Por Claudine Duarte
Para começar, uma deliciosa confusão com a semelhança dos nomes dos protagonistas:
o poeta , a neve e a cidade. KA, Kar, Kars...
(Em turco, neve é kar)
Este
é um livro sobre preconceito e divisão. Divisão de ideias, de caminhos, de
futuros.
A
história se desenvolve durante a visita que o poeta turco, KA, exilado na
Alemanha, faz à fronteiriça (e distante) cidade de Kars, bem ao oriente e
isolada do resto do mundo por uma nevasca.
Durante
os poucos dias que o poeta transita por Kars, além de conviver com seus medos,
carências e sonhos, é levado a participar ativamente de um microssistema que
reproduz os conflitos étnicos, políticos, raciais e religiosos da Turquia.
Conspirações dentro de conspirações arrastam KA por núcleos de personagens
ressentidos, paranóicos e, por vezes, ingênuos.
A
neve, metáfora forte ao longo do livro para solidão e desolamento, em vários
momentos emoldurou momentos de luz, beleza e acolhimento. Como também inspirou,
com o desenho de seu fractal (p. 301), a organização dos poemas
de KA, em 3 eixos:
RAZÃO, MEMÓRIA e IMAGINAÇÃO.
Talvez, como a ponta de um fio que possa conduzir
à saída desse atormentador labirinto de intolerância criado por
fundamentalistas islâmicos e pelos secularistas na Turquia, ainda nos dias de
hoje. Talvez. Talvez Pamuk acredite que o conhecimento científico de Francis Bacon
tenha o potencial de restabelecer o “império do homem” sobre as coisas:
- Poesia, como a ciência da imaginação;
- História, como a ciência da memória;
- Filosofia, como a ciência da razão;
e
assim, quem sabe, poderemos – humanos, crentes ou não – nos libertarmos e
expurgarmos “ídolos” e preconceitos.
KA é
seguido pelo onisciente narrador Ohran, escritor que descreve os próprios
passos em Kars e Frankfurt à guisa de reconstruir os caminhos do poeta. Com
isso, guarda semelhança com o Gregorius de Trem Noturno para Lisboa em busca de
refazer os passos de Amadeu: uma vida que se justifica pela – e na –
interpretação de outra.
Essa voz do narrador e, que, nos últimos capítulos, é também personagem do livro, contribui com a trama ao anunciar e/ou denunciar futuros próximos:
Essa voz do narrador e, que, nos últimos capítulos, é também personagem do livro, contribui com a trama ao anunciar e/ou denunciar futuros próximos:
“Houve um silêncio
carregado de tensão, durante o qual Necip levantou seus belos olhos, um dos
quais, dentro de duas horas e três minutos, iria ser estourado por uma bala;
ele olhou para a rua escura para ver a neve cair devagar, como um poema.“(p.
131)
“Ele quis ter certeza de
que iria se voltar e lançar um último e demorado olhar a Ïpek na janela, por
isso ao chegar à rua adiantou vários passos em relação aos seus guarda-costas.
Quando ele se voltou, lá estava ela, qual uma estátua, à janela do quarto 203
do Hotel Palácio de Neve, ainda com o vestido de veludo negro de noite, os doces
ombros arrepiados por causa do frio. Banhada na luz cor de laranja da mesinha
de cabeceira, ela era a imagem de felicidade, uma imagem que KA manteria junto
a si nos quatro últimos anos que lhe restaram de vida.
Ele nunca mais a viu.”(p.
420)
Orhan
Pamuk escreveu o livro entre abril de 1999 e dezembro de 2001, ou seja, antes
de ter sido a 1a pessoa da Turquia a receber um Prêmio Nobel (em
2006). Vale ressaltar que, em 2005, foi processado pelo governo por ter se
referido, em entrevistas, ao genocídio contra o povo armênio durante a 1a
guerra mundial e teve que se defender de acusação por ter insultado a identidade turca.
A
viagem de KA a Kars não é acidental. Com seu casaco alemão, metáfora para uma
pequena concessão à visão ocidental do mundo, percorre as ruas brancas de Kars enquanto se (re)constrói no amor à bela
Ïpek e nas suas questões existenciais da crença (ou não) em Deus.
Alguns
personagens merecem notas:
1.
SENDAR bei, o dono do jornal da cidade, e também
redator que descreve os fatos antes que aconteçam para garantir a tiragem e
leitura da edição do próximo dia e que, às vezes, nem mesmo ele acredita no que
escreve...
2.
TURGUT bei, o recluso pai de Ïpek e Kadife e que
tem orgulho de ser democrata mas não abandona a razão: “Não basta ser oprimido, é preciso estar com a razão. A maioria dos
oprimidos está ridicularmente errada. Em que devo acreditar?”(p. 279) E é
utilizado pelo autor narrador para lhe dar um presente nas páginas finais: um
exemplar do livro Primeiro Amor, do russo Ivan Turgueniev – pasmem! Traduzido
pelo próprio Turgut... E isso depois de citar várias vezes sua admiração pelos
escritores russos e seus personagens melancólicos “tão cheios de virtudes, que não conseguem nada da vida.”(p. 13)
3.
NECIP, um dos estudantes secundaristas do
colégio religioso que esperava ser escritor de ficção científica e que inspira
KA a escrever e recitar seu poema O LUGAR ONDE DEUS NÃO EXISTE, com dúvidas e
certezas que nos remetem ao nosso Riobaldo, do Grande Sertão – Veredas:
“Um homem pode ficar
todas as noites na casa de chá e jogando com os amigos, pode se divertir tanto
com os colegas que não haja um só instante em que não estejam às gargalhadas,
pode passar todas as horas do dia batendo papo com seus amigos íntimos – mas se
esse homem abandonou Deus, ainda assim
vai ser o homem mais solitário do mundo.”, diz Necip p. 169
“(...) Com Deus
existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve.
Mas se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vaivém, e a vida é burra. É o
aberto perigo das grandes e pequenas hora, não se podendo facilitar – é todos
contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no
fim dá certo”, diz Riobaldo p. 76
Voltando a KA, o motivo inicial de sua viagem até a cidade de
Kars – o suicídio de várias mulheres jovens – vai se dissolvendo ao longo da
trama, sendo inconclusiva sua investigação. Talvez ele tenha ficado mais
intrigado com as descobertas, pois achou “estranhamente
deprimente que as jovens suicidas tivessem de lutar para conseguir um momento
de privacidade para se matarem. (...) Em suas fantasias, o suicídio era uma
cerimônia solene (...) levada a cabo sozinho; na verdade, toda vez que se
imaginava acabando com a própria vida, o que o assustara fora a indispensável
solidão do ritual.”(p. 25-26). E as jovens de Kars se matavam por
infelicidades que iam desde uma casamento forçado até por proibições do uso do
manto sobre suas cabeças. E prosseguiam desdenhando dos esforços burocráticos
do governo e seus cartazes surreais:
“OS SERES HUMANOS SÃO OBRAS PRIMAS DE DEUS,
E O SUICÍDIO É UMA BLASFÊMIA.”
E por falar em manto, “ele”, a falta d”ele” e a proibição
d”ele” perpassam todo o livro como algo que paira sobre a cidade ameaçando crenças,
descrenças e descréditos em Deus.
NEVE não foi um livro fácil de ler. Para mim, foi como
encontrar vários livros dentro do livro e ao “engatar” numa trama, tive que
sair seguindo outro personagem e, às vezes, fiquei sem saber algo – ficando com
um sabor desagradável de coisa incompleta.
Senti falta de profundidade no Azul, terrorista apaixonado
mais por si e por sua imagem de terrorista que pela causa que abraçava.
Considerei uma “amostra grátis” a história de amor e sexo entre Azul e cada uma das
duas irmãs – Ïpek e Kadife. Algo tão importante e
significativo na vida do poeta KA para ter sido tratado de forma tão marginal...
E, para quê e por quê, a morte (assassinato) de KA? Recurso
para permitir que Orhan entrasse em sua casa e remexesse em suas coisas e
também fosse passar uns dias em Kars?
Confesso que fiquei à espreita de que uma Melinda ou qualquer
outra prostituta apareceria com o Caderno Verde e o entregaria para Orhan. Quem
sabe, nua, sob o casaco alemão de KA... E aí sim, ouviríamos uma voz grave
lendo a frase de Browning que abre o livro:
“Nosso interesse vai
para a perigosa fímbria das coisas.”
Imaginei o trapalhão Sunay, mentor e ator do golpe no teatro e
de sua própria morte, protagonista de um livro nos moldes – não menos irônico –
do “Galvez, Imperador do Acre”, do brasileiro Marcio Souza.
Para a prisão de Muhtar bei, desejei um conto inteiramente
dedicado a temas dolorosos como tomada de consciência e vergonha.
“Ele viu mais alguma
coisa no olhar que seu amigo lhe deu, e que o acompanharia por muitos anos:
Muhtar achava que merecia a surra que estava prestes a levar. (...) Por favor,
quando me olhar nos olhos, não reflita a minha vergonha, devolvendo-a a mim.”(p.
82)
E por fim, quão pouco explorada a musa de KA que depois de separar uma terna
bagagem, se conforma e desiste de um futuro inexistente na Alemanha, arquétipo
feminino de infinitas toalhas jogadas precoce e repetidamente:
“Eu fiz o possível para
amar Muhtar, mas não adiantou. Eu amei Azul de todo o meu coração, mas de nada
adiantou. Eu achei que poderia aprender a amar KA, mas isso não deu em nada. Eu
sonhava com um bebê que nunca veio (...)”(p. 476)
Para
fechar, posso acrescentar que NEVE também poderia, mesmo com o pano de fundo da
divisão e da intolerância, ser interpretado como um livro sobre o Amor. O Amor de KA
por Ïpek, de Muhtar por Ïpek, de Ïpek por Azul, de Kadife por Azul, de Azul por
Azul, de Necip por Kadife, de Fazil por Kadife, de Sunay por Sunay, do Sheik
por Deus, de Deus por todos, com dúvidas, incertezas, trapalhadas, paranoias,
descaminhos, ilusões, esperanças, cisões, acertos e descompassos.
Destaco
a forma que o autor apresentou os capítulos com títulos e subtítulos que
lembraram páginas da minha infância com os livros de histórias árabes do Malba Tahan e de alguns contos sufi.
Orhan
Pamuk introduziu questões e algumas descrições que abriram interesse pelos
armênios e suas cidades esquecidas e abandonadas à força. O satélite do Google
Earth me levou por sobre as ruas de Kars e pela “cidade fantasma” Ani: espectral e envergonhante.
Recomendo?
Com restrições. NEVE é longo, lento, sem herói, sem saga, sem final.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirBreves Comentários por Virginia de Vasconcellos em março de 2014
ResponderExcluirNEVE
Autor: Orhan Pamuk
Editora Companhia das Letras, S. Paulo, 2006
Tradução de Luciano Machado
Concordo com a observação feita no grupo de leitura sobre a temática central do livro:
Trata da secularidade do iluminismo versus islamismo... e apresenta pontos de vista sobre outras ideias e pensamentos vizinhos destes, tais como ateísmo, religiosidade, suicídio, fé, paz interna, decadência do ocidente.
Concordo ainda com professores de Hopkins que afirmam que o ocidente conhece pouco da complexidade da cultura, dos valores e da história do Oriente Médio. (“Quando os Estados Unidos se metem num conflito, aderem a um grupo em nome da democracia, nem sempre o resultado é democrático”).
Por este ângulo, a novela, embora seja mais política que histórica, é copiosa de informações e, portanto, merecedora de leitura.
Entretanto, se quisermos saber sobre este tema superinteressante haverá de ter livros mais atraentes...
A narrativa do Orhan é arrastada, enjoada. Ao contrário da Alice Munroe, o texto não é conciso.
E o autor utiliza diálogos infindáveis e maçantes, com “perguntinhas” repetitivas:
-
... Posso lhe fazer uma pergunta?, ... Então responda a esta pergunta...
... Minha pergunta é esta...(pag. 52, 53...)
... Vc é feliz,me diga, por favor, vc é infeliz?...
... Então me responde uma coisa (pag. 102)
... “Vou lhe fazer uma pergunta: você é ateu? (pag. 105, pag. 99, pag. 349...)
... Fazil tem uma pergunta muito importante a lhe fazer (pag. 100)
... O que eu queria perguntar (pag. 103)
Parece inverossímil que nos poucos dias que Ka, o personagem principal, passa na cidade de Kars caiba tanta conversa, com tanta pergunta e tantas paixões alucinadas..
Também vale a pena salientar que o poeta Ka não atrai: “chorão”, ambivalente, ambíguo como quis o autor – fluido como um floco de neve – quase desmanchante.. Mesmo que seja considerado um “derxive, com eterna inocência”, ele é antes de tudo um chato. Falta enlevo e empolgação.
Portanto, até o ponto da morte do Ka, o livro é ”travado”, razão pela qual algumas pessoas o abandonam pelo meio. A meu ver, após a narração de sua morte, no Capítulo 29, a história fica mais interessante e o texto flui mais leve. (Lembrando que o total de capítulos é 44).
Para brincar um pouco, vale a pena introduzir polêmicas tais como:
Esta personalidade de homem fraco e ambíguo que o autor personificou no Ka (confundindo a sensibilidade de um poeta com a debilidade de caráter), leva a pensar que ele - Ka - não tinha capacidade de por em prática nem suas próprias decisões.
Daí surge um pensamento provocante: será que quem entregou o Azul não teria sido o Fazil? Este tinha tantas razões quanto o Ka para fazê-lo, pois a mulher por quem se apaixonara, a Kadife, também era caída pelo Azul. E Fazil também sabia o local do esconderijo. (Tchan tchan tchan tchan...)
Mas, afinal, não recomendo o livro Neve. Ou, recomendo com muitíssimas restrições.
Resta o fato mais importante: é que este livro, pela temática, me levou curiosa a consultar o excelente “A idéia de decadência na história do Ocidente“- do Arthur Herman - leitura importante, e a meu ver, este sim, recomendadíssimo.