quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O Mestre e a Margarida

de Mikhail Bulgakov

por Marcia Helena Carvalho


Covardia: o pior dos pecados

Publicado em 1966 pela primeira vez, o romance russo “O Mestre e a Margarida” de Mikhail Bulgakov tem início com um diálogo entre dois poetas ateus russos, Ivan e Berlioz, sobre a não existência de Jesus Cristo. A conversa acontece em uma Moscou em pleno totalitarismo. De repente, os dois poetas são interrompidos por um homem que se diz professor e que tenta convence-los da existência de Cristo. A ironia que permeia o romance de Bulgakov já começa por aí. O tal professor, cujo nome é Woland, vem a ser o próprio Diabo!
Logo depois desse encontro, várias coisas estranhas e inexplicáveis começam a ocorrer na cidade. Primeiro, Berlioz acaba sendo atropelado e morto, concretizando, pois, uma previsão que havia sido feita por Woland. Ivan, transtornado pelos acontecimentos, tenta capturar e prender o professor diabólico. Porém, é mal sucedido na sua empreitada. Além disso, a história contada por Ivan sobre o encontro com o tal professor misterioso é tão absurda que ele acaba sendo internado em uma clínica psiquiátrica.

Na clínica, Ivan conhece o Mestre, um escritor que após ter seu romance censurado pela ditadura vigente, acabou caindo em uma forte depressão. Para os críticos, o romance era uma apologia a Cristo, visto que a história tinha como personagem principal Pôncio Pilatos. Quando o personagem Mestre aparece na trama, já na metade da primeira parte do romance, o leitor começa a conectar alguns pontos.

Na primeira parte, o autor apresenta vários personagens que interagem com Woland e sua comitiva. Muitos desses personagens são de caráter duvidoso e, ao cruzarem o caminho de Woland acabam se dando mal. É o que acontece, por exemplo, com o tio herdeiro de Berlioz. Além disso, diversos acontecimentos misteriosos vão ocorrendo, atrapalhando, pois, a ordem em Moscou. É durante tais acontecimentos que Woland critica de forma jocosa aquela sociedade.

Durante um espetáculo de magia negra promovido por Woland, por exemplo, os espectadores pedem a cabeça do mestre de cerimônia quando este tenta interromper o show. Para o Diabo, que estava distribuindo dinheiro para a plateia, as pessoas reagiram de forma tão violenta porque adoram dinheiro! Bulgakov, na primeira parte do romance, demora para “desenrolar” sua narrativa. O autor acrescenta vários personagens e o leitor, que ainda não sabe a verdadeira natureza ou a intenção de Woland, pode se cansar um pouco da narrativa. Porém, o leitor, além de se divertir com as histórias do gato, começa a se interessar pelo comportamento bastante peculiar de Woland. Com efeito, Woland vai se revelando um personagem surpreendentemente interessante, embora ainda não seja possível saber o motivo da sua visita a Moscou.

Já na segunda parte, a trama se volta basicamente para o drama envolvendo o amor entre Margarida e o Mestre e a censura do romance escrito por este último. A partir desse ponto, as interconexões entre as diversas tramas do romance começam a fazer mais sentido para o leitor. A razão da visita de Woland à capital russa é a realização de um tradicional baile em que ele costuma receber os maiores malfeitores da história. Em Moscou, Woland precisa encontrar uma acompanhante para o tal baile. Ela deve se chamar Margarida e deve ter sangue de rainha.

Margarida, uma mulher apaixonada pelo Mestre e pelo romance escrito por ele, topa negociar com o Diabo para ter a chance de ver o amante novamente. A barganha entre Woland e Margarida consiste no seguinte: Ela será a acompanhante de Woland no grande baile e como recompensa o Diabo trará o Mestre de volta para ela. A partir daí, o personagem Woland é mais desenvolvido e, inevitavelmente, cai nas graças do leitor.

Como não se simpatizar com um Diabo que prefere os remédios caseiros da avó àqueles produzidos pela moderna indústria farmacêutica? Bulgakov dá ao Diabo uma dimensão humana ao mostra-lo com fortes dores no joelho por conta de um suposto reumatismo. O Diabo de roupas sujas e amarrotadas, tem uma natureza complexa e deixa seu posto de coadjuvante na história do cristianismo para ser o protagonista na história de “O Mestre e a Margarida”. Assim, o Diabo de Bulgakov acaba provocando reflexões sobre os valores morais, políticos e religiosos da Cristandade. Em seu diálogo com Mateus Levi, por exemplo, o Diabo provoca o discípulo de Cristo ao chama-lo de “escravo”. Por que “escravo”? Estaria Woland ou o próprio Bulgakov sugerindo que a “dissidência” do anjo Lúcifer teria ocorrido por conta das regras unilaterais do Criador? Talvez esta tenha sido uma inspiração vinda de Willian Blake, uns dos primeiros a dar essa interpretação para o ocorrido entre Deus e o anjo Lúcifer.

Ainda no mesmo diálogo com Mateus Levi, o Diabo critica o discípulo ao dizer que ele fala como se não reconhecesse as sombras, e muito menos a maldade. E mais, provoca Mateus ao dizer que não seria muito trabalho pensar no que seria da bondade dele se não existisse a maldade, se todas as sombras causadas pelas coisas vivas sumissem. Mais adiante, o Diabo chama a atenção para a tolice de Mateus: “Será que você deseja devastar todo o globo terrestre retirando dele todas as árvores e tudo o que é vivo por causa da sua fantasia de se deleitar com o mundo desnudo? Tolo.”

O diálogo entre Mateus e Woland pode ser uma alusão aos sentimentos de Bulgakov acerca do momento político vivido em seu país. Ante o contexto histórico no qual o autor estava inserido quando escreveu o romance, seria natural concluir que ao criar este diálogo entre Mateus e Woland, Bulgakov cria um paralelo entre a tolice de Mateus e a tolice stalinista. Afinal, Stalin também tinha a pretensão de criar um mundo “desnudo”. Ou seja, um mundo onde a liberdade para expor ideias distintas daquelas impostas pelo Estado não pudesse existir.

Na União Soviética stalinista, a liberdade estava para Stalin assim como as sombras estavam para Mateus: uma ameaça. Woland (quem diria?) parece ver na natureza humana uma complexidade que não pode ser suprimida, tampouco controlada. Embora tal complexidade não fosse ignorada por Mateus ou por Stalin, ambos tinham a pretensão de controla-la, o que é uma tolice. Poder-se-ia dizer, portanto, que “O Mestre e a Margarida”, além de ser uma história de amor é, sobretudo, uma história sobre a infelicidade de se viver em um regime totalitarista.

De fato, se inserirmos o romance de Bulgakov no contexto histórico em que foi escrito, identificaremos diversas referências autobiográficas. Não é difícil reconhecer Bulgakov nos personagens o Mestre e Woland. Tal como o Mestre, o autor russo também foi vítima da covardia que permeia um regime ditatorial. E tal como Woland, Bulgakov, embora tivesse sido jogado na “escuridão”, mantinha um admirável senso de humor ao escrever o romance em questão. Para o Mestre, a covardia é o pior dos pecados e essa é uma frase recorrente no romance. Não é difícil imaginar tal frase saindo da boca do próprio Bulgakov, visto que foi vítima da covardia de Stalin. Covardia porque Stalin lia e apreciava a arte de Bulgakov, no entanto, não queria que a massa russa tivesse acesso a uma obra literária cheia de metáforas que podiam ser interpretadas contra o regime.

Bulgakov, embora não tenha ido parar numa clínica psiquiátrica, tal como o Mestre, foi “condenado” a viver no “subsolo” da literatura russa. E, foi com o coração partido que morreu, em 1940, sem ver sua obra publicada. Felizmente, Bulgakov teve sua “Margarida” para lutar pela publicação de suas obras. Fato este que confirmou a famosa frase dita por Woland: manuscritos não ardem! Ou seja, manuscritos resistem ao fogo da censura. Aliás, tal como o personagem o Mestre, Bulgakov também destruiu uma versão de “O Mestre e a Margarida”, a qual ele reconstruiu mais tarde. Infelizmente, a história de vida de Bulgakov não teve, para ele, um final feliz, visto que morreu sem ver seu romance publicado. No entanto, a história de Bulgakov não morreu com ele. A liberdade, no final, triunfou sobre a covardia e a tolice stalinistas.

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