quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O Centésimo em Roma

de Max Malmann



por Ana Studart


O CENTÉSIMO EM ROMA é um romance de Max Malmann, escritor premiado e conhecido roteirista de “A Grande Família”, que alia história, ficção e suspense policial.

O livro relata, fundamentado em extensa pesquisa da Roma Antiga, a saga do valente centurião Desiderius Dolens, que, nascido em berço pobre, na Suburra, sonha um dia ser cavaleiro, por mérito ou por compra do título.
Esse personagem mistura brutalidade e doçura, coragem e medo, hipocondria, ironia, sarcasmo, rabugice e bom humor, além de uma quase total ausência de escrúpulos – digo quase, porque o episódio da distribuição com sua tropa do dinheiro surrupiado dos cristãos o redimiu um pouco dessa falha de caráter. Apesar de tudo, ao fim do livro vi Desiderius Dolens como um verdadeiro (anti)herói.


PDV:

O narrador é Nepos, suboficial assistente (optio) de Dolens. Descende da nobre família Trebélia, mas renuncia a tudo para se tornar legionário e ser admirado por seus próprios méritos. A narração acontece de duas formas: na terceira pessoa onisciente, quando Nepos relata o presente, e na primeira pessoa, quando Nepos descreve o que acontecera anos atrás. São colocados em capítulos separados e diferenciados por tipos de letra de tamanhos diferentes.


O Título

Para o título, Malmann se inspirou na frase de Julio César, escrita por Plutarco “prefiro ser primeiro numa aldeia do que o segundo em Roma” e outra de Machado de Assis, cujo personagem do conto “Um Homem Celebre” diz se satisfazer em ser o “o centésimo em Roma”. Dolens se satisfaz com o título de cavaleiro.


A Estrutura

O romance está dividido em cinco livros, que se subdividem em capítulos, de modo geral bem curtos, o que dá dinamismo `a leitura.
Achei interessante a diagramação dos dois textos, o atual e o passado: a ficção com tipo maior, e os “documentos históricos” com tipo menor, com trechos do Vita Dolentis de Trebellius Nepos. Até agora estou sem saber em que medida esses documentos são fieis a um texto original.
(O próprio Max Malmann, em entrevista de 24 de julho de 2010 compilada em seu blog, diz que o sebo Nova Roma existe, a Roma do século I existiu, e o carcomido exemplar da Vita Dolentis é tão tangível quanto os bytes que digita...)
De qualquer forma, creio que o autor não pretendeu relatar uma obra histórica fiel, e sim uma visita à Roma antiga com o olhar do século XXI- é quando identificamos no livro a miséria, o suborno, a ambição, a traição, a injustiça, a adulação, o autoritarismo e a corrupção existentes nos nossos dias – e em todos os tempos. Há espaço também para o homossexualismo, bissexualiamo, e uso de drogas- o cânhamo.E tudo foi proposital, como confirma o autor:

“Quis apenas sugerir que a História da Humanidade, alem de cíclica, é ciclotímica”

Quanto ao paralelo entre as potências Império Romano e os Estados Unidos, Max Malmann sugere um talvez, dizendo que nunca quis fazer uma comparação direta entre as guerras santas dos romanos contra cristãos e dos norte americanos contra extremistas do Islã.

O Enredo

O Centésimo em Roma conta a história do período entre 68 e 70 d.C, tempo da guerra civil conhecida como O Ano dos Quatro Imperadores, em que Roma teve uma sucessão de Césares, todos golpistas e emocionalmente desequilibrados, a começar por Nero e seu fascínio pelo fogo, passando pela figura estropiada de Galba, por Otho com suas perucas, e terminando com Vitellius. (Ao fim do livro o autor diz que os retratou de acordo com descrições feitas por Tácito, Suetonio, Plutarco. Parece que eram assim mesmo! )
O livro é recheado de amores, assassinatos e crenças religiosas, formando várias histórias sem que nenhuma seja central. Mesmo o assassinato do senador Trebellius Longinus poderia não existir no livro, sem qualquer prejuízo. O centro do romance é mesmo Desiderius Dolens, que passeia por esses cenários de turbulência política na Urbe de Roma, servindo à autoridade do momento que melhor lhe convém.
A história é boa e bem desenvolvida.
Duas reviravoltas surpreendem o leitor: o Episcopus, o procurado e perseguido Papa cristão, é o pai de Dolens que ele acreditava morto e por quem se endividou para fazer o funeral.
Surpresa final: Dolens, depois de tentar por todos os meios a sua ascenção social, por um acaso fortuito foi nomeado tribuno comandante pelo imperador Otho, (que sempre troca o nome de Dolens por Valens), o que o eleva à condição tão sonhada de cavaleiro.

Os Personagens:

Como sou grande admiradora dos romances de ficção histórica escritos por Marguerite Yourcenar, “Memórias de Adriano”, e “A Obra em Negro”, a princípio estranhei a forma divertida de apresentar diálogos e situações de Max Malmann.
Mas pouco a pouco fui me afeiçoando a Dolens, o carniceiro de Bonna, com sua visão por vezes romântica, por vezes ácida da vida; de Marusia, a germânica que virou uma romana “albina”e tinha o “nome impronunciável”de Galswinth; dos desvelos da mãe, Moderata; do baixinho Nepos, manquitolando com sua bengala, um aristocrata culto que fala grego e renunciou a seus privilégios para se tornar legionário e a quem Dolens castiga sempre com a humilhação de limpar as latrinas da Casta Pretoria, por um prazo que pode ir até as calendas gregas - tarefa que ele cumpre sempre com “estoicismo”; do centurião Julius Atticus, com suas pupilas tortas; e do legionário burrinho Murcus, estendendo o braço na saudação dos romanos, em “Ave!” e irritando Dolens: “Sempre que você me saúda como se eu fosse um nobre, sinto vontade de decepar o seu braço”; do jovem tribuno Domiciano, sobrinho do senador Nerva, protetor de Dolens, que tem por hobby caçar e mutilar moscas, e que mais tarde se torna o imperador César Domiciano Augustos.

Os imperadores recebem qualificativos marcantes: Nero, o “desbrioso”, qualificado como “matricida”, “glutão e tolo” que assassinava a “arte com sua cítara; Sulspicius Galba, um homem “idoso”, “viúvo” e “avarento, que foi imperador “sem pertencer à família dos cesares”, como observa Murcus, evidenciando o pragmatismo de Dolens: “Se ele ordenar que o saudemos como Galba César, nós o saudaremos como Galba César”; Marcus Salvius Otho, salvo do suicídio por Dolens , franzino, baixinho, de saltos, beirando o ridículo, escolhia seus escravos pelos cabelos, para transforma-los em perucas que escondiam sua calvície e lhe caíam da cabeça. Amigo de Nero, casou-se com sua paixão, Popeia, para dá-la a Nero como amante. Em Otho viviam dois homens: “um faminto de glória, outro destinado ao fracasso”..
Vale comentar o brinquedo de Domiciano, um anão indonésio chamado Turpis ( feio), que também dá tempero ao humor do livro.
O romance tem uma infinidade de personagens com nomes que acreditei serem colhidos da antiguidade, para ao fim descobrir, por exemplo, que o sobrenome do (anti)-herói Dolens teve por inspiração o Doyle do autor de Sherlock Holmes, o som das palavras dólmã (roupa militar) dólmen ( titulo megalítico), e golem, do folclore judaico e, para meu espanto, até o nome de Mickey Dolenz, da banda The Monkees!
E Desiderius, claro, vem do desejo....
Foi de grande sabedoria o autor colocar um dicionário de nomes ao final do livro, para que pudéssemos relembrar os personagens ( eu sempre confundia Vitellius com Vespasianus, por exemplo...)
Em resumo, os personagens principais foram bem estruturados e me pareceram todos bem verossímeis.

A Ambientação

O Centésimo em Roma retrata o povo romano e agregados, incluindo césares, senadores, cavaleiros, legionários, centuriões, prostitutas, vestais, punguistas, agiotas, curandeiras, homossexuais e uma grande horda de miseráveis, com suas habitações e palácios.
Estão nele as vielas de lama, os quartéis, o espaço de torturas ( conveniente chamado de Domus Doloris), o Fórum; o Múnus Vestae, a taverna sórdida da Suburra; a suntuosidade extravagante do Domus Aurea, palácio construído por Nero “às custas do Tesouro Público”.
Nessa Roma convivem “germanas tatuadas, asiáticas de pele amarela, egípcias acobreadas, númidas cor da noite, iberos hirsutos, gregos depilados, capadócios de longos bigodes”, etíopes, germanos, judeus, cristãos, aristocratas, plebeus, legionários; vestidos em túnicas de seda, linho ou lã, guerreiros em cotas de malha feitas de anéis de ferro, com elmos, cinturões e botas com cravos na sola.
Embora o autor não se detenha em descrições minuciosas de cenários, o livro nos passa uma imagem bem convincente de como seria viver na Roma no século I d.C. Era como se eu acompanhasse Dolens em seus caminhos pelas vias da Roma antiga. Quase senti aquele cheiro de “molho de peixe, suor e esgoto” da cidade, que Dolens tanto curtia.

Peculiaridades

O próprio Max Malmann relata suas singularidades ao final do romance, lembrando aqueles making of que vem junto com os DVDs.
Ilíada de Homero, Eneida de Virgílio, Édipo Rei, Evangelho, discurso do inglês Chamberlain, Churchill, citações de Shakespeare, Machado de Assis, todos de alguma forma foram inseridos no livro, como confessa o autor. Reconheci com prazer no capitulo XLII do livro Quinto semelhanças com O Incrível Exército de Branca Leone, um dos meus filmes prediletos.
A denominação das cidades é similar à atual: Bonna é a alemã Bonn, e daí por diante.
Descobrimos que a tabula é jogo antecessor ao gamão!
E o “toque”de Max, de sempre iniciar um parágrafo com letra diferente do anterior.
Também construiu versos em dodecassílabos, pelo prazer de faze-los. E assim por diante.

Conclusão

Demorei algumas várias páginas para me adaptar ao ritmo do livro, que me pareceu lento, no começo. Comecei a curtir mesmo a partir do Segundo Livro. Estranhei também, como já disse, o vocabulário com expressões e palavrões atuais.
Os textos em grego eram dispensáveis ou, no mínimo, pediam uma tradução.
O que dá leveza à leitura são os diálogos, muito bem colocados, em geral com humor.
Saboreei especialmente o capítulo XXVIII do Líber Tertius, onde se discutem dogmas cristãos- como o Pai, o Filho e o Espírito Santo formam um único Deus, quando o entendimento era de que deveriam ser três, e seriam equivalentes a Júpiter, Apolo e Mercúrio?
Ou o comentário de Dolens ao saber por Anacletus que não havia orgias nos cultos cristãos:”É incrível que uma religião tão desprovida de atrativos conquiste tantos adeptos”.... E ainda: ”esse deus supostamente único é o pai que deixa o filho morrer na cruz, é o filho que voltou dos mortos, ou é o fantasma voador?”... “você não poderia ter escolhido uma religião menos confusa?
Salta aos olhos o paralelo (jocoso, acredito) feito entre o comunismo e o cristianismo, quando Dolens diz que os cristãos comem criancinhas...
Exemplo de humor: Qual a diferença entre nós e os bárbaros? pergunta Nepos, depois de uma carnificina. Resposta de Dolens: nós fazemos a barba.
Ou a incrível história do boi subversivo que falava mal do imperador, capturado por Dolens e torturado em interrogatório.
A impressão que me fica é que Max Malmann, a despeito do extenso trabalho de pesquisa, se divertiu muito ao escrever esse livro - e eu também me diverti lendo o romance dele.
Há a possibilidade de que o estilo irreverente de seu texto acabe desmerecendo a pesquisa minuciosa que o livro apresenta, mas esse é uma questão para o autor.
Recomendo a leitura, com certeza. O livro é muito bom.

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