quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

O REINO DESTE MUNDO


de Alejo Carpentier
Tradução de Marcelo Tápia
Editora Martins Fontes, 2009
por Maria Albeti Vitorino

Alejo Carpentier (1904-1980) nasceu em Havana, Cuba, e faleceu em Paris. Filho de um arquiteto francês e uma pianista russa, desde cedo se envolve com questões e ideologias políticas. Preso, aos 24 anos, se refugia em Paris, onde teve a oportunidade de se aproximar da intelectualidade francesa. Regressa à Cuba em 1939, saindo posteriormente, em 1945, para morar na Venezuela. Retorna ao seu país em 1959, após a vitória da Revolução Cubana. Falecue na França, onde exercia função diplomática desde 1966.
Carpentier inaugura o estilo real maravilhoso influenciado pela visita ao Haiti, em 1943, onde segundo ele foi possível ter “contato cotidiano com algo que poderíamos chamar de real maravilhoso” (p. 10), um patrimônio não somente do Haiti, mas de toda a América. Outras obras do autor: Os Passos Perdidos (1953), Guerra do tempo (1958) e os O Século das Luzes (1962). O Reino deste Mundo foi lançado em 1948, no México.
No Prólogo do livro O Reino deste Mundo, o autor nos apresenta o real maravilhoso que ele conhece a partir do “nada irreal sortilégio das terras do Haiti” (p.7), palco de fatos extraordinários que aconteceram na ilha de São Domingos. Em seguida, coloca um trecho da comédia “O Novo Mundo descoberto por Cristóvão Colombo”, de Lope de Vega, onde o Diabo interpela Deus sobre a ida de Colombo para a América “Não sabes que há muitos anos dali sou o dono?”, o que sinaliza a dimensão dos acontecimentos que serão narrados dali em diante.
Carpentier recria os principais acontecimentos políticos do final do século XVIII, anteriores à independência da colônia de São Domingos, até o período republicano, começo do século XIX. Nesse intervalo ocorre a transição da colônia francesa governada por brancos para uma nação governada por negros e mulatos.
A narrativa está vinculada à estória do personagem principal, o escravo Ti Noel, que da juventude à velhice vive as desventuras do povo haitiano.  Os acontecimentos narrados são reais, mas se limitam àquilo que o escravo é capaz de perceber e compreender, numa visão de oprimidos e não de opressores ou vencedores. Para melhor contextualização desses acontecimentos, procurou-se fazer um paralelo com a história oficial, colocando-se alguns comentários adicionais.
O livro trata de três revoltas, a primeira delas, ocorre em 1754, sob a liderança do escravo Mackandal, que pertence ao mesmo senhor de Ti Noel, Lenormand de Mezy. Este escravo procura manter vivas as tradições de sua terra e do seu povo, bem como a disposição da luta pela liberdade, utilizando-se de narrativas sobre os reinos da África. Mackandal aprende sobre magia e ervas venenosas com uma velha escrava, que vive isolada na montanha, foge e organiza uma rebelião, usando a tática de envenenamento da água, que mata plantações, animais e senhores brancos.
Após quatro anos, a rebelião é sufocada e Mackandal morto, mas para os escravos ele continua vivo, servindo de inspiração ao seu povo na busca da liberdade. Este fato ocorre antes da Revolução Francesa, mas a referência aparece de forma muito sutil, por meio do rosto do Rei da França, em um jornal na Cidade do Cabo.
Vinte anos depois, explode uma segunda rebelião liderada pelo negro jamaicano Bouckman, que tem como estopim a negativa dos senhores brancos de obedecerem à decisão de libertar os escravos, que veio da metrópole. Os escravos abandonam as plantações e fazem um verdadeiro massacre, matam os senhores, violentam as mulheres e saqueiam os engenhos.
Essa rebelião ocorreu em 1791 e a ordem de libertar os escravos das colônias veio dos líderes da Revolução Francesa, com base na Declaração dos Direitos do Homem. Como as autoridades e senhores branco de São Domingos não obedeceram, Toussaint L’Ouverture (conhecido como Napoleão Negro) liderou essa rebelião. Esse personagem é citado na página 39 do livro, como o marceneiro Toussaint.
A rebelião é debelada, Bouckman é morto, os escravos são massacrados. Monsieur Lenormand consegue salvar os seus escravos, com os quais decide embarcar para Santiago de Cuba, como quase toda elite branca. Em Santiago, Ti Noel toma conhecimento das novidades que estão ocorrendo na Ilha de São Domingos, que o autor mostra dando destaque à chegada de Paulina Bonaparte, irmã de Napoleão e mulher do General Leclerc.
  Esses acontecimentos ocorrem em 1801, quando Napoleão Bonaparte envia a São Domingos uma expedição com 25 mil soldados, sob o comando de Leclerc, para intervir no levante dos escravos e tentar restabelecer a escravidão.  Leclerc perdeu o combate e acabou falecendo, atacado pela febre amarela, em 1802.
Depois disso, São Domingos entra num verdadeiro clima de desordem, as antigas regras são desobedecidas, os brancos continuam descontentes e os negros revoltosos. Dessalines, um ex-escravo, analfabeto, mulato, assume o poder, expulsa as tropas francesas e proclama a independência da colônia, que recebe o nome indígena de Haiti, palavra que significa montanha. Dois anos depois, Dessalines é deposto e morto, o país tem o controle dividido e Henri Christophe funda um reino ao norte. Este rei, o primeiro da América, é o cozinheiro citado na página 50, que depois se tornou artilheiro colonial.
Ti Noel retorna ao Haiti, após ser vendido para outro senhor e conseguido a liberdade, e tem a sensação de que anda “sobre uma terra em que a escravidão havia sido abolida para sempre” (p. 84), entretanto ao retornar à fazenda do seu antigo dono, que se encontra em ruínas, descobre um novo Haiti, liderado por negros e mulatos, porém com uniformes napoleônicos e costumes de influência europeia. Como toda a população, é forçado a trabalhar para o novo soberano, como escravo, na construção de uma fortaleza.
Ti Noel desabafa quanto a essa outra escravidão: 
 Pior ainda [que a dos franceses], pois havia uma infinita miséria em ver-se espancado por um negro, tão negro como os demais, tão beiçudo e acarapinhado, tão nariz largo como os demais; tão igual, tão malnascido, tão marcado a ferro, possivelmente, como os demais  (p. 93).   
Após um tempo Ti Noel é liberado e volta à fazenda do seu amo, que passa a habitar como se fosse o dono.  Enquanto isso, o rei empareda um bispo católico, tem um colapso nervoso, é deposto e comete suicídio. Sua mulher e duas filhas vão para Roma, acompanhadas por Solimán, o antigo criado de Paulina Bonaparte, que consegue ter acesso ao Palácio Borghese, onde encontra uma estátua de Paulina (a Vênus de Canova), cujas lembranças o levam de volta às suas origens, ao encontro dos seus deuses.
Ti Noel participa do saque ao Palácio do Rei – Sans Souci – e sente-se cada vez mais  um soberano nos seus domínios, até chegarem os republicanos para tomarem posse das terras e implantarem um novo período de trabalho forçado.
Temendo uma nova escravidão, o ex-escravo decide se metamorfosear, tal como o mandinga Mackandal, em insetos e animais. Entretanto, quanto mais fugia da escravidão, e a cada animal que se transformava caía debaixo de novo jugo, como no caso das formigas, ou era marginalizado, ao se transformar em ganso.
De volta à condição humana, Ti Noel, sentiu-se  "velho, de séculos incontáveis” e percebe que no Reino dos Céus, “não há grandeza a se conquistar” e conclui que “homem só pode encontrar sua grandeza, sua máxima medida no Reino deste Mundo” (p. 131).
Por fim, num belo cenário preparado pela natureza, alça seu vôo em direção a Bois Caïman, lugar onde se realizavam as cerimônias vodu de enfrentamento ao domínio francês.
O livro trata de homens, da raça negra, subtraídos da sua terra, das suas raízes, dos seus nomes e que vivem como escravos, num clima tropical, de natureza exuberante. O ambiente é repleto de sincretismo entre as religiões africanas e a religião católica, que foi fundamental para sustentar o desejo de liberdade dos escravos.
O autor usa uma linguagem muito rebuscada, o que às vezes dificulta a leitura, sendo necessário usar o dicionário com bastante frequência.  O livro tem poucas páginas, mas contem muitas referências históricas, literárias e mitológicas que se consultadas, expandem o universo da narrativa. Existem muitas citações em francês e na língua dos escravos, que se fossem traduzidas para o português, poderiam facilitar o entendimento.
Gostei muito da narrativa, recomendo, mas é um livro que precisa ser lido e relido, mais de uma vez. A linguagem é muito simbólica e algumas sutilezas podem passar despercebidas numa primeira leitura.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

O Reino Deste Mundo


de Alejo Carpentier

comentários por Carlos Guido Azevedo


"O reino deste mundo" conta uma história do sofrimento terrível do povo Haitiano em sua trajetória para a miséria perpétua, suportada por uma fé própria, o Vodu, que recria a realidade na visão do oprimido, dando a ele poderes mágicos para suportar o reino deste mundo sem glorificar a vida no outro mundo como fazem as outras religiões, mas, sim, construindo uma outra narrativa sobre a realidade cruel e transmutando o sofrimento em poder, para os seus heróis martirizados.
Carpentier publicou este livro em 1949 e acho que ele é atual em todos os sentidos para descrever a miséria em que vive o país que primeiro aboliu a escravidão e conseguiu que os antigos escravos tratassem ainda pior os seus semelhantes.
A base narrativa é montada sobre um personagem que permeia todos os ciclos da história do Haiti, o Tim Noel. Ele mesmo padecendo todas as desventuras do seu povo e milagrosamente sobrevivendo a todas as revoluções e martírios.
Dividido em quatro partes. A primeira apresenta Ti Noel jovem escarvo bem tratado por seu patrão Monsieur Lenormand de Mezy, que, no entanto, marca a fogo seus escravos e costuma cortar algum membro de escravos fujões, como é o caso de Mackandal que perde um braço e se esconde em uma gruta e começa a trabalhar com Vodu e, com ervas passa a envenenar os animais mais bonitos e os próprios senhores brancos, criando o mito que se transmuta em animais e está sempre presente nas seções de Vodu, como cobra ou outro ser qualquer, sempre comunicando-se através dos tambores tocados em diferentes lugares e do sopro dos caramujos? que apavora os senhores brancos e os fazem convocar o exército para prender o Mackandal e seus seguidores.
Com todas as rebeliões esta, também é sufocada e Mackandal morto, mas sua morte não é assumida por seus seguidores que atestam sua fuga como um pássaro e criam assim, uma tradição de recriar a realidade através de uma percepção mágica e distorcida da realidade.   
A segunda parte descreve uma nova rebelião, organizada por Boukman, da mesma forma de sempre, de repente as trombetas de caracóis começavam a tocar e outras e outras respondem de toda a parte, como se todos os caracóis que jaziam solitários e petrificados ganhassem vida e determinasse que todas as portas se abrissem, de dentro pra fora, e autorizassem a que todos os patrões fossem arrastados e mortos e suas mulheres e filhas estupradas e mortas. A rebelião é reprimida com violência e seu líder morto, mas parte da população branca sobrevivente emigra para Cuba, incluindo Monsenhor de Mezy e seu escravo Ti Noel, salvo da decapitação pelo seu dono, na última hora.
Na terceira seção do livro Ti Noel, liberto por seu novo dono, ainda na ilha de Cuba, emigra de volta ao Haiti. Mas, não encontra mais o país que deixara, agora um rei negro, que adota a religião católica e todos os seus ritos, em contraposição à religião dos seus, e oprime ainda mais barbaramente os outros negros e os força ao trabalho forçado para construir uma enorme fortaleza. Empareda um bispo católico que o havia desobedecido e em um colapso nervoso o vê entrando na catedral com toda a pompa e em crise fica paralítico e acaba deposto e se suicida, sendo levado par a fortaleza com sua mulher e filhas, que conseguem ser deportadas para a Itália ou França?.
A última parte do livro, a realidade mágica ou “irrealidade” assume um papel mais destacado porque o Ti Noel, volta as ruínas de sua primeira senzala, monta um reinado para sí e passa a conversar com as pedras, pássaros e com quem mais aparecer para contar as muitas coisas que tem vivido e a distribuir comendas a quem encontra em seu reinado e, tenta resistir sem muita consequência aos novos dominadores mulatos que se fazem senhores da terra e do país com índole ainda mais violentas que as gerações anteriores.
Ti Noel, velho, louco e miserável, memória viva das desgraças de seu povo, desaparece nas grutas onde se encontrara com Mackandal e aprendera as técnicas do Vodu para enfrentamento dos primeiros dominadores, os franceses.
Pobre Haiti cuja ausência de lideranças comprometidas com seu povo, escreve ainda hoje uma história de miséria e dor, dando uma aula viva a todas as nações do que acontece quando seus líderes se distanciam do povo para servir aos interesses pessoais.  
Recomendo a leitura do livro, com restrições, porque como abertura de um novo estilo de realidade mágica, o livro tem valor histórico, mas depois de estarmos plenos de realidade mágica acho que ficou ultrapassado em seu desenrolar confuso e sobreposto, com detalhamentos de ambiência exagerados e as vezes fora de contexto, perdendo-se em descrições supérfluas sem significados para o enredo e a estória.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O Mestre e a Margarida

de Mikhail Bulgakov

por Marcia Helena Carvalho


Covardia: o pior dos pecados

Publicado em 1966 pela primeira vez, o romance russo “O Mestre e a Margarida” de Mikhail Bulgakov tem início com um diálogo entre dois poetas ateus russos, Ivan e Berlioz, sobre a não existência de Jesus Cristo. A conversa acontece em uma Moscou em pleno totalitarismo. De repente, os dois poetas são interrompidos por um homem que se diz professor e que tenta convence-los da existência de Cristo. A ironia que permeia o romance de Bulgakov já começa por aí. O tal professor, cujo nome é Woland, vem a ser o próprio Diabo!
Logo depois desse encontro, várias coisas estranhas e inexplicáveis começam a ocorrer na cidade. Primeiro, Berlioz acaba sendo atropelado e morto, concretizando, pois, uma previsão que havia sido feita por Woland. Ivan, transtornado pelos acontecimentos, tenta capturar e prender o professor diabólico. Porém, é mal sucedido na sua empreitada. Além disso, a história contada por Ivan sobre o encontro com o tal professor misterioso é tão absurda que ele acaba sendo internado em uma clínica psiquiátrica.

Na clínica, Ivan conhece o Mestre, um escritor que após ter seu romance censurado pela ditadura vigente, acabou caindo em uma forte depressão. Para os críticos, o romance era uma apologia a Cristo, visto que a história tinha como personagem principal Pôncio Pilatos. Quando o personagem Mestre aparece na trama, já na metade da primeira parte do romance, o leitor começa a conectar alguns pontos.

Na primeira parte, o autor apresenta vários personagens que interagem com Woland e sua comitiva. Muitos desses personagens são de caráter duvidoso e, ao cruzarem o caminho de Woland acabam se dando mal. É o que acontece, por exemplo, com o tio herdeiro de Berlioz. Além disso, diversos acontecimentos misteriosos vão ocorrendo, atrapalhando, pois, a ordem em Moscou. É durante tais acontecimentos que Woland critica de forma jocosa aquela sociedade.

Durante um espetáculo de magia negra promovido por Woland, por exemplo, os espectadores pedem a cabeça do mestre de cerimônia quando este tenta interromper o show. Para o Diabo, que estava distribuindo dinheiro para a plateia, as pessoas reagiram de forma tão violenta porque adoram dinheiro! Bulgakov, na primeira parte do romance, demora para “desenrolar” sua narrativa. O autor acrescenta vários personagens e o leitor, que ainda não sabe a verdadeira natureza ou a intenção de Woland, pode se cansar um pouco da narrativa. Porém, o leitor, além de se divertir com as histórias do gato, começa a se interessar pelo comportamento bastante peculiar de Woland. Com efeito, Woland vai se revelando um personagem surpreendentemente interessante, embora ainda não seja possível saber o motivo da sua visita a Moscou.

Já na segunda parte, a trama se volta basicamente para o drama envolvendo o amor entre Margarida e o Mestre e a censura do romance escrito por este último. A partir desse ponto, as interconexões entre as diversas tramas do romance começam a fazer mais sentido para o leitor. A razão da visita de Woland à capital russa é a realização de um tradicional baile em que ele costuma receber os maiores malfeitores da história. Em Moscou, Woland precisa encontrar uma acompanhante para o tal baile. Ela deve se chamar Margarida e deve ter sangue de rainha.

Margarida, uma mulher apaixonada pelo Mestre e pelo romance escrito por ele, topa negociar com o Diabo para ter a chance de ver o amante novamente. A barganha entre Woland e Margarida consiste no seguinte: Ela será a acompanhante de Woland no grande baile e como recompensa o Diabo trará o Mestre de volta para ela. A partir daí, o personagem Woland é mais desenvolvido e, inevitavelmente, cai nas graças do leitor.

Como não se simpatizar com um Diabo que prefere os remédios caseiros da avó àqueles produzidos pela moderna indústria farmacêutica? Bulgakov dá ao Diabo uma dimensão humana ao mostra-lo com fortes dores no joelho por conta de um suposto reumatismo. O Diabo de roupas sujas e amarrotadas, tem uma natureza complexa e deixa seu posto de coadjuvante na história do cristianismo para ser o protagonista na história de “O Mestre e a Margarida”. Assim, o Diabo de Bulgakov acaba provocando reflexões sobre os valores morais, políticos e religiosos da Cristandade. Em seu diálogo com Mateus Levi, por exemplo, o Diabo provoca o discípulo de Cristo ao chama-lo de “escravo”. Por que “escravo”? Estaria Woland ou o próprio Bulgakov sugerindo que a “dissidência” do anjo Lúcifer teria ocorrido por conta das regras unilaterais do Criador? Talvez esta tenha sido uma inspiração vinda de Willian Blake, uns dos primeiros a dar essa interpretação para o ocorrido entre Deus e o anjo Lúcifer.

Ainda no mesmo diálogo com Mateus Levi, o Diabo critica o discípulo ao dizer que ele fala como se não reconhecesse as sombras, e muito menos a maldade. E mais, provoca Mateus ao dizer que não seria muito trabalho pensar no que seria da bondade dele se não existisse a maldade, se todas as sombras causadas pelas coisas vivas sumissem. Mais adiante, o Diabo chama a atenção para a tolice de Mateus: “Será que você deseja devastar todo o globo terrestre retirando dele todas as árvores e tudo o que é vivo por causa da sua fantasia de se deleitar com o mundo desnudo? Tolo.”

O diálogo entre Mateus e Woland pode ser uma alusão aos sentimentos de Bulgakov acerca do momento político vivido em seu país. Ante o contexto histórico no qual o autor estava inserido quando escreveu o romance, seria natural concluir que ao criar este diálogo entre Mateus e Woland, Bulgakov cria um paralelo entre a tolice de Mateus e a tolice stalinista. Afinal, Stalin também tinha a pretensão de criar um mundo “desnudo”. Ou seja, um mundo onde a liberdade para expor ideias distintas daquelas impostas pelo Estado não pudesse existir.

Na União Soviética stalinista, a liberdade estava para Stalin assim como as sombras estavam para Mateus: uma ameaça. Woland (quem diria?) parece ver na natureza humana uma complexidade que não pode ser suprimida, tampouco controlada. Embora tal complexidade não fosse ignorada por Mateus ou por Stalin, ambos tinham a pretensão de controla-la, o que é uma tolice. Poder-se-ia dizer, portanto, que “O Mestre e a Margarida”, além de ser uma história de amor é, sobretudo, uma história sobre a infelicidade de se viver em um regime totalitarista.

De fato, se inserirmos o romance de Bulgakov no contexto histórico em que foi escrito, identificaremos diversas referências autobiográficas. Não é difícil reconhecer Bulgakov nos personagens o Mestre e Woland. Tal como o Mestre, o autor russo também foi vítima da covardia que permeia um regime ditatorial. E tal como Woland, Bulgakov, embora tivesse sido jogado na “escuridão”, mantinha um admirável senso de humor ao escrever o romance em questão. Para o Mestre, a covardia é o pior dos pecados e essa é uma frase recorrente no romance. Não é difícil imaginar tal frase saindo da boca do próprio Bulgakov, visto que foi vítima da covardia de Stalin. Covardia porque Stalin lia e apreciava a arte de Bulgakov, no entanto, não queria que a massa russa tivesse acesso a uma obra literária cheia de metáforas que podiam ser interpretadas contra o regime.

Bulgakov, embora não tenha ido parar numa clínica psiquiátrica, tal como o Mestre, foi “condenado” a viver no “subsolo” da literatura russa. E, foi com o coração partido que morreu, em 1940, sem ver sua obra publicada. Felizmente, Bulgakov teve sua “Margarida” para lutar pela publicação de suas obras. Fato este que confirmou a famosa frase dita por Woland: manuscritos não ardem! Ou seja, manuscritos resistem ao fogo da censura. Aliás, tal como o personagem o Mestre, Bulgakov também destruiu uma versão de “O Mestre e a Margarida”, a qual ele reconstruiu mais tarde. Infelizmente, a história de vida de Bulgakov não teve, para ele, um final feliz, visto que morreu sem ver seu romance publicado. No entanto, a história de Bulgakov não morreu com ele. A liberdade, no final, triunfou sobre a covardia e a tolice stalinistas.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

A CICATRIZ DE DAVID de Susan Abulhawa


Editora: Record, 2009           
Tradução de Maria Alice Máximo
Resenha por Maria Virginia de Vasconcellos em setembro/out de 2015


Se lhe perguntam sobre o tema do livro A CICATRIZ DE DAVID, algumas frases-síntese podem ser mencionadas.

Por exemplo, trata-se da formação do Estado de Israel desde o ponto de vista dos palestinos; ou, trata-se da saga de uma família de refugiados palestinos; ou ainda, trata-se da história de dois irmãos palestinos, criados em culturas diferentes (judaica e árabe) que voltam a se encontrar em condições conflitivas. Por fim, pode-se dizer que o tema do livro é uma incursão no universo árabe/palestino em momentos históricos de guerra.

De fato, estas afirmações apontam o contexto no qual a narrativa se desenvolve. 

Estamos situados na Palestina, no período entre 1941 a 2002, ou seja, dos tempos da 2ª. Guerra até o século atual, passando pela época da proclamação do Estado de Israel em 1948 e pelas guerras ocorridas na região. É um romance sustentado em fatos históricos - mistura ficção com a realidade.

Desta forma, esta novela contribui para a compreensão do conflito árabe-judeu. E esta é, certamente, a intenção da autora, Susan Abulhawa. Ela quer desenterrar o sofrimento do povo palestino e explicar o surgimento do crescente ódio ao povo judeu. Usando suas próprias palavras temos a seguinte descrição desse tempo:

      “Era uma história de guerra, de um fogo que congelava, queimava e voltava a congelar        novamente. A história de amores desvairados e de um homem desvairado que se                transformou em homem-bomba.” [1]·.

1)       Quanto à Estrutura e ritmo da narrativa

Há vários saltos temporais, idas e voltas, de 1967 a 2002, além de mudanças de geografia, já que os personagens não somente vão para América, mas também exploram a região do Líbano, Cisjordânia e Jerusalém. Para todos os tempos e para todos os lados percorridos, eles carregam o passado como referência.

O início do romance se passa em 2002 e os últimos capítulos também neste mesmo ano, no campo de Refugiados, em Jenin.  Segundo a autora: “O tempo volta atrás e brinca com as coisas do passado.” [2].

Nesta brincadeira, entretanto, a narrativa não perde o fio da meada e se mantém na trama. A história guarda uma lógica, uma integridade - sem ficar solta ou despedaçada. 

Esta estrutura não linear da narrativa é, pelo menos, ousada para uma escritora que está debutando no ofício, com esta obra.

Nota-se que Susan Abulhawa aproveita um momento no livro para alfinetar algum possível editor, quanto a técnicas de montagem de romance. Eis que ela menciona pela voz do personagem Sara:

Por que alguém inventou que um romance precisa ter simetria? E ele (editor) disse também que não posso ter mais de uma voz. Como se pode ter criatividade com 
tantas regras?”.

E ela declara - idiotas - todas essas regras.
Apenas segue sua criatividade e constrói um romance não simétrico, que tem múltiplas vozes, múltiplos pontos de vista. Na primeira parte, é a autora que relata. Depois passa a palavra ora a Amal, ora a Yousef, sem perder também o seu próprio ponto de vista.

2)       Quanto ao Tempo, espaço e contexto

Nas primeiras noventa páginas, são apresentados os costumes, a cultura, os personagens-membros e a vida da família Abulheja, palestinos que viviam na aldeia de Ein Hod por quarenta gerações, nessa mesma propriedade de plantio de azeitonas, figos e uvas.

Aqui ficam caracterizados o patriarca Yehya (avô) e sua mulher Basima, o casal Hasan e Dalia, e seus dois filhos: Yousef, Ismael e, posteriormente a filha Amal, além de vários outros personagens. [3] São árabes apegados a Deus, a terra e à própria família, e “era isso – a essência de seu ser - que eles defendiam e tentavam manter[4]. Porém, não conseguiram defender nem manter o que pretendiam.

A partir de maio de 1948, os antigos colonizadores ingleses deixam a Palestina. Aumenta o fluxo de chegada de judeus refugiados, vindos de todas as partes do mundo, para ocupar a região. Proclamam o Estado judaico e mudam o nome da terra para Israel, ”a terra prometida”.  

Os palestinos são expelidos de suas propriedades, de seus campos de oliva e de suas vilas. A autora descreve a terrível violência perpetuada pelos judeus que vieram se estabelecer em Israel. Organizadas, armadas, legitimadas pela ONU, as forças Israelenses atacam e brutalmente desmantelam aldeias da Palestina, matando e ferindo muitos, saqueando bens, roubando propriedades e pertences.

No romance, houve até roubo de seres humanos: o comovente episódio do rapto do bebê Ismael, das mãos da bela beduína Dalia, pelo soldado judeu Moshe. Ele leva o bebê de presente para a esposa Jolanta que, estéril, devido a maus tratos recebidos no campo de concentração, sofria por não poder ter filhos.  A partir daí, Ismael se transforma em David e é criado à maneira do povo judeu. No entanto, permanece indelével no seu rosto, a cicatriz provocada por um acidente – marca da irmandade entre Yousef e David.

Neste ponto, fica montado o cenário para a história/estória da CICATRIZ DE DAVID.

3)       O desenrolar da narrativa

No caminhar do relato, os palestinos sobreviventes acabam por se estabelecer num campo de refugiados, em Jenin, onde morre aos poucos a esperança de recuperar seus lares ancestrais. É em Jenin que nasce AMAL, personagem central do romance, a terceira filha de Hasan e Dalia.  A partir daí, a narrativa passa para a voz de Amal, intercalando com Yousef, seu irmão e, nalguns capítulos, com a autora.

O romance contém alguns textos fortes, trágicos e terríveis, intercalados com outro ternos, comoventes e extremamente líricos.

Deste segundo tipo fazem parte os capítulos sobre o nascimento de Amal, sobre sua infância e sua relação com o pai, e os relatos sobre os diversos romances e amores que se perpetuam de geração em geração. As famílias palestinas convivem com lutas, perdas irreparáveis, mas também com profunda experiência amorosa.

Em 1967, novamente chegam os soldados de Israel bombardeando, queimando, roubando e saqueando[5]. Amal e sua família sofrem novamente terríveis momentos: ela, menina, presa num buraco na cozinha enquanto ocorria a invasão em Jenin. Neste ataque, Hasan, o pai, desaparece na obscuridade da morte na resistência.

Em seguida, a novela dá um salto para os anos de 2001-2002, quando aparece Sara, a filha de Amal, e o encontro com o irmão David, de 53 anos, já conhecedor da verdade sobre sua origem árabe. 

A narrativa retorna a 1967 para contar a infância de David e o trágico encontro dos irmãos. É quando Yousef é abatido pelo soldado judeu, marcado com a cicatriz, seu próprio irmão Ismael, que desconhece sua origem.  Pela cicatriz e pela aparência, Yousef ferido, torturado e machucado, em tratamento numa enfermaria, reconhece na figura daquele soldado David, o seu irmão que fora raptado ainda bebê.

Aqui há um capítulo completo, quase um poema, com a voz de Yousef como narrador. É Yousef, o homem (cap. 14). É Yousef empunhando armas, preso, e pensando em seu amor por Fátima. A tentação é de citar literalmente o texto do romance pelo lirismo e pela ternura que revela.

E a saga continua. Apesar das desgraças acontecidas, a família vai tocando a vida.

Vale uma pausa para comentar sobre o choque cultural da chegada de Amal aos Estados Unidos, em 1973. Em especial, impressiona e encanta a comparação entre o agradecimento da cultura árabe e agradecimento do idioma inglês.[6] Para um árabe, um agradecimento profundo e autêntico merece muitas frases bonitas de pedidos de bênçãos: “Que Alá abençoe suas mãos tão generosas”; “A beleza está é nos seus olhos que me acham bela”; “Que Alá jamais rejeite as suas preces”; “Que Alá te cubra com seu véu de bênçãos”; e por aí vai. Como aceitar um mero e insuficiente “Thanks”? Para Amal, este foi um primeiro choque de uma série de sensações de deslocamento na nova cultura.

Somente após sete anos, em 1980, seu irmão Yousef, morando agora na Líbia e casado com seu amor Fátima, localiza Amal e lhe telefona convidando para visitá-los.   Após algum tempo, ela parte para Beirute para conhecer a sobrinha, filha de Yousef, que está por nascer. E aí se desenrolam capítulos doces da sua vida: encontra Majid, o amor e paixão da sua existência, e logo se casam.

Mas eis que a destruição se repete. Em 1982, a devastação da guerra. (Amal grávida, volta aos Estados Unidos para salvar-se deixando, tristemente, seu amor e sua família, com a promessa de que viriam encontrá-la).

Como nos conta a história, o acordo de Arafat com os Estados Unidos, parece não ter sido respeitado: a saída da OLP do Líbano teria como contrapartida a retirada dos judeus de Beirute, deixando sobreviver mulheres e crianças palestinas.  De fato, irrompem ataques a Beirute, contra a OLP e bairros da cidade (quando Majid é morto num bombardeio); ataques na Palestina, com massacre de mulheres e crianças em Shatila (quando Fátima - mulher de Yousef, grávida de Falasteen, é cortada e rasgada numa cena macabra, cuja foto corre o mundo).

Na estória, depois disso, Amal e Yousef amargaram as perdas. “Majid, minha história de amor eterno que se tornou nunca mais” [7]·.  Yousef berra e chora e, “seu coração passou a bater movido pelo ódio[8].

E ainda há muito a relatar. [9]
Novamente temos um capítulo muito lindo: O no. 37 - Yousef, o vingador [10], onde o personagem quer justificar sua ação de desespero. A traição, as perdas, o ódio e a desmantelamento de sua vida o conduziram à vingança, mais nada além da vingança...

Anos depois da Intifada – reação dos palestinos ante a ocupação - Amal regressa a Jenin com a filha, para lhe contar a sua própria história. E, lamentavelmente, aí revive e sofre mais um massacre dos israelenses e sucumbe ao seu destino.

A epopeia se encerra em 2002, mas deixa no ar a forte mensagem a favor dos refugiados e dos palestinos.

A autora denuncia claramente a mentira espalhada pelo mundo “Não houve massacre em Jenin”. O relatório oficial das Nações Unidas, escrito por homens que não puseram os pés em Jenin e não falaram com as vítimas nem com os algozes, concluiu que não tinha havido massacre em Jenin. [11].

4)       Susan Abulhawa [12] e a sua mensagem

Esta é uma novela individual e coletiva, com sustentação em fatos verdadeiros e forte inserção na história real. A ficção tem como entorno a realidade. Também se pode afirmar que é um romance inspirado na vida de alguém. Amal parece personificar a autora em vários episódios. 

E de fato, se olhamos a biografia de Susan Abulhawa, chegamos a admitir que seja um romance memorialista. O conteúdo é repleto de referências pessoais e inserção de elementos autobiográficos na existência dos protagonistas.
Para afirmar isso, basta conhecer um pouquinho da biografia da autora:

Seus pais foram refugiados da Guerra de Seis Dias (1967) e depois se mudaram para o Kwait onde Susan nasceu, em 1970.

Sua família foi desmantelada e, em seguida, ela foi enviada para viver com um tio nos Estados Unidos, onde permaneceu até a idade de cinco anos. Depois passou por lares de familiares no Kuwait e na Jordânia. Em seguida, foi enviada para Jerusalém, onde viveu em orfanato por três anos antes de ir aos EUA já com 13 anos de idade. Teve uma Infância instável e sem raízes.

Foi adotada em Carolina do Norte e permanece nos Estados Unidos desde então. Graduou-se em Biologia e frequentou a Escola de Medicina no Departamento de Ciência Biomédica, onde completou o mestrado em Neurociência.

Mais tarde, virou-se para o jornalismo e ficção. Seu primeiro livro foi Mornings in Jenin, publicado originalmente em 2006 com o título Cicatriz de David. Tornou-se um Best seller internacional traduzido para 26 idiomas. Em 2013, Abulhawa publicou uma coleção de poesias intitulada My voice sought the Wind - e foi anunciado seu segundo romance, The Blue between Sky and water (Bloombury,2015). Diversos comentários políticos de sua autoria foram publicados em jornais americanos.

Em 2002,  esteve visitando o campo de refugiados em Jenin, como observadora internacional, em seguida ao ataque de Israel,  e testemunhou atrocidades que relatou da seguinte forma: “What I saw in Jenin was shocking at so many levels”… ..So when I left there, I really wanted to tell their story because I knew nobody was going to talk about it”.. O resultado foi a publicação de Cicatriz de Davi, com o nome de  Mornings in Jenin, em 2010. Foi descrita como uma lírica estória da família Abulhewa, um relato do sofrimento e das perdas e mais perdas, e sucessivos horrores infligidos durante a guerra de 1967, seguida dos ataques a Líbano, Jenin, Sabra e Shatila, e a agonia e devastação impostas aos palestinos.

Tornou-se uma ativista e palestrante frequente, em prol da causa da Palestina. Foi fundadora da ONG Playgrounds for Palestine.

Quando acusada pelo filósofo francês, Bernar-Henri Levy de concentrar clichês anti-Israel e anti-judeus mascarando uma ficção – ela responde que está apenas abrindo a cortina, de forma leve, para mostrar a escura verdade que querem manter escondida.

Alguns depoimentos da autora em Entrevista ou posts não deixam dúvida quanto à mensagem que ela pretende transmitir com o romance. Ela afirma:

·               A narrativa de Israel dominou a literatura. É natural que o primeiro relato venha dos             conquistadores... mas...

Contaram a história que o Ocidente queria ouvir. Era mais fácil escutar uma estória de uma terra sem seu povo. Era um happy end romântico.  O relato palestino não tinha apelo e, inicialmente, não foi recebido pelo Ocidente.”
·       
                “Que a história dos judeus – de perseguição e sofrimento – tenha sido divulgada em             novelas, poesias, filmes e teatros – ela compreende. Mas, porque nossa história                   não foi contada?”

Em conclusão: Recomendamos com veemência este livro, principalmente pelo valor informativo e histórico. [13]

Afinal, para não deixar de levantar uma lacuna, pode-se comentar que os personagens palestinos não apresentam sinais de crueldade humana (mesmo o vingador atua com desespero, como resposta, e não com maldade pura). Falta um “bad guy” – um maldoso – uma personalidade ambígua e complexa na família palestina, para dar mais realismo à condição humana dos personagens. 

Contudo, esta constatação não tira o brilho da ficção que tem a qualidade de prender o leitor. O maior valor está no depoimento, cujo significado, profundidade e emoção não estão nem de longe expressos aqui nesta resenha.






[1]Pag. 390
[2] Pag. 410
[3] O personagem Ari Perlstein, para dar um exemplo, representa o judeu pacifista.
[4] Pag. 54
[5] Pag. 113
[6] Pag. 266
[7] Pag. 339
[8] Pag. 345
[9] Nasce Sara, a filha de Amal, nos Estados Unidos.  Yousef deixa a OLP, e entra num caminho sem volta atuando na clandestinidade e na resistência. Segundo ele: “já era tempo de eles provarem um pouco daquilo que tem feito de nossas vidas (pag. 359)”. E torna-se um terrorista.
[10] Pag. 364
[11] Pag. 341
[12] Dados coletados na Wikipédia, em setembro de 2015

[13] Bibliografia complementar: A indústria do Holocausto – Reflexões sobre a exploração do sofrimento dos judeus de Norman Finkelstein // Ver video no Youtube sobre a história na região