreditar em mim. Que interesse eu teria ainda em dizer outra coisa que não a verdade, a verdade última e definitiva?... (...) Você tem a ver comigo ainda que saiba que não mudei, que sou o de outrora, o perigoso e indigno de confiança.
“Não lhe peço nada além de que desta vez, pela última vez, você seja fiel ao imperativo que constitui o sentido e a essência de sua vida”.

Então, Eszter revela sua fraqueza diante da leviandade de Lajos:
Naquela hora comecei a sentir o amortecimento que deve se o do sonâmbulo ao encetar o passeio perigoso; compreendia tudo ao meu redor, compreendia o significado dos meus atos e palavras, (...) e ao mesmo tempo sabia que não tinha consciência de minhas ações apesar de toda a inteligência e determinação.

E depois, o que será? Onde viverei perto de você?
“Nós pensamos assim”, disse devagar, pensando e tornando as palavras um pouco mais devagar, “perto de nós. Infelizmente nossa residência é inadequada... Mas há um asilo nas proximidades onde senhoras solitárias... Bem perto. E poderemos nos ver com frequência”, disse solícito, em tom de incentivo.
Mas Lajos, mesmo assumindo-se sem caráter, busca um culpado para suas atitudes e, absurdamente, cobra Eszter por, segundo ele, ter-se recusado a completar-lhe o caráter. Ele se coloca como vítima das circunstâncias e das pessoas a quem enganava, fornecendo ao leitor uma pista de como o mentiroso se sente profundamente ligado à pessoa que engana.
(...) “Ao conhece-la não sabia disso tão bem como agora... nem sabia que, para mim, você era o caráter. Compreende?”
“Não”, disse sincera. (...)
“É simples”, disse. “Você logo compreenderá. Você foi, ou teria sido, o que me faltava: o caráter. Sabemos dessas coisas. O homem que não tem caráter ou carece de um caráter perfeito é um pouco aleijado do ponto de vista ético. Existem homens assim. Como criatura perfeita no demais aspectos, a quem falta uma das mãos ou uma perna. Ganham um extremidade artificial e de repetente tornam-se aptos para o trabalho, úteis ao mundo. Não se irrite com a comparação, mas você teria sido minha extremidade artificial... Minha ética artificial. Espero não ser ofensivo”, disse afetuoso, inclinando-se em minha direção.
“Não”, disse, “não acredito nisso, Lajos. Não se pode suprimir caráter. Não se pode transferir ética de uma pessoa a outra por meio de um transplante artificial. Trata-se de princípios. Sinto muito”.
“Não são apenas princípios teóricos. Veja, a ética não é qualidade herdada, mas adquirida. O homem nasce sem ética”.

O livro incita a dúvida em relação ao porquê Eszter aceita fazer tudo o que Lajos demanda, mesmo conhecendo suas artimanhas, sua falta de caráter e seu gosto pelo jogo. Reiteradas vezes ela se diz consciente de suas vis intenções, no entanto, não parece se esforçar para resistir a elas.
(...) Não acredito em seus ideais, mas acredito na verdade, Lajos. A verdade é que você me traiu (...). Você é um jogador estranho... em vez de cartas, joga com paixões e pessoas. Fui uma das damas do jogo. Depois, você se pôs de pé e afastou-se um pouco... Por quê? Porque se cansou. Você se foi porque se cansou. Essa é a verdade. Essa é a verdade horrível, imoral.

Interessante aspecto do comportamento de Eszter está no fato de que ela culpa Lajos pela vida sem sentido e sem aventuras que vivia desde sua partida. Neste ponto, fica claro, que ela não sentia que poderia sair sozinha da situação em que ele a colocara, tampouco parecia ter se esforçado para mudar a própria vida. A volta de Lajos dá-lhe a oportunidade de cobrá-lo:
Há quinze anos não vou ao teatro, não vou a lugar nenhum. Eu sei a verdade! Olhe-me nos olhos! Estou velha. (...) Sim, acabou, e você é o culpado de ter passado assim, tão vazia, tão mentirosa que acabei por ficar sozinha (...)

O ato final, o clímax da obra, acontece quando Eszter assina sem resistências ao documento que autorizava Lajos e vender a casa em que morava com Nunu e era a única coisa que ainda lhe garantia uma certa dignidade de vida. Resignada com a situação de impotência com a qual se colocava frente às demandas de Lajos, e com indiferença aos apelos de Endre, ela se entrega às vontades do homem que dizia amar.

Naturalmente, todos sabíamos que Lajos atentava contra minha vida, ou mais exatamente, contra a vida de Nunu e o sossego de meus últimos anos. A casa ainda estava de pé, um pouco decrépita pela ação do tempo mas, ainda assim, imponente no todo; a casa, o último objeto de valor que Lajos ainda não levara e agora viera buscar. No instante em que recebi o telegrama, sabia que viria por ela; apesar de sabermos dessas coisas, não pensamos nelas com palavras. Iludia-me até o último minuto. Endre também o sabia, bem como Tibor. Mais tarde, a ausência de defesa ou resistência em nossa entrega a Lajos nos espantou – e acabamos por aceitar que na vida não há meias soluções; alguma coisa teve início um dia, há muito tempo, há quinze anos atrás, e agora, por fim, tinha de se encerrar. Lajos também o sabia.

Extrapolando a obra, e entrando no frágil terreno da especulação, talvez seja possível argumentar que Eszter aceitou entregar a casa porque queria se livrar de Lajos e sabia que por suas próprias forças não conseguiria. Se ela não possuísse mais nada que lhe interessasse, ele nunca mais voltaria e Eszter estaria liberta de suas mentiras. Por outro lado, parece mais provável que ela, mesmo sendo roubada, considerasse que essa fosse uma forma de se relacionar com Lajos.

O livro deixa o leitor com um sentimento de tristeza, à Eszter tudo lhe pareceu inevitável, era como se tivesse ansiado por um ponto final na história de seu relacionamento com Lajos e que, em virtude das mágoas e do sentimento de vítima das circunstâncias que lhe acompanhará, não pudesse ser protagonista de um final digno. Eszter se castiga por nutrir amor por um homem que ela sabia sem caráter e, talvez por isso, assina o contrato que lhe entrega os últimos bens materiais que tinha e a sua última possibilidade tomar, pelo menos uma vez, o controle da história do seu envolvimento com aquele homem egoísta e inescrupuloso. Fica a impressão de que naquele momento, diante da insistência e dos argumentos de Lajos, desistiu de escrever a própria história. No entanto, anos depois, acordada do transe pela iminência da morte, resolve retomar as rédeas da vida com decisão de escrever o livro.

Qual o legado de Eszter? Desmascarar Lajos para o mundo? Fazer um tratado sobre a mentira? Servir de anti-exemplo com sua história? Mostrar que algumas feridas são incuráveis ou, ao contrário, que devem ser curadas o mais rápido possível sob pena de paralisar-nos por décadas?
 


Gostei do livro, mas não recomendo para todos. Principalmente para os deprimidos. Entendo que as pessoas devem ter o direito de ter esperanças e de resolver o passado, mesmo que triste, de maneira mais satisfatória, e não se entregando às circunstâncias, ou deixando que outros resolvam para elas.



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