terça-feira, 8 de julho de 2014

O CAMINHO DE IDA


Autor: Ricardo Piglia
Editora: Companhia das Letras, 2014

Resenha em 29 de junho de 2014, por Virginia de Vasconcellos

Este romance de Piglia mescla de forma singular elementos autobiográficos e princípios do gênero policial-detetivesco. O enredo se desenrola nos Estados Unidos, mais precisamente num campus universitário, na década de 1990.

Na primeira parte do livro, vemos a partida do Professor Emilio Renzi de Buenos Aires e a sua despedida de uma vida sem sentido. Em seguida, a sua chegada numa universidade americana de renome, onde deverá ministrar um Seminário sobre literatura.

O professor Renzi é considerado um alter ego do autor e protagonista habitual de outras suas novelas.
Aqui estão os elementos biográficos: Renzi é nascido em Adrogué, como Piglia. É especialista em literatura, como Piglia. E Piglia, é profundo conhecedor de universidades americanas, pois lá residiu durante quinze anos.

Na novela, tudo começa quando Renzi é convidado pela Ida Brown, uma estrela do mundo acadêmico, “sedutora e polêmica” Diretora do departamento. Com ela inicia um affaire, um caso, uma relação clandestina que o enleva.

Entretanto, a esperança de uma aventura renovadora para Renzi é cortada quando incidentes aparentemente inexplicáveis culminam na trágica morte da professora Ida em um acidente. O corpo é encontrado num carro, com a mão queimada.

Este acontecimento marca o início da segunda parte da história, quando então se inicia a trama detetivesca.  A endogâmica vida do campus é alterada. Suspeita-se que a morte de Ida esteja conectada com uma série de atentados contra eminências do mundo acadêmico, ligadas a tecnologias e pesquisas científicas.

Na medida em que a narrativa avança, surge a figura do autor dos atentados -Thomas Munk – um brilhante matemático que se afastou da carreira e do mundo contemporâneo. 

Este complexo e interessante personagem é amplamente inspirado no UNABOMBER - lendário terrorista americano que, de fato, cometeu dezesseis atentados a bomba desde 1978, conseguindo matar três pessoas e ferir ou mutilar outras vinte e três, numa guerrilha individual contra o “estado corporativo”. Em 21 de abril de 1995, Unabomber fez acompanhar um dos ataques de um manifesto de 62 páginas, intitulado “A sociedade Industrial e seu futuro”. Por recomendação do FBI, The Washington Post publicou este manifesto em 19 de setembro de 1995.[i] Esta é a realidade inspiradora da trama desenvolvida por Piglia. É uma representação ficcional da vida de Theodore John "Ted" Kaczynski, o verdadeiro nome do Recycler, um matemático excepcional de Berkeley.

Na realidade, o matemático "Ted" Kaczynski, no seu Manifesto, “exigia nada menos que uma revolução global: destruir não os governos, mas as bases econômica e tecnológica da sociedade atual”. Foi preso em abril de 1996, reconhecido e denunciado pelo irmão, conforme descrito por Piglia.[ii]

Na ficção, Renzi não suporta a dúvida se Ida Brown foi colaboradora ou vítima - e contrata um detetive de Nova York para elucidar a questão; e, finalmente, acaba por empreender uma viagem para visitar o Thomas Munk na prisão.

A meu ver, o autor não desvenda o mistério de Ida, e nem parece ser este o ponto central do livro.
Antes de tudo, coloca em exame a violência. Apresenta uma história de terror contra a tecnociência, contra a sociedade industrial, se alimentando dos fatos vividos pelo UNABOMBER.

Embora considerando que tudo neste romance se correlaciona e se constrói desde a literatura, a exposição da violência e o questionamento da sociedade industrial são os temas explosivos e centrais.

O narrador é o personagem Emilio Renzi que conta a história na 1ª. pessoa. A estrutura da narrativa é lógica e fascinante e tem um ritmo envolvente. Segundo comentarista Andrés Russo, “Renzi vai tecendo a relação entre o quotidiano, a autobiografia e a crítica literária” [iii]

O personagem de longe mais interessante fica com Thomas Munk que é imaginado e idealizado com base no retrato do Kaczynski, que, pela Wikipédia, permanece vivo e preso.

Se há intenção do autor em deixar uma mensagem subjacente, poderia ser encontrada na citação seguinte:
“Os campus são pacíficos e elegantes, estão pensados para deixar de fora a experiência e as paixões, mas correm embaixo altas ondas de cólera subterrânea: a terrível violência dos homens educados

Em conclusão, recomendo o livro com entusiasmo, ainda que o Thomas Munk, a meu ver o mais fascinante da novela, demore um pouco a chegar.

Em tempo:
Curioso observar que o título do livro, nesta edição em português, é publicado todo em letras maiúsculas, não deixando que o leitor perceba que Ida é um nome próprio. Esse artifício levar a pensar que existe um Caminho de ida assim como um Caminho de volta. Neste sentido, é bom lembrar que este livro marcou o regresso definitivo do autor ao seu país. Foi o caminho de volta do Piglia à Argentina.





[i] A ideia de decadência na História Ocidental, de Arthur Herman, Editora Recorde, RJ, 1999 – pág. 14
[ii] Idem citado, pag. 14
[iii] Tradução livre do texto de Andrés Russo em 13 de novembro de 2013


Um comentário:

  1. Trata-se de um romance sobre tema atual- o terrorismo- e nele percebo uma crítica subjacente ao corpo docente universitário, mostrando vaidades e fraquezas de seus membros.
    Me afeiçoei especialmente à personagem Nina, a vizinha russa, baixa, idosa, ágil e enérgica, que tinha efeito "tranquilizador"sobre o personagem central e narrador, e ao mendigo que trazia um cartaz "Sou de Orion"e vestia uma capa branca abotoada até o pescoço. Eles dão graça e movimento ao livro.
    O estilo do autor é leve e bem humorado, com frases e descrições inspiradas:
    Como a do terrorista em seu Manifesto: "Para difundir nossa mensagem com alguma probabilidade de obter um efeito duradouro, tivemos que matar algumas pessoas""
    Ou:"Era uma senhora de idade, com a aparência levemente desequilibrada que sempre têm as mulheres que se dedicam a cuidar de gatos".
    Também: "Estava sempre pensando nos policiais de Imigrações e falava da "Migra"como se fosse uma bruxa desgrenhada de olhar ardiloso que não a deixava em paz".
    E "Os dois eram iguais, exceto pelo fato de um deles ter o cabelo muito curto, e o outro usá-lo como a moda daquela época (orelhas cobertas); os dois estavam de terno preto, camisa branca e gravata vermelha com alfinete no colarinho, mas um deles parecia muito elegante, ao passo que o outro estava vestido como um vendedor de Bíblia".
    O autor, argentino, retrata a realidade a norte-americana, com seus medos, sua violência, sua competitividade, tudo com maestria. Recomendo sim, é uma ótima leitura.

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