Por Maria Virginia de Vasconcellos em Outubro de 2012
A história se passa no início dos anos 70, numa Inglaterra em crise, com
greves e atentados do IRA, numa Londres bagunçada, com ruas imundas e
racionamento de energia.
É contada pela personagem principal, na primeira pessoa do singular,
pela jovem Serena, que relata nos primeiros capítulos o início de sua vida, sua
infância como filha de um religioso, até ingressar no MI5-Serviço de Segurança
Doméstica Britânico, sob a influência de um namorado maduro.
A narrativa prossegue com Serena recebendo a tarefa do MI5 de cooptar
e financiar um escritor – sem que ele tome conhecimento – oferecendo generosos
subsídios de uma fundação cultural que é uma mera farsa. A intenção é usar
intelectuais europeus na divulgação de idéias
anticomunistas, prática do serviço secreto.
É fácil prever que Serena vai se apaixonar pelo simpático escritor e
que esse segredo vai dificultar e envenenar a relação amorosa que surge entre
os dois. O difícil é imaginar o que vem depois e o final surpreendente e
sofisticado dessa obra.
Na sua maturidade, aos 64 anos, o Ian McEwan parece ter consciência de
onde quer levar o leitor. Cada frase faz sentido e a estrutura do texto é
lógica e coerente. Embora ele misture duas palestras enormes e entediantes
realizadas no MI5, que ameaçam estragar a narrativa, não conseguem, porque ao
fim das palestras ele nos surpreende ou com uma Shirley Shilling soltando um
palavrão ou com uma reviravolta no contexto.
Ele também insere vários contos do escritor Haley – ocupando de 5 a 10
páginas cada um - mostrando ter uma
imaginação fértil na caracterização de personagens paralelos que, afinal, no
último capítulo vão ser utilizados e integrados na história principal de forma ardilosa
e brilhante. Portanto, apesar desses contornos ou desvios, o McEwan não perde a
linha mestra da narrativa até chegar ao seu apogeu ao final do livro.
Para quem já leu – Reparação
(Atonement) – sua publicação mais conhecida - ou assistiu ao filme Desejo e Reparação – que é baseado nesta
ficção, sabe que McEwan é capaz de viradas inspiradoras que envolvem e aliviam
o leitor. Aliás, ele é fiel ao leitor. Utilizando suas palavras em Serena (pag. 234 dessa edição), parece
haver “um contrato tácito com o leitor,
que o escritor deve honrar. Nenhum elemento de um mundo imaginário e nenhum de
seus personagens deveria poder se dissolver por causa de um capricho do autor.
O inventado tem de ser tão sólido e consistente quanto o real.”
E o real é muito sólido neste livro. A ficção tem como entorno fatos
reais.
O contexto da cultura do segredo - vivenciado pela Serena– em
contraposição à cultura da transparência -
é assunto em voga na atualidade, ainda que apareça com a marca muito
mais forte da ideologia antiterrorista do que anticomunista. O MI5 (Military Intelligence, Section 5) é um
serviço britânico que existe até hoje e marcou seu centenário em 2009, embora
tenha adquirido nomes diferentes no decorrer do século passado. Portanto, os
burocratas Serenas e Greatorex continuam
existindo na atualidade.
Pela Wikipédia, sabe-se que a informação mantida pelo MI5 está imune à
publicação e abertura (pela Seção 23 da Lei
Freedom of Information Act/2000). No ano de 2006, houve acusações de que o MI5 estaria guardando 272.000
arquivos secretos individuais – equivalente a um em 160 adultos de UK – sendo que algumas dessas fichas sigilosas, dizem
respeito a cidadãos que não ameaçam o país, na visão de alguns políticos. [1]
Enquanto isso, é curioso lembrar que o mundo tem caminhado em direção
oposta, para o lado da cultura da transparência: existem hoje 96 países com
legislação garantindo o acesso à informação controlada pelos governos (dado de
julho de 2012). Nos últimos cinco anos do século XX, formou-se uma onda de legislação
de transparência, com 40 países seguindo o exemplo dos pioneiros Finlândia,
Estados Unidos e Dinamarca. O Brasil
introduziu, recentemente, em novembro de 2011, uma lei vigorosa (LAI no.
12.527, de 18/11/12) e passou a pertencer a esse grupo da busca da
transparência. Numa comparação internacional, o sistema brasileiro de acesso à
informação situa-se numa posição mediana, dois graus abaixo de United Kingdom.
(Global Right to Information Rating:
rti-rating.org).
Voltando ao autor McEwan, segundo a resenha do Serena publicada na revista Veja[2],
ele afirma que ”Todos os romances são de
espionagem”. Ele expande o sentido do termo espionagem acrescentando: ”Romances investigam o que deixamos em
segredo, o que resguardamos na intimidade. Em qualquer relacionamento, há
coisas que escondemos, que não dizemos diretamente. Estamos todos envolvidos no
controle de informação”. E, há 20
anos, Ewan publicou um romance estritamente sobre espionagem – O Inocente – ambientado na Berlim
dividida da Guerra Fria. Em Serena
ele está, portanto, retomando o tema. Na verdade, no sentido amplo, parece que
a investigação sempre está presente em seus romances.
Vale a pena estender ainda mais o sentido do termo investigação para abarcar a pesquisa da
história real que o autor realiza para compor seus personagens. Quando McEwan
coloca na boca do Pierre, o agente da CIA lotado em Londres, que vai ao MI5
fazer uma palestra sobre a guerra fria - a guerra das idéias como dizia, a
descrição do evento da Conferência
Cultural e Científica pela Paz Mundial (que nome singelo!) ele evoca um
fato real. Dedica três páginas a descrever o episódio de confronto entre
intelectuais, acadêmicos, escritores, músicos em torno das ideologias e, em
especial, a atuação do compositor soviético Chostakóvitch, não dissidente:
segundo McEwan, todo o ambiente foi financiado pelas agências de ambos as lados.
Esse mesmo episódio, ocorrido no Waldorf Astoria, em Nova York, é esmiuçado
pelo escritor Alex Ross, no capítulo Admirável Mundo Novo: a guerra fria e a
vanguarda dos anos 50 num livro[3]
que trata da história da música contemporâneo-erudita no século XX e de suas
relações com o mundo ao redor.
Os dois autores divergem em alguns detalhes, por ex. o Ross indica a
data do acontecimento em março de 49, enquanto o McEwan o localiza nos anos cinquenta.
Contudo, ambos destacam a participação dos intelectuais de diferentes
correntes, “Artistas americanos de
esquerda de todas as tendências e disciplinas se reuniram no Waldorf para
saudar suas contrapartes soviéticas”. Segundo Ross, “A maioria dos que compareceram não sabia até que ponto o evento havia
sido arquitetado pelos propagandistas soviéticos”.
Enfim, a midia da época teria
publicado interpretações diversas sobre “uma
das primeiras grandes batalhas de propaganda da Guerra Fria cultural” e, em
especial, sobre o discurso de Chostakóvitch, orientado/ordenado pelo Kremlin a
criticar compositores dissidentes (em especial Stravinski e Schoenberg) como
modernistas reacionários.
O fato é que McEwan utilizou um episódio real para caracterizar o seu
personagem da CIA que, por sua vez, discursava para influenciar a amestrada
burocrata Serena, figura principal da sua ficção. E apesar desse volteio, o
autor se mantém na trama sem perder o fio condutor.
Por último, este livro abre a porta para reflexões de cunho pessoal,
sobre opções de vida, sobre influências recebidas, sobre erros e acertos nas
escolhas profissionais e sobre as sombras ideológicas que perseguem as idéias e
a sociedade. Por tudo isso, recomendo o
livro principalmente para os que gostam de romances que têm sustentação em
acontecimentos verdadeiros, que misturam ficção à realidade.
ResponderExcluirSerena de Ian McEwan
Serena trata de traições, intrigas e amor, com humor e insight., com Ian McEwan mostrando conhecer bem a mente humana.
É um livro de espionagem branda, fácil de ler, com alguns trechos que se tem vontade de que fossem mais curtos, e que tem seu ponto alto apenas no final.
Na verdade, só se compreende o livro quando se chega ao fim da leitura e se descobre que na verdade Tom é quem está narrando.
Serena é um personagem muito bem montado, imagino se não a conheceu de verdade e se o livro não é uma vingança por algum tipo de mentira que alguma namorada tenha dito - em outro contexto, claro. Inclusive porque esse é o primeiro livro que escreve no feminino. Há quem diga que ele não vestiu bem a pele de mulher, mas eu discordo.
Gostei da inclusão de textos dentro do bojo da novela e do uso disso para antecipar perfil de personagens como o Tom. Como li algumas resenhas, vi que alguns entenderam isso como uma forma de cutucar críticos literários. Pode ser.
Novela ambientada bem na Londres de 1970, com boas descrições da Guerra Fria e do MI5, o Serviço Secreto Britânico. A boa ambientação da novela dá credibilidade à leitura.
Gostei do livro, que atende bem ao que o autor se propõe.
Eu o recomendaria como uma leitura leve, que distrai bem, mas sem ser uma peça de relevo literário. Sob esse aspecto, Serena recebe o meu 9.
Ana Studart