de Alice Munro
por Ana Studart
Alice Munro é
canadense, nasceu em Wingham, Ontario, em 1931. Casou-se aos 20 anos e teve
três filhas. Durante muitos anos, foi apenas mãe e dona de casa. Já lançou 14
coletâneas de contos. Recebeu o Nobel de Literatura em 2013, e foi a primeira vez que um contista mereceu esse premio. Viveu no período da 2a
Grande Guerra, e um de seus contos, Trem, trata do tema, um soldado que
volta do combate ao encontro da noiva.
A escritora norte- americana Cynthia Ozick considera Alice
Munro a “Tchekhov da América”.
Certa vez Munro disse que seus contos seriam “tentativas”,
ensaios preparatórios para escrever um romance, mas agora percebe que o conto é
sua forma de expressão. Me pergunto se essa constatação tem alguma relação com a frase do conto Trem, onde o personagem Jackson pensa no livro do pai de Belle, intrigado, e se pergunta “por que alguém ia sentar e fazer outro livro, no
presente. Hoje”.
Em Vida
Querida, seu último livro, Alice
Munro apresenta 14 contos – alguns deles, mini-romances. Os quatro últimos são relatos autobiográficos, classificados como Finale – porque, palavras dela,
são “as primeiras e as últimas – e as mais íntimas – coisas que eu tenho
a dizer sobre a minha vida”.
Seus personagens:
Munro cria nesses contos mulheres que vivem situações típicas do universo
feminino, como Greta, casada, que
se sente atraída por Greg e Harris em detrimento da filha que a acompanha em
viagem; Vivien que trabalha como
professora numa instituição para tuberculosos, e vai se deixando dominar e
envolver pelo chefe, que foge no dia do casamento; Belle, que é abandonada pelo
parceiro no momento em que enfrenta um câncer; Corrie, uma deficiente física
que se envolve com um homem casado e são chantageados por uma ex-empregada de
Corrie.
Mas Alice Munro não se considera feminista e não aceita o rótulo.
“Nunca penso se sou ou não” , E justifica dizendo que as mulheres que descreve
não são vítimas - a despeito de personagens como Vivien e Belle.
Seu estilo é simples e singular. Simples porque Alice Munro fala de coisas do cotidiano, da
vida comum, e singular porque não
desvenda seus enredos com nitidez: eles vão evoluindo e vamos tentando
adivinhar onde aquela história vai desembocar. São pedaços, momentos da vida, onde os desfechos, quando existem, quase sempre
ficam subentendidos.
Sua narrativa não é
sempre linear: Munro brincou certa
vez, dizendo que um conto não é uma estrada pela qual se segue, mas um casa
desconhecida onde se entra e se descobre quartos e corredores, quase um
labirinto em que o narrador busca o sentido do núcleo familiar.
O PDV é por vezes do
narrador, onisciente, por vezes de algum dos personagens.
O acaso ( ou seria o
destino?) parece guiar seus contos e seus personagens
– e esse, para mim, é o traço maior do livro. Seria ele a
determinar o rumo de nossas vidas?
No primeiro conto, “Que Chegue ao Japão”, (PDV onisciente), há um trem que não se sabe o
destino, com Peter carregando uma
mala para a viagem de duas passageiras, Katy e Greta - e de início nem fica
claro qual é a filha e qual é a esposa dele. Vai se percebendo com o desenrolar
da história, que segue envolvendo desejos e conflitos, e idas e vindas: numa
festa de escritores, Greta bebe demais e volta para o hotel de carona com
Harris. No trem para Toronto casualmente se envolve com Greg, e na chegada à
estação Harris, a quem avisara da chegada por correspondência, a recebe com um beijo.
O melhor exemplo do acaso que conduz os contos de Munro é o “Trem”, ( PDV
do narrador) onde se tem um personagem que salta de um vagão em movimento antes
do seu destino final e é acolhido por uma noite em troca de serviço por uma
desconhecida. Os consertos na casa se sucedem e o tempo passa até que Belle
enfrenta um câncer, ele ouve no hospital a longa história sobre o pai de Belle que pedia repetidos perdões
não se entende porque e depois morre se deixando atropelar por um trem. Alice
Munro sugere dois motivos para os pedidos de perdão e o suicídio: com a esposa
doente, ele freqüentava prostitutas; e encarou Belle nua no banheiro, o que
teria mudado a relação entre pai e filha. O impacto desse relato de Belle
destrói o laço que a une Jackson e
ele a abandona no hospital com um “A gente se vê amanhã”.
Jackson vaga ao acaso
pelas ruas, ajuda o proprietário de um prédio que lhe pede que cuide por
instantes da portaria, e mais uma vez vai ficando. E então a história nos
surpreende com uma volta ao começo,
quando Ileane, a noiva que ele ia encontrar se não tivesse pulado do
trem, por acaso chega
ao prédio onde Jackson trabalha. Ele a reconhece só pela voz e aí vem o
feedback: eles tentaram fazer sexo antes dele seguir para a guerra, mas Jackson
não se sai bem. Em posterior relação, o desastre se repete. Fica subentendido
que sexualidade seria uma explicação para a vida errante de Jackson.
Ele pensa no final em procurar a antiga noiva, mas acaba pegando um trem para
procurar trabalho numa cidade madeireira.
No conto “Corrie”, (PDV onisciente) a personagem teve
pólio e se relaciona com um homem casado. Chantageada, Corrie paga mensalmente
para não ter o romance desvendado. Quando a chantageadora morre, a narrativa
fica reticente: “Ela (Corrie) sabe de alguma coisa. Descobriu enquanto dormia.
Não existe notícia alguma para dar a ele. Não existe, porque nunca
existiu”. O que ela
descobriu? Que quem recebia o
dinheiro era o amante? Ou seria o amante que teria matado a chantageadora? O
que Munro quis dizer com a mensagem de Corrie: ”Lílian morreu. Enterrada
ontem”. E a resposta: “Tudo bem agora, fique feliz. Breve.” Fique feliz porque
o problema acabou ou porque não se verão mais? E esse breve, significa que eles se encontrarão em
breve?
Em “Com Vista para o Lago” ( PDV onisciente) Nancy, que está perdendo a memória, tenta pegar uma
receita, mas a médica estava de folga e lhe indicaram esse especialista numa
cidade próxima.... Ela esquece o nome do médico e depois de vagar ao acaso pelas
ruas da cidade, acaba trancada dentro
de uma Casa de Repouso, onde vira paciente.
No conto Dolly, (
PDV de Dolly) é o cotidiano que prevalece - junto com o acaso. Uma
história banal, clássica, de ciúmes. Um casal idoso e bem ajustado planeja a
morte, quando é sacudido pela chegada de uma vendedora de cosméticos que se revela antiga namorada de Franklin. Ironicamente ela é introduzida na vida
do casal pelas mãos de Dolly que, enciumada, sai de casa, escreve e destrói varias cartas, envia
uma, depois se arrepende e volta para o marido. O final é quase feliz, não
fosse o medo de Dolly de que Franklin recebesse a carta que ela finalmente havia postado.
No Finale, Munro
fala de suas desventuras. São narrativas autobiográficas, onde ela confessa seus pecados, como o desejo infantil de matar a irmã em Noite:
“A idéia estava ali e balançava na minha cabeça. A idéia de
que eu podia estrangular a minha irmã mais nova, que dormia na cama embaixo da
minha e que eu amava mais do que qualquer pessoa no mundo.” Com sono intranqüilo, encontra o pai
também insone, e conta seu medo. O pai a tranqüiliza- a gente as vezes tem esses pensamentos. “Naquela manhã que
nascia ele me deu exatamente o que eu precisava ouvir e o que eu logo
esqueceria”.
Em O
Olho, com 5anos, relata o trauma de ser obrigada pela mãe a ir ao
funeral de uma empregada da casa, a quem era muito ligada. A mãe a força a se
aproximar do ataúde, e ela acredita que a morta piscou para ela.
Em Vozes,
Munro retrata a mãe como uma mulher ambiciosa e rigorosa que “não era estimada”
e para quem a vida que vivia “não era o bastante, não tinha lhe dado a posição
de que gostaria.”. Nesse conto Munro também confessa sua carência afetiva aos
dez anos e o desejo de ser amada como a Peggy da festa seria pelos rapazes que
a consolavam. Em suas fantasias, “As mãos deles abençoavam minhas próprias
coxas magrelas e as vozes deles me garantiam que eu também era digna de amor”.
Em Vida
Querida, que dá nome ao
livro, Munro jovem descreve a vida dura de casada com dois filhos no momento em
que a mãe ficou doente e morreu. Ela não foi ao sepultamento e não dramatizou o
episódio, embora admita que se sentiu culpada. Mas se perdoa, e conclui: "Perdoamos o tempo todo".
Sua forma vaga de escrever, deixando conclusões
subentendidas, torna intrigantes os contos de Munro. Seu texto produz frases de efeito, como a mãe de Belle, que
não estava “exatamente muda, porque conseguia formar palavras, mas tinha
perdido boa parte delas. Ou elas que a tinham perdido” (pág 185).
Ou quando ela descreve os pés descalços de Neal em Cascalho: “aqueles pezões com cara de indefesos”. ( pág 106)
E depois a mensagem,
também em Cascalho ( pág 110):
“o negócio é ser feliz, ele disse. Apesar de tudo. Só tente. Você consegue”.
Que se completa com a frase final do livro, em Vida Querida: ”Nós dizemos certas coisas que elas não podem ser
perdoadas, ou que nunca vamos nos perdoar. Mas perdoamos- perdoamos o tempo
todo.” Se perdoar para ser feliz?
Munro declara que esse é seu ultimo livro, mas já disse isso
em outras oportunidades e voltou atrás. Ela explicou para a revista New Yorker
porque mudava de ideia: apesar do “estranho desejo de ser ‘mais normal’” e “de
fazer as coisas com mais calma, logo vem a inspiração”. Mas acrescenta: “No
entanto, desta vez creio que é de verdade. Tenho 81 anos (agora 82) e me
esqueço de alguns nomes ou palavras comuns…”
Fiz a leitura dos contos de Alice Munro quase sempre com prazer, e admirei a maneira singular como conduz personagens e enredos, mas o livro não me conquistou a ponto de desejar ler outras coletâneas da autora. Recomendo com restrições - apenas a quem gosta de contos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário