de Sándor Márai – Companhia Das Letras, 2001
Por Claudia Oliveira
“Qual é o seu limite, Lajos?” Perguntei (...)
“Que pergunta é essa, qual o limite?”, perguntou
inseguro
“Qual é o limite?” Repeti. “Imagino que todo homem
tenha algum limite íntimo em que há uma medida para o bem e para o mal. De
certo modo, para tudo o que é possível entre os homens. Mas você não tem
limites”.
“São apenas palavras”, disse, e como se entediado
fez um gesto de resignação. (...)
Os limites
das relações humanas são brilhantemente discutidos pelo romancista, poeta e
dramaturgo húngaro Sándor Márai no livro “O Legado de Eszter”. A obra leva o
leitor a um interessante mergulho nas idiossincrasias da alma humana por meio
das lembranças e reflexões da personagem Eszter. Trata-se de uma história sem
final feliz, como já anuncia a narradora no primeiro parágrafo,
“Não sei o que Deus ainda reserva para mim.
Entretanto, antes de morrer, quero contar a história do dia em que Lajos esteve
comigo pela última vez e me roubou.”
em que cada
personagem mantém-se fiel ao papel que cumpre na vida, agindo na maturidade da mesma
maneira como se comportaram vinte e cinco anos antes.
Eszter é a
narradora e protagonista, narra seu próprio infortúnio com a expectativa de
quem não tem muito tempo de vida e de quem espera solucionar as últimas dúvidas
por meio do compartilhamento de sua história e suas emoções.
Ao me presentear, a vida foi maravilhosa, e ao me
roubar, perfeita ... que mais posso esperar? Tenho de morrer, pois esta é a lei
e porque cumpri meu dever.
(...) Tenho de confessar que em minha vida e
realizações não há sombra da ira e ímpetos bíblicos, sim, nem mesmo da certeza
e dureza que marcavam as opiniões que amiúde expressava na presença de
estranhos acerca de Lajos e meu destino.
Era uma mulher de meia idade, que
vivia na casa herdada dos país em uma cidade do interior. Não se considerava
infeliz, embora admitisse que tinha a “consciência amarga da juventude perdida”,
também não se considerava feia, mas alegava não ter “a beleza que atrai os
homens”. Era loira, “alta, esguia e proporcionada” e passara dos 45 anos de
idade. Olhava-se como “a mulher que esperava o amante”. Vivia uma vida pacata:
“Experimentávamos a segurança que é um pouco a do náufrago, um pouco a segurança
da felicidade sem anseios”. Convivia com os traumas do passado e com as
lembranças da família de forma quase resignada, diante da impotência de
reformular o caminho de vida que traçara, até o momento em que é comunicada da
volta de Lajos, e alguma esperança de uma vida diferente renasce.
Lajos é o
anti-herói da narrativa. Foi o único homem que Eszter diz ter amado na vida. Com
suas atitudes influencia e marca indelevelmente os demais personagens do
romance. Lajos era um mentiroso compulsivo, e todos o sabiam. Tinha mais de 50
anos, era moço da capital, verborrágico, artificial, aventureiro, manipulador, infantil,
ligado a escândalos políticos e a negócios desonestos. Faltava-lhe o “senso de
realidade”, sobrava-lhe o “devaneio excessivo”. Eszter creia que ele era
portador de uma “fonte de energia”.
Lajos era fiel à Nietzsche, que determinou que vivêssemos perigosamente. Entretanto, ele
próprio temia o perigo; nas aventuras, nas aventuras políticas, bem como nas
afetivas, lançava-se com alarde, mas com armas secretas, mentiras premeditadas,
as costas quentes, um estojo de maquiagem no bolso e as cartas escandalosas do
inimigo, que guardara.
Completam a narrativa os seguintes
personagens:
Nunu, com
quase 70 anos, era aposentada do serviço postal, viva na casa com Eszter, que a
considerava serena, lúcida, solene, justa, áspera, ajuizada, calada, de
indiferença imparcial e realista. Acreditava saber tudo sobre Eszter, o que a
ofendia ao mesmo tempo que a orientava. Sobre sua própria vida, nada falava. Taciturna
e precavida era considerada pela narradora uma parente necessária, a verdadeira
família. Era cética em relação a Lajos, conhecia-o bem, mas não era imune às
suas armadilhas.
Endre era
um notário de personalidade calma, que desejou esposar Eszter, que recusou-se
por achá-lo um tanto enfadonho, embora o tivesse como um bom amigo. Era o único
personagem que contava com certo respeito (ou medo) de Lajos, por haver
encoberto suas desonestidades no passado. “Não se impressionava com seu feitiço
e, a seu modo, conserva uma indiferença interior à irradiação e ao encantamento
que, segundo acredita, derramam-se de Lajos sobre tudo e todos”. Tenta, em vão,
proteger Eszter dos golpes de Lajos.
O livreiro
Laci é irmão de Eszter. Confiante e agressivo, foi o responsável por apresentar
Lajos à família. Não pôde resistir nem na juventude, nem mais de vinte anos
depois, aos encantos de Lajos, de quem se dizia credor. Ambos foram no passado
considerados “grandes promessas” embora “Ninguém era capaz de precisar o que
Laci e Lajos ‘prometiam’”. Nutria grande ciúmes pela irmã, que era “seu ponto
fraco”, e não tolerava segredos.
Tibor
também desejou casar-se Eszter, mas também fora recusado pois, segundo ela, “em
segredo, ainda esperava por Lajos”. Também foi seduzido pelas artimanhas deste.
Jovem e calmo, era um bom amigo e junto a Endre formava uma espécie de dupla
protetora de Eszter.
Vilma era
a irmã morta de Eszter e ex-mulher de Lajos. Tem importância na trama do
romance pelas emoções que desperta em Eszter e pela descoberta de que roubara
cartas endereçadas a ela e que poderiam ter mudado seu destino. Era invejosa e
despertava na irmã grande mágoa por tê-la tomado seu grande amor.
Eva e
Gábor eram “as crianças”, os “órfãos” como preferia designá-los Lajos que “os
exibia indiferente, de frente e de lado, como se tivesse encontrado na rua
essas crianças maltrapilhas, abandonadas por Deus e pelos homens (...)”. Embora
vítimas das irresponsabilidades e aventuras do pai, não pareciam recriminá-lo
pela infância tumultuada. Eszter descreve Gábor como “engenheiro formado, um
jovem obeso, indolente, afetado e soturno”, e Eva como “jovenzinha muito
urbana, crescidinha, (...) o sorriso algo irônico, magoado e ansioso” de “uma
voz doce, um tanto melodiosa”. No decorrer da narrativa, Eva confrontará a tia Eszter
sobre suas atitudes passadas e reclamará a herança de sua mãe, um anel.
Personagens secundários são o jovem Béla e sua
mãe Olga, que acompanham Lajos na visita à casa de Eszter. A mulher cuidava das
tarefas domésticas de Lajos, e à Eszter parecia uma aventureira cansada e
mal-humorada. Dizia-se traída e abandonada, mas em nenhum momento comoveu a
narradora, que não teve simpatias por ela. Seu filho, que Eszter descreveu como
estranho, triste e distante, era o noivo de que Eva não gostava, mas se via
obrigada a casar-se, mesmo sendo apaixonada por outro homem, em função de uma
dívida do pai. Passara dos 30 e era secretario no escritório de um partido
político, “parecia mais velho que o próprio Lajos”.
A casa com
seu grande jardim, o anel e as três cartas escritas por Lajos são também
elementos importantes da narrativa e ganham importância pelo impacto que têm na
vida da protagonista.
A
romance começa com o recebimento de uma carta de Lajos avisando que voltaria já
no dia seguinte, o que provoca lembranças em todos os personagens e leva ao
desfecho que motivará Eszter à decisão contar sua história. A volta desse homem,
diretamente do passado, após anos de ausência de notícias, faz que a narradora
veja-se obrigada a confrontar o seu passado.
“O
homem vive ... e um dia percebe que ‘cumpriu’ ou ‘não cumpriu’ seu dever.
Começo a crer que as decisões solenes e definitivas, que traçam o relevante na
linha do destino de nossas vidas, são bem menos conscientes do que acreditamos
mais tarde, nos momentos de rememoração e lembranças. Fazia vinte anos que não
via Lajos, e pensava estar a salvo das memórias.”
Lajos
chegara à vida de Eszter e de sua família há mais de vinte anos e trouxe à casa
“agitação romanesca”. Sua presença acabara por mudar os hábitos de todos que
buscaram “compensar suas falhas” lendo os autores favoritos de Lajos, trocando
os móveis da casa, mudando o jeito de se vestir e até bebendo menos, como no
caso do pai de Eszter. Com o tempo, todos da família já tinha com ele um
vínculo de dependência, embora a narradora tenha resistido, inicialmente, à sua
astúcia:
Hoje diria que, diante daquela ilusão cruel, fui eu
que fiquei lúcida e resistente por mais tempo; mas por que embalar-me nesse
triunfo mesquinho? Sim, ‘vi’ Lajos desde o primeiro instante: e não acorri cega
e ávida a seu serviço? Era tão sério e frágil.
Lajos e Eszter
se apaixonaram, ele pediu sua mão, mas casou-se com sua irmã. Após a morte de Vilma,
distancia-se de Eszter, “após a separação, sumiu de modo espantoso, como se
tivesse enfiado uma cartola mágica. Não tive notícias dele durante anos”, que
passa a viver na antiga casa da família com Nunu:
Não sobrou nada, a não ser a casa e o jardim. A casa
estava hipotecada por alguma dívida insignificante. Sempre acreditei possuir
uma natureza tenaz, obstinada e prática. Assim que fiquei só, reconheci que até
então vivera em algum lugar entre as nuvens – aquelas nuvens cheias de raios –
e pouco sabia de verdadeiro e confiável sobre a realidade terrena. Nunu dizia
que, para nós duas, o jardim e a casa bastavam. Ainda hoje, não compreendo como
poderiam ‘bastar’.
O período que Eszter passou em
companhia de Lajos parece ter sido o ápice de sua vida e, talvez por isto, ao
final ela concorde entregar-lhe tudo, como que um pagamento por ele ter
proporcionado algum momento de excitação pela vida. A partida de Lajos
significou a interrupção desta fase e sua volta o fim da vida de normalidade
que se instalara posteriormente:
Por algum tempo, minha vida foi verdadeiramente
‘perigosa’ na proximidade de Lajos. Agora que o perigo passara, percebi que
nesse lugar nada restou; percebi que aquele perigo era o único – e verdadeiro
- sentido da vida.
Por vezes a vida era, na casa e no jardim, como uma
vida de verdade, com projetos, dever, conteúdo interior. Só não tinham nenhum
sentido; poderia perdurar assim por décadas, porém eu não resistiria se de um
dia para outro decretassem que a interrompesse. Era uma vida uniforme e sem
perigos.
Houve, por parte das personagens,
certa preparação para recebê-lo. Nunu preocupou-se com o pouco que restara da
prataria da casa. Endre, Tibor e Laci rememoraram o passado ficaram curiosos.
Havia certa expectativa de que Lajos poderia querer corrigir os erros do
passado e saldar suas dívidas. Eszter alternava momentos de esperança e de
desconfiança, ficou “subitamente” “bem-humorada, como alguém que nenhum perigo
ameaça”, mas já premeditava os problemas que esta visita lhes causaria:
Pensei que Lajos ainda não chegara e já me tirava
alguma coisa. Parecia que não podia ser diferente. Essa era a lei, a lei dele.
Lei terrível, pensei; e comecei a tremer.
O dia da volta de Lajos marca o
início e o fim da narrativa do romance. As horas que a antecederam sua chegada,
desde o recebimento da carta, dão à Eszter uma oportunidade de rememorar o
passado, e os anos que se passaram de sua partida até a decisão de escrever do
livro propiciam-lhe a chance de fazer um balanço da vida.
Lajos trouxe de volta o tempo e as aventuras
atemporais da vida. Eu sabia que não mudara. Sabia que Nunu teria razão. Sabia
que não haveria como se opor a ele. E, ao mesmo tempo, sabia que ainda não
suspeitava da verdade sobre a vida, sobre a minha vida e a dos outros, e só por
meio de Lajos descobriria a verdade – sim, por meio de Lajos, o mentiroso.
Nós o recebemos, porque eram impossível deixar de
fazê-lo, e tudo era exatamente tão atemorizador, desagradável e inadiável pra
ele como para nós.
Lajos chegou e o dia começou, o dia da visita de
Lajos (...). Gostaria de ser fiel no relato desse dia. Custei compreender o
significado real da visita. Começou como a apresentação de um circo itinerante.
(...) Terminou de modo muito simples. Lajos foi embora, o dia, uma parte da
vida, findou. Continuamos vivendo.
Embora todos na casa suspeitassem da
verdadeira intenção de Lajos, ele foi recebido com certa alegria e encantamento.
“Tibor e Laci mergulharam extasiados nas maravilhas do espetáculo”. Chegou de
maneira teatral, mas Eszter não identificou nesta teatralidade qualquer premeditação,
sabia que Lajos era bom improvisador. Como que se seguisse um roteiro, primeiro
tenta conquistar a simpatia dos que lhe esperavam com presentes, palavras e até
uma tartaruga adestrada. O segundo ato seria o momento da tentativa de se fazer
de vítima das circunstâncias, como se todos devessem-lhe alguma coisa, e de se
colocar como o salvador de Eszter. No terceiro ato, enfim, mostraria a real
intensão de sua visita, o esbulho final!
“Sente-se Lajos”, disse. “O que você quer de mim?”
Sentia-me calma e bem-intencionada. Já não o temia.
Esse homem fracassou; e o pensamento não me trouxe satisfação; não senti nada
exceto compaixão, uma profunda e humilhante compaixão. (...)
De repente, sentia-me bem mais velha, madura. (...)
“Quero acertar tudo”, repetiu mecanicamente.
“O que quer acertar?”
Olhei-o nos olhos e desatei a rir (...). Passado
algum tempo não é possível “acertar-se” nada entre as pessoas; compreendi essa
verdade desesperançada ali, no banco de pedra. O homem vive e remenda, repara,
constrói e depois, por vezes, estraga a vida; mas com a passagem do tempo
percebe que o todo, que se erigiu daquela forma, a partir dos erros e acasos,
não é modificável. Lajos já não podia fazer mais nada. Quando alguém emerge do
passado e anuncia em tom comovido que deseja acertar “tudo”, o propósito só
pode suscitar compaixão e riso; o tempo já “acertou” tudo, a seu modo singular,
o único possível.
“Deixe, Lajos. Naturalmente, estamos todos contentes
em vê-lo... as crianças, você. Não conhecemos seus planos, mas estamos felizes
por vê-lo novamente, ao menos uma vez. Não falemos no passado. Você não deve a
ninguém, não deve nada”. (...)
Somente a comoção e o desconforto excessivos
permitiram afirmar que o passado não existia mais e Lajos “não devia a
ninguém”. (...)
“É provável que você não tenha vindo apenas por
isso”. (...)
“Não”, disse e tossiu. “Não foi só por isso que vim. Eszter,
tenho de falar com você ainda uma vez”.
“Não tenho mais nada”, disse sem querer e ousada.
“Já não preciso de nada”, respondeu; e não se
ofendeu. “Desta vez sou eu quem deseja dar. Veja, vinte anos se passaram, vinte
anos! Não haverá mais tantos vinte anos na vida! Ao longo de vinte anos tudo
fica mais claro, mas transparente, mais compreensível. Sei o que aconteceu, sei
também o porquê”. (...)
“Não há nada que possa me dar. Você levou tudo,
estragou tudo”.
Respondeu o que eu esperava:
“É verdade”. (...)
“Uma pergunta Eszter”, disse em voz baixa, grave.
“Uma única pergunta”.
Fechei os olhos; senti calor, vertigem. (...) Meu
Deus, agora ele vai perguntar. O quê? Talvez, por que tudo aconteceu? Talvez
fosse eu a medrosa? Não, desta vez terei de responder! Respirei fundo e o
encarei, pronta para a resposta.
“Diga, Eszter”, perguntou num sussurro, com
intimidade, “esta casa continua sem ônus”
O clímax do romance dá-se com as 3
visitas que Eszter recebe em seu quarto: Eva, Lajos e Endre.
A conversa com a sobrinha começa com
um pedido de ajuda de uma menina que parece frágil e se diz abandonada pela tia,
e termina em desentendimento. Eva, a princípio, suplica-lhe ajuda, enfatizando
que apenas Eszter era capaz de auxiliá-los. Depois, começam as cobranças,
primeiro em relação à partida de Eszter depois da morte da mãe, deixando-a com
três anos e meio aos cuidados do pai aventureiro. Não só a angústia pela
cobrança, mas pelo fato de estar frente a filha da falecida irmã causa-lhe
grande desconforto. Antevia na moça “alguma coisa da futura Vilma, furiosa e
passional”. Logo vêm as acusações, “Você fez por vingança. Por que me olha
assim? Foi má e vingativa” (...) “Sinto que você nos deve”.
Ao leitor não é possível saber se há
um acordo entre Lajos e Eva para tentar sensibilizar Eszter e dar-lhe o golpe
final, tampouco se a condescendência com a qual a filha falava do pai, após
este impor-lhe uma infância nômade e desconfortável, era verdadeira. Mas a
revelação sobre as 3 cartas escrita por Lajos dão à Eva a justificativa para as
acusações e assustam e desnorteiam Eszter, que não sabia da existência de tais
cartas. Nestas cartas, que foram roubadas por Vilma, Lajos “implorava que o
libertasse daquela prisão emocional” e contava de seu amor.
“mas você não respondeu à carta e depois tudo se
deteriorou de modo tão horrível, Eszter... não se irrite... agora que tudo
acabou creio que você também é culpada pelo que aconteceu”.
Neste ponto da narrativa, a relação
de Ezter com a irmã, que a invejava, é revisitada e fica claro a magnitude do
conflito que existia entre ambas:
Minha irmã Vilma me odiava. Eva enunciara a verdade:
entre nós ardia um ódio ancestral, um força sem nome, sombria, cujo significado
perdeu-se com os anos. Não seria possível explicitar – em forma de libelo – por
que nos odiávamos – pois eu também a odiava e não buscava motivo ou pretexto!
-, (...). Ela sempre foi mais forte, também no ódio. (...) e quando Vilma
morreu, no lugar dos vínculos entre parentes, restou só a desolação de terrenos
alagados.
(...) nem no limiar da morte a perdoaria, assim como
ela, ainda que na vertigem final, não poderia me perdoar. Cobri o rosto com a
mão e chorei. Ela disse: “Você ainda lembrará de mim!”.
Neste momento, é possível perceber o
quanto Eszter ainda era atormentada pelo passado e como ainda não tinha
conseguido explicá-lo a si mesma, uma vez que a lembrança da irmã morta era
suficiente para desestabilizá-la e para transportá-la ao mesmo ponto de disputa
de quando a irmã morrera.
Como são poderosos os mortos!, pensei impotente.
Nesse momento, Vilma vivia de novo, pela transformação misteriosa da existência
com que somente os mortos podem interferir na vida, os mortos que imaginamos
debaixo da terra nas algemas químicas da decomposição. Mas um dia ressurgem e
atuam. Talvez seja este o dia de Vilma, este dia de hoje!, pensei.
Eva cobra o anel que a mãe lhe
deixara em herança. Tal anel havia sido entregue por Lajos à Eszter após o
enterro de Vilma. A sobrinha dizia necessitar dele para fugir com o homem que
verdadeiramente amava. Mas a tia tenta protege-la e a Lajos e recusa-se a entregar o anel que sabia falso,
dando início a uma discussão. O anel simboliza no romance o falso compromisso
de Lajos com Eszter.
“Papai me contou que você guarda minha herança. Foi
só isso que mamãe deixou. Devolva o anel, Eszter. Agora, imediatamente. O anel,
ouviu?” (...)
Bastava estender a mão, abrir a gaveta e devolver o
anel que a filha de Vilma exigia nesse tom e com tanto ódio. Fiquei imóvel,
impotente, os braços cruzados, e decidi conservar o segredo da baixeza de Lajos
a todo custo.
A entrada de Lajos no quarto de Eszter,
no seu lugar particular no mundo, dá início a total revelação quanto à
personalidade de Lajos, e não deixa dúvida, mesmo ao leitor que ainda estava
cético em relação às suas intenções, de sua falha de caráter e falta empatia
pelos sentimentos alheiros. Sua fala inicial resume o que pensava: “Afinal,
isso tudo nem é grande coisa!”. Mas mesmo assim, o que se segue é uma tentativa
de Lajos de justificar fins nobres por meios inadequados:
“O anel, o anel!”, disse exasperado. “Não venha agora
com anel. Eu disse a Eva que você guardava o anel? É possível. Por que o fiz?
Porque naquela hora era o que devia dizer, era o mais simples, o mais
inteligente. Você menciona o anel, Laci alguma promissória ... o que vocês
querem? Tudo isso passou, não existe mais. A vida anula tudo. Não se pode viver
sempre sob acusações. Quem é inocente, quem é poderoso – no íntimo, como você
fala – a ponto de ter direito de indiciar os outros a vida toda? A própria lei
reconhece que com o tempo esse direito prescreve. Só vocês não querem
reconhecer.”
“Não acha que está sendo injusto?”, perguntei mais
baixo.
“É possível”, disse, também diminuindo a voz.
“Limite! Limite íntimo! Quando a vida não tem limites. Afinal, entenda. É
possível que tenha dito alguma coisa a Eva, errei, ontem ou há dez anos atrás,
com dinheiro, anéis ou palavras. Nunca decidi meus atos. Enfim, somos
responsáveis apenas pelo que planejamos, pelo que desejamos. Somos responsáveis
apenas por nossas intensões... O que são os atos? Sempre uma surpresa
arbitrária. Ficamos plantados olhando enquanto agimos. Mas a intenção, Eszter,
a intenção é a culpada. Minhas intenções sempre foram boas”, disse satisfeito.
“Sim”, disse insegura. “É possível que suas intenções
fossem boas”.
“Eu sei”, afirmou com mais delicadeza e um pouco de
mágoa, “que não sou adequado ao mundo. O que desejam de mim? Que mude aos
cinquenta e seis anos de idade? Só quis o bem de todos. Mas as possibilidades
do bem são limitada na Terra. É preciso embelezar a vida, caso contrário fica
insuportável. Foi por isso que disse o que disse a Eva sobre o anel. Naquela
hora, essa possibilidade a tranquilizava. Foi por isso que há quinze anos atrás
afirmei a Laci que o pagaria, embora soubesse que não o faria, foi por isso que
disse muitas coisas às pessoas, e no momento em que enunciava as palavras
encorajadoras ou agradáveis, já sabia que jamais cumpriria minha palavra. Foi
também por isso que disse a Vilma que a amava”.
A mentira e a incapacidade de se
desvencilhar dela são os temas largamente discutidos no livro. Lajos era um
mentiroso patológico, ele mesmo o admitia e todos os que conviviam com ele
tinham certeza disso. Mesmo assim, devido à seu poder de convencimento e a
fraqueza dos outros, conseguia tirar do que o cercavam tudo que queria. Talvez
isto acontecesse porque tais pessoas de alguma maneira o admirassem por sua
coragem e desenvoltura, ou porque ainda acreditassem na bondade humana. No
entanto, quanto a Lajos, o texto não deixa dúvida, ele não acreditava na
verdade: “A vida contém uma mentira ancestral; custamos a notá-la”.
Veja Eszter, há vinte anos falamos de coisas
diferentes. Não é tão simples. Você enuncia meus pecados – você e os outros – e
esses pecados, infelizmente, são verdades. Você fala do anel e de mentiras,
promessas que não cumpri, promissórias que não paguei. Existe mais, Eszter.
Existe coisa pior. (...) Sempre fui um homem fraco.
Lajos, em certo ponto da história,
cria a lei da mentira, a lei do esbulho, a lei da aniquilação daquele que o
ama:
“Mas então o que de fato você quer de mim? Qual foi
meu pecado? Minhas dívidas? Meus divertimentos? No que eu menti? Nos detalhes.
Entretanto houve um momento” apontou as cartas, “em que não menti, em que
estendi as mãos, porque tinha vertigem como um bailarino na corda bamba durante
a apresentação. Nessa hora você não me ajudou. Ninguém me ofereceu a mão. Pois
continuei dançando (...). Você sabe que não sou particularmente emotivo, sim,
não sou passional. Interessava-me pela vida... os acontecimentos... o jogo,
como você disse há pouco... Não sou, nunca fui o homem que arrisca tudo por uma
mulher, por um amor. Hoje posso afirmar que nem mesmo em sua direção era
arrastado por uma paixão irresistível. (...) Não vim para pedir. Eu vim para
exigir. Agora você entende?...”, perguntou baixo, sério e afável.
“Exigir?”, repeti quase sem voz. “Interessante. Pois
então exija.”
“Sim”, disse. “Tentarei. É claro que de acordo com os
papéis e a lei não tenho nada a exigir de você. Porém existe outro tipo de lei.
Talvez ainda não saiba, mas chegou a hora de descobrir que além das leis da
virtude há outras, igualmente poderosa, igualmente válidas ... (...) Há outra
coisa, uma lei mais dura e severa a impor que essa ou aquela pessoa tem a ver
com a outra... Como entre cúmplices. Essa lei determinou que eu tenho a ver com
você. (...) Não há mais razão para modéstia: creio Eszter, que entre nós sou eu
o de caráter mais firme. É claro que não o de ‘mais caráter’ no sentido
propalado pelos manuais de ética. Ainda assim, eu, o cambaleante, o descrente,
o fugitivo, fui eu que no íntimo e com toda a força de vontade consegui
permanecer fiel à outra lei (...) a lei verdadeira... É uma lei dura... Preste
atenção. O que um dia se iniciou tem de ser encerrado: essa é a lei do mundo.
(...)
“Você tem a ver comigo ainda hoje (...). Você
entende? Você é responsável por tudo o que aconteceu comigo, como eu também
respondo por você... a meu modo... sim, ao modo do homem. Você tinha de saber
disso um dia. Você precisa vir comigo, conosco. Levaremos Nunu também. Ouça, Eszter,
por uma vez terá de acreditar em mim. Que interesse eu teria ainda em dizer
outra coisa que não a verdade, a verdade última e definitiva?... (...) Você tem
a ver comigo ainda que saiba que não mudei, que sou o de outrora, o perigoso e
indigno de confiança.
“Não lhe peço nada além de que desta vez, pela última
vez, você seja fiel ao imperativo que constitui o sentido e a essência de sua
vida”.
Então, Eszter revela sua fraqueza
diante da leviandade de Lajos:
Naquela hora comecei a sentir o amortecimento que
deve se o do sonâmbulo ao encetar o passeio perigoso; compreendia tudo ao meu
redor, compreendia o significado dos meus atos e palavras, (...) e ao mesmo
tempo sabia que não tinha consciência de minhas ações apesar de toda a
inteligência e determinação.
E depois, o que será? Onde viverei perto de você?
“Nós pensamos assim”, disse devagar, pensando e
tornando as palavras um pouco mais devagar, “perto de nós. Infelizmente nossa
residência é inadequada... Mas há um asilo nas proximidades onde senhoras
solitárias... Bem perto. E poderemos nos ver com frequência”, disse solícito,
em tom de incentivo.
Mas Lajos, mesmo assumindo-se sem
caráter, busca um culpado para suas atitudes e, absurdamente, cobra Eszter por,
segundo ele, ter-se recusado a completar-lhe o caráter. Ele se coloca como
vítima das circunstâncias e das pessoas a quem enganava, fornecendo ao leitor
uma pista de como o mentiroso se sente profundamente ligado à pessoa que
engana.
(...) “Ao conhece-la não sabia disso tão bem como
agora... nem sabia que, para mim, você era o caráter. Compreende?”
“Não”, disse sincera. (...)
“É simples”, disse. “Você logo compreenderá. Você
foi, ou teria sido, o que me faltava: o caráter. Sabemos dessas coisas. O homem
que não tem caráter ou carece de um caráter perfeito é um pouco aleijado do
ponto de vista ético. Existem homens assim. Como criatura perfeita no demais
aspectos, a quem falta uma das mãos ou uma perna. Ganham um extremidade
artificial e de repetente tornam-se aptos para o trabalho, úteis ao mundo. Não
se irrite com a comparação, mas você teria sido minha extremidade artificial...
Minha ética artificial. Espero não ser ofensivo”, disse afetuoso, inclinando-se
em minha direção.
“Não”, disse, “não acredito nisso, Lajos. Não se pode
suprimir caráter. Não se pode transferir ética de uma pessoa a outra por meio
de um transplante artificial. Trata-se de princípios. Sinto muito”.
“Não são apenas princípios teóricos. Veja, a ética
não é qualidade herdada, mas adquirida. O homem nasce sem ética”.
O livro incita a dúvida em relação
ao porquê Eszter aceita fazer tudo o que Lajos demanda, mesmo conhecendo suas
artimanhas, sua falta de caráter e seu gosto pelo jogo. Reiteradas vezes ela se
diz consciente de suas vis intenções, no entanto, não parece se esforçar para
resistir a elas.
(...) Não acredito em seus ideais, mas acredito na
verdade, Lajos. A verdade é que você me traiu (...). Você é um jogador
estranho... em vez de cartas, joga com paixões e pessoas. Fui uma das damas do
jogo. Depois, você se pôs de pé e afastou-se um pouco... Por quê? Porque se
cansou. Você se foi porque se cansou. Essa é a verdade. Essa é a verdade
horrível, imoral.
Interessante aspecto do
comportamento de Eszter está no fato de que ela culpa Lajos pela vida sem
sentido e sem aventuras que vivia desde sua partida. Neste ponto, fica claro,
que ela não sentia que poderia sair sozinha da situação em que ele a colocara,
tampouco parecia ter se esforçado para mudar a própria vida. A volta de Lajos
dá-lhe a oportunidade de cobrá-lo:
Há quinze anos não vou ao teatro, não vou a lugar
nenhum. Eu sei a verdade! Olhe-me nos olhos! Estou velha. (...) Sim, acabou, e
você é o culpado de ter passado assim, tão vazia, tão mentirosa que acabei por
ficar sozinha (...)
O ato final, o clímax da obra,
acontece quando Eszter assina sem resistências ao documento que autorizava
Lajos e vender a casa em que morava com Nunu e era a única coisa que ainda lhe
garantia uma certa dignidade de vida. Resignada com a situação de impotência
com a qual se colocava frente às demandas de Lajos, e com indiferença aos
apelos de Endre, ela se entrega às vontades do homem que dizia amar.
Naturalmente, todos sabíamos que Lajos atentava
contra minha vida, ou mais exatamente, contra a vida de Nunu e o sossego de
meus últimos anos. A casa ainda estava de pé, um pouco decrépita pela ação do
tempo mas, ainda assim, imponente no todo; a casa, o último objeto de valor que
Lajos ainda não levara e agora viera buscar. No instante em que recebi o
telegrama, sabia que viria por ela; apesar de sabermos dessas coisas, não
pensamos nelas com palavras. Iludia-me até o último minuto. Endre também o
sabia, bem como Tibor. Mais tarde, a ausência de defesa ou resistência em nossa
entrega a Lajos nos espantou – e acabamos por aceitar que na vida não há meias
soluções; alguma coisa teve início um dia, há muito tempo, há quinze anos
atrás, e agora, por fim, tinha de se encerrar. Lajos também o sabia.
Extrapolando a obra, e entrando no
frágil terreno da especulação, talvez seja possível argumentar que Eszter
aceitou entregar a casa porque queria se livrar de Lajos e sabia que por suas
próprias forças não conseguiria. Se ela não possuísse mais nada que lhe
interessasse, ele nunca mais voltaria e Eszter estaria liberta de suas
mentiras. Por outro lado, parece mais provável que ela, mesmo sendo roubada,
considerasse que essa fosse uma forma de se relacionar com Lajos.
O livro deixa o leitor com um
sentimento de tristeza, à Eszter tudo lhe pareceu inevitável, era como se
tivesse ansiado por um ponto final na história de seu relacionamento com Lajos
e que, em virtude das mágoas e do sentimento de vítima das circunstâncias que
lhe acompanhará, não pudesse ser protagonista de um final digno. Eszter se
castiga por nutrir amor por um homem que ela sabia sem caráter e, talvez por
isso, assina o contrato que lhe entrega os últimos bens materiais que tinha e a
sua última possibilidade tomar, pelo menos uma vez, o controle da história do
seu envolvimento com aquele homem egoísta e inescrupuloso. Fica a impressão de
que naquele momento, diante da insistência e dos argumentos de Lajos, desistiu
de escrever a própria história. No entanto, anos depois, acordada do transe
pela iminência da morte, resolve retomar as rédeas da vida com decisão de
escrever o livro.
Qual o legado de Eszter? Desmascarar
Lajos para o mundo? Fazer um tratado sobre a mentira? Servir de anti-exemplo com
sua história? Mostrar que algumas feridas são incuráveis ou, ao contrário, que
devem ser curadas o mais rápido possível sob pena de paralisar-nos por décadas?
Gostei
do livro, mas não recomendo para todos. Principalmente para os deprimidos.
Entendo que as pessoas devem ter o direito de ter esperanças e de resolver o
passado, mesmo que triste, de maneira mais satisfatória, e não se entregando às
circunstâncias, ou deixando que outros resolvam para elas.
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