terça-feira, 8 de outubro de 2024

A menina de Milão

ou LÍNGUAS, de Domenico Starnone

por Claudine M. D. Duarte

 

O autor, Domenico Starnone nasceu em Nápoles, em 1943. Publicou seu primeiro livro aos 42 anos e é autor de romances, além de roteiros, peças de teatro e artigos. 

“O banal é a superfície à qual nos acostumamos, mas se a gente arranhar aparecem coisas incríveis. O banal é um modo de não contar, de estacionar as coisas. O trabalho de um escritor é mostrar que o óbvio não é tão óbvio”, afirma Starnone, que, embora quisesse ser escritor desde a adolescência, se dedicou ao ensino. Nos anos setenta, começou a escrever no jornal IlManifestocolunas sobre o cotidiano na escola e isso representou o detalhe banal em sua vida: “Agora não sei se sou um professor ou um escritor”. Em 2001, recebeu o Prêmio Strega e dele, já temos publicados 5 (cinco) livros pela editora Todavia, todos traduzidos pelo Maurício Santanna Dias: Laços (2014), Assombrações (2016), Dentes (2018), Segredos (2019) e Línguas (2021).

Confesso que a tradução, aqui no Brasil, dos títulos de seus romances me incomoda e partilho aqui os títulos originais e, para comparação, como foram traduzidos para o inglês: 

·      Laços, Lacci, Ties 

·      Assombrações, Scherzetto, Trick

·      Segredos, Confidenza, Trust

·      Línguas, Vita mortale e immortale dela bambina di Milano, The Mortal and Immortal Life of the Girl from Milan

O título escolhido pelo autor confere um peso maior à existência da “menina de Milão” na vida do narrador que o foco nas várias línguas ou dialetos adotados pelos personagens. Como em romances anteriores, Starnone, opta pela narração em primeira pessoa e a defende afirmando que 

“a narrativa do eu é sempre uma investigação sobre a nossa turbulenta clausura existencial e sobre as interrogações que derivam dela. Como realmente somos? Bons, maus, corajosos, vis, infiéis, inteligentes, estúpidos? Sou a peça de qual quebra-cabeça? Amo, sou amado de volta, ajo em prol do melhor, sofro, provoco sentimento? E, posto esse frágil eu, o outro como é? Melhor que eu? Pior que eu? Os neurônios-espelho não nos ajudam muito. Todo realismo não pode senão narrar os desvios e as inclinações do que se choca em outros eus.”

Assim percebi construído esse livro, com desvios e inclinações do narrador, Mimi, que, ao encadear lembranças, reflexões existenciais e eventos aparentemente banais, vai se descobrindo nas relações com outras pessoas. 

A trama tem Nápoles como cenário e nos traz cenas da infância do narrador, com destaque para o relacionamento com dois personagens: a avó materna, que, apesar de ter outros netos, demonstra predileção por Mimi e Lello, um amigo da mesma idade. Uma garota se muda para o prédio da frente e, em sua sacada, ela dança, conquistando os dois garotos que chegam a ensaiar duelos para terem direito à “milanesa”. O encantamento de Mimi com “a menina de Milão” não se resumia à sua dança, mas também às frases em italiano que a escutou pronunciar. Aquela língua harmoniosamente falada era muito mais bela que o dialeto napolitano de sua família. Descreve breves, porém profundos diálogos com a avó sobre Amor e Morte, constrói fantasias sobre o mundo dos mortos e se compara a Orfeu resgatando a amada do mundo dos mortos.

“... se algum dia pudesse lhe falar, que ela soubesse – uma palavra puxa outra – que eu estava apaixonado por sua bela alma e que meu amor seria eterno, e que, se ela fazia questão de dançar no parapeito e cair lá embaixo, depois poderia contar comigo com certeza, pois eu iria pessoalmente buscá-la no além-túmulo, sem jamais fazer a bobagem de me virar para olhá-la.”

Ao inserir o mito de Orfeu* em sua narrativa, Starnone nos proporciona uma deliciosa história de um amor (quase) eterno. Lello conta a Mimi que a garota faleceu, afogada e aí se dá o fim da ‘vida mortal da menina de Milão’. A amada, mesmo morta, viveria (vive?) nas memórias do amante. Dez anos depois, já na universidade, estudando Letras, o narrador é atraído por um curso de Glotologia pois se interessa pelas línguas em geral e as poucas palavras que escutou a milanesa pronunciando voltavam à sua mente, com direito a imagens invadindo seus sonhos.

“Talvez tenha sido a imagem do Vesúvio exterminador; talvez a ideia de que em nosso planeta há continuamente decessos de indivíduos e extermínios em massa tão intoleráveis que até os deuses se lamentam de os terem permitido; talvez só o fato de que eu tinha a cabeça cheia de formulas literárias e buscava boas ocasiões para usá-las. (...) E, no italiano apaixonado que falávamos entre nós, concluí muito acima do tom deste modo: quase tudo daquela menina agora se perdeu, por isso hoje, enquanto o professor dava aula, senti que a milanesa e sua voz se conservaram em minha cabeça como num papiro carbonizado que uma máquina – uma espécie de autômato do século XVIII – desenrola com delicadeza, restituindo-me a história do tumultuoso primeiro amor. (...) misturando o Vesúvio, Pompeia, Herculano e uma menina milanesa, era capaz de organizar um apocalipse pessoal e médio-baixo.”

Com maestria, o autor mescla a presença da ‘menina de Milão’ na vida do narrador e o papel fundamental exercido por sua avó, Anna. Isso me encantou. Como no livro Assombrações, Starnone descreve algumas pinceladas de crueldade que as crianças são capazes de ter com seus avós e ao mesmo tempo, retrata uma vida afetiva que desvenda histórias do passado e resgata o que lhe é caro e único: o prazer da palavra. Em três tempos, na infância, na universidade e na vida adulta, o narrador consegue delinear seu amadurecimento sempre com a ajuda de Anna, Nanni ou Nonnà – como era chamada pelos netos. Línguas é uma preciosidade, em 3 atos intrinsecamente conectados, somos cativados pelas pequenas (grandes) reflexões do narrador e como chegou a uma vida satisfeita de si. O capítulo final devia vir com um alerta “para ler e reler, sem moderação”:

“... já sabendo que esse pouco de realmente vivo que fazemos ao viver permanece fora da escrita, que os signos são constitucionalmente insuficientes, oscilam entre comentário e exaustão, e ainda bem que é assim.”

Outro ponto relevante é como a escrita do livro é imagética, colocando luz, cor e sons em alguns personagens e deixando outros 'embaçados'. Como, por exemplo, o restante da família de Mini: pai, mãe e o irmão mais novo. Sabemos que eles existem, mas deles, apreendemos muito pouco. São flashes, espectros, com poucas contribuições ao processo de reconstrução da memória do narrador, mas, em verdade, muito importantes para a criação do ambiente doméstico tão dependente dos trabalhos da avó.

Recomendo a leitura desse e de outros livros do Domenico Starnone. Concordo com ele quando afirmou que a literatura “deve mostrar aquilo que resistimos a ver, ou que escondemos porque nos dá medo. É preciso contar a verdade da própria experiência, isso é a única coisa que um escritor tem. E isto não significa fazer autobiografia, e sim usar a experiência para traçar as histórias.” E talvez por isso use sua cidade natal como cenário: é um lugar complexo, que não pode se encaixar em um estereótipo: “Sobre Nápoles sempre há algo mais a dizer”. 

***

*Orfeu resolveu buscar sua amada nas paragens onde habitam os corações frios. A melodia de sua lira fez os que viviam sem luz correrem para ouvi-lo atentos e silenciosos, como pássaros dentro da noite.
Ao abordar o Rei das Sombras, Orfeu obteve dele o direito de retornar com Eurídice ao sol. Porém seu pedido seria atendido com a condição de que não olhasse para trás, para ver se sua amada o seguia. Mas, impaciente, ele olhou para ela e a perdeu para sempre.

 

terça-feira, 17 de setembro de 2024

A cidade inexistente – José Rezende Jr.




Por Maria Albeti

Sobre o autor

José Rezende é jornalista e escritor, nasceu em Aimorés (MG), em 1959, e vive em Brasília, desde 1987. Trabalhou como repórter especial do Jornal do Brasil, Isto é, O Globo e Correio Brasiliense. Esteve presente em diversas áreas, produzindo reportagens sobre cidades, política, mundo e cultura. Escreveu na revista Traços e conduziu diversas oficinas de texto literário e jornalístico.

A Revista Traços nasceu em 2015, em Brasília, visando a geração de renda para pessoas em situação de vulnerabilidade. Essas revistas são vendidas em locais de grande circulação pelas ruas da cidade. O objetivo é permitir que essas pessoas possam reestruturar suas vidas e, posteriormente, reingressar no mercado de trabalho. 

Estreou na literatura, em 2005, com o livro A mulher-gorila e outros demônios, uma coletânea de contos. Posteriormente, publicou os seguintes livros: Eu perguntei pro velho se ele queria morrer e outras histórias de amor (contos), em 2009; Estórias mínimas, em 2011; Os vivos e os mortos, em 2016; e A cidade inexistente (primeiro romance), em 2019, todos pela Editora 7 Letras. 

Começou na literatura infantil com o livro Fábula Urbana, em parceria com o ilustrador Rogerio Coelho, publicado pela Edições de Janeiro. Esse livro tem como inspiração o encontro real do autor com um menino pobre que pedia livro em vez de esmola. Publicou, também, o livro O sapo que não queria ser príncipe, com ilustrações de Catarina Bessel, em 2023, pela editora Gato Leitor.

Conquistou o 2º lugar no Prêmio da Biblioteca Nacional, de 2009, com o livro de contos Eu perguntei pro velho se ele queria morrer e outras histórias de amor e ganhou o prêmio Jabuti de 2010, na categoria "Contos e crônicas" com esse mesmo livro.  O livro A cidade inexistente foi finalista do Prêmio Oceanos e do Prêmio São Paulo, em 2020 e o livro O tempo de parar o tempo, foi finalista do prêmio do Prêmio literário Barco a Vapor, em 2021.

Sobre o livro

A estrutura do romance A Cidade inexistente se diferencia da configuração tradicional, é formada por pequenos contos, talvez pela experiência do autor nesse gênero. O autor utiliza linguagem simples, o que permite uma leitura fácil, e muitas vezes usa o recurso de aglutinação de palavras para formar novos termos, por exemplo, sei-lá-qual-ésima, desistidas, desengolindo, desamuado, desofendido, 

Rezende apresenta diversos aspectos das pequenas cidades, tais como: o circo, com trapezista, palhaço, mágico e um leão; o doido, o padre e figuras lendárias, como: a noiva fantasma, os caboclos d’água e a cabra cabriola. Existe uma mistura do real com o surreal, aproximando-se do realismo fantástico, a realidade é transfigurada, mostrando o irreal ou estranho como algo cotidiano e comum. O tempo é percebido de forma cíclica, ao invés de linear.

Os contos têm início com a remoção dos habitantes, em embarques pacíficos e ordeiros (p. 11), de uma pequena cidade, “onde autoridade nenhuma do estado jamais sujou a sola do sapato (p. 11), que será inundada pelas águas de uma hidrelétrica. Tragédia anunciada pelo “doido da cidade”, que ouviu um telefonema do “homem do governo”, mas ninguém acreditou, “O doido então bateu de porta em porta, mas de casa em casa lhe bateram a porta na cara” (p. 15).  Até que chega o dia, os moradores são levados em caminhões pau-de-arara, para a cidade nova, menos as autoridades que foram em camionetes cabine-dupla do governo. 

A cidade nova foi construída idêntica - “cuspida e escarrada” - à cidade antiga, é “a mesma igreja, o mesmo sino, o mesmo relógio parado no mesmo meio-dia de sempre, a mesma falta do que fazer, a mesma pobreza, o mesmo abandono” (p. 22).  Todos os moradores são retirados, por ordens superiores, mas um velho decide “daqui não arredo o pé” e o cachorro da família, em solidariedade, também, toma a decisão “eu daqui não arredo as patas”, [...] restam um velho e um cachorro, únicas testemunhas do fim do mundo, e os dois não arredam nem os pés nem as patas. (p.79). Essa resistência do velho e do cachorro transforma a casinha simples em “Área de Relevante Interesse Nacional” (p.12), com pedido de reforço para a desocupação, até que o advogado dos direitos humanos, para alívio dos soldados, impetra um habeas-corpus. 

Cada conto contém estórias com começo, meio e fim, que se conectam com as demais por meio de algum acontecimento, dos personagens e/ou do cenário, muitas vezes os fatos são apresentados de forma invertida.  São muitos os personagens, alguns aparecem em mais de um conto, outros apenas uma vez. Os principais personagens são:  o velho, o cachorro e o menino, mas outros se destacam, como:  o padre, a moça da boate, a trapezista Ludimila; o advogado do prefeito, o homenzinho triste e a noiva fantasma. 

A vida continua na cidade nova, mas com o passar do tempo, os moradores percebem que, apesar de ser cópia fiel da cidade velha, com os mesmos pés de manga, o mesmo descascado das casas, o mesmo relógio da praça parado no mesmo meio-dia de sempre, apenas parece ser igual. As mangueiras não dão frutos, os passarinhos foram embora, as pipas não voam como deviam, faltam as marcas feitas nos troncos das mangueiras, a noiva fantasma não volta a aparecer, o doido foi embora, depois de avisar a toda a cidade que “o mundo vai acabar em água” e até o beijo tem sabor diferente, “E por não reconhecendo o cenário, quase não se reconhecem personagens da própria história [...] (p.50). Um morador enlouqueceu, muito rápido, e pulou da torre da igreja, até que poderia voltar batendo asas inexistentes, perfazendo a santíssima trindade doido-fantasma-passarinho. 

No último conto, a hidrelétrica está vazia, por causa da longa seca, as pessoas começam a retornar para  a “cidade velha” e tudo volta ao começo, com poucas diferenças. O “menino” agora está velho, o cachorro, que de tanto ficar debaixo d’água, só consegue beber água e com “as patas desaprendidas do em terra do firma pisar-se” (p.77). O  menino é o narrador dos fatos, desde a remoção por ordens das autoridades, até o retorno à cidade velha, anos e anos depois, de forma voluntária, quando acaba toda a água da hidrelétrica e ele é “o mais velho entre os velhos” (p.75). 

Em entrevista a L&PM Editores, o autor fala que o ponto de partida do livro foi um conto, com base na lembrança de uma pequena cidade, Itueta, que foi inundada para a construção de uma usina, situação corriqueira no Brasil. Porém, a obra não é uma narrativa baseada em situações reais, nem é autobiográfico, como escritor tem liberdade para inventar, contar mentiras, sem compromisso com a verdade. Tal situação não ocorre com o jornalismo, onde existe a obrigação de narrar fatos tal como aconteceram; atividade que lhe proporcionou criar um grande repositório de histórias, realidades que ele não conheceria se não fosse jornalista.  https://www.facebook.com/LePMEditores/videos/1041265293298277.

O livro tem uma prosa leve, com traços de humor, embora contenha uma crítica bastante contundente, que permite a reflexão sobre questões ambientais, políticas e sociais. Retrata a forma como as pessoas são deslocadas, abandonando suas histórias, e suas memórias, sem deixar transparecer tristeza e revolta. Apenas o velho e o cachorro decidem resistir, mas de forma pacífica. Porém, a estória seria outra se os moradores tivessem reagido, entrado em confronto com polícia e serem assassinados, mas assim não aconteceu, se não essa estória não teria sido contada.

Gostei muito do livro, recomendo a leitura.


 

    


terça-feira, 20 de agosto de 2024

Alliss at the Fire ou É a Ales

                                                  Foto: Noah Silliman 

JON FOSSE nasceu em 1959 na costa oeste da Noruega e é considerado um dos grandes autores de sua geração, com uma obra que inclui prosa, poesia, ensaios, contos, livros infantis e peças teatrais. Sua estreia literária se dá em 1981, com a publicação do conto "Han" em um jornal estudantil. Dois anos mais tarde, lança Raudt, svart, seu primeiro romance. Seus livros já foram traduzidos para mais de cinquenta idiomas. Em 2023, recebeu o prêmio Nobel de literatura ( Companhia das Letras).

Na juventude era ateu e comunista, pois, acredita que naquele tempo o artista só tinha essa forma politica de existir no mundo. Na maturidade, após sérios problemas com álcool, se converteu ao catolicismo, frequentando inclusive comunidades quackers. Professor de escrita criativa, foi professor do proeminente escritor Karl Ove Knausgard.

Neste breve romance ambientado nos fiordes noruegueses, a narrativa se inicia em 2002, quando observamos Signe, na casa denomina "antiga casa" elucubrar sobre o desaparecimento de seu marido, Asle. Nesse devaneio, Signe vê a si mesma, no passado, olhando pela janela a espera de seu companheiro que saiu em um dia de clima adverso para navegar em seu pequeno barco nas proximidades de um fiorde. Seus pensamentos e memórias nos apresentam um pouco de sua vida com Asle e também nos conduzem a uma viagem por gerações que habitaram aquela mesma casa.

O romance nos permite transitar entre a mente de Signe e Asle e também dispõe de um narrador onisciente. A obra raramente inclui pontuação, desse modo os parágrafos se estendem por vezes em diversas páginas, ampliando a sensação de imersão na mente dos personagens.

Asle, nos é revelado, desapareceu naquela visita ao fiorde, em 1979. 

A medida que o romance se desenvolve o leitor é levado através das mentes de Signe e Asle, pela qual é possível percorrer um viagem geracional que remonta os ancestrais de Asle, até sua trisavó, Ales, no ano de 1897, quando um menino, seu parente distante, também de nome nome Asle, desapareceu nas águas geladas do fiorde, aos sete anos de idade. Essa heterogeneidade temporal, somada ao efeito reflexo de duas pessoas de mesmo nome e mesma sina em uma família, causam um efeito hipnótico na trama, evocando a presença do passado no presente e ampliando a sensação de conexão entre o mundo dos mortos e o mundo do vivos.

Nesse tocante, é relevante mencionar que JON FOSSE teve como inspiração para o livro o seguinte soneto 18 de Shakespeare do qual se destaca : Enquanto o homem possa respirar ou os olhos possam ver, viva este canto dar-te a vida é o seu dever. Depreende-se, portanto, que enquanto houver memória, enquanto houve lembrança haverá existência.

Por fim, se destaca a construção experimental não somente pelo entrelaçamento de histórias em momentos históricos distintos, mas também pela escolha da linguagem original do romance, todo ele construído em nynorky ou neonoruegues um dos dois idiomas oficiais da Noruega, o que se presume conferiu naturalidade aos diálogos, especialmente entre o casal. A prosa de Fosse não se propõe a dar soluções ou catarses. Trata-se de um livro que transita entre os espelhamentos geracionais e as lembranças criando uma atmosférica quase onírica na qual os personagens podem não estar dividindo o mesmo tempo , mas dividem o mesmo espaço, especialmente o mar esse sim,  é história. 

 Por fim, é possível ainda estabelecer uma conexão entre a obra de Fosse e o conto a Terceira Margem do Rio de Guimarães Rosa, assim como na obra de Fosse a aparente simplicidade da trama guarda um complexidade metafísica e existência que pode ter relação com o que exprime o conto de Rosa, no qual as  margens do rio simbolizam a vida visível, terrena, cotidiana. A terceira margem seria aquela que não é vista, que sai do cotidiano, do lógico, é a transcendência diante do dado, do rotineiro. Portanto, o fiorde seria uma especie de paisagem, palco metafísico que guarda os segredos entre a vida e a morte.

Leitura desafiadora mas que revela surpresas!

sábado, 23 de março de 2024

Oração para desaparecer (Socorro Acioli, 2023)

 

por Daniela

Oração para desaparecer é o segundo romance da escritora cearense Socorro Acioli. A autora é jornalista e doutora em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), é professora e coordenadora da especialização em escrita e criação da Universidade de Fortaleza (Unifor). Tem mais de vinte livros publicados, entre eles ‘Ela tem olhos de céu’, que recebeu o prêmio Jabuti de literatura infantil; a coletânea de poemas Takimadalar, as ilhas invisíveis; e os romances A cabeça do santo (que ganhou edições na Inglaterra, Estados Unidos, França, México e Itália) e Oração para Desaparecer.

 Socorro soube da história da igreja soterrada em Almofala, Ceará, por uma amiga, em 2015, e começou a procurar mais informações.

“Foi quando achei uma crônica de Carlos Drummond de Andrade no Correio da Manhã de 17 de novembro de 1946. Ele pedia que sábios, poetas, artistas prestassem atenção à igrejinha de Almofala. E contava a história da Labareda, dos Tremembés, da disputa pela santa. E me deu de presente Joana Camelo, a prostituta que jogou um tamanco na cabeça do padre. Depois disso, eu decidi atender ao pedido do Drummond, tantos anos depois. Recebi Joana Camelo de suas mãos. Há uma Almofala no Brasil, sete Almofalas em Portugal. Comecei uma pesquisa intensa, com várias visitas à igreja, às casas de cura dos pajés Tremembés, ganhei um colar de proteção, fui ao rio ver cavalos marinhos, conheci uma das Almofalas portuguesas e dediquei sete anos muito felizes ao ‘Oração para desaparecer’. Escrevi três versões, joguei duas no lixo. A terceira é essa, que agora chega aos leitores, resultado da imensa paz de viver dentro deste livro de 2015 a 2023.” (Estado de Minas, out 2023)

A igreja de Almofala completou 300 anos de história em 2012.  Durante o século XVIII, com os primeiros desbravadores, a Igreja se fixou no território cearense para o trabalho de catequese, antecedendo o poder civil. Vários religiosos foram proprietários de sesmarias e  o território cearense foi pontuado por ermidas, capelas, aldeamentos pequenos e efêmeros como no caso de Almofala. A província de Almofala (Almo hala, do árabe, lugar de permanência temporária), segundo registros do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IPHAN, 2013), tem sua origem ligada à Carta Régia de 8 de janeiro de 1697, que determinava ao governador do Maranhão a doação por Sesmarias, de todas as terras necessárias aos índios Tremembés. Até 1696 o clima era de grande tensão entre os Tremembés, índios que habitavam a região, e os portugueses. O Pe. Assenso Gago, da Companhia de Jesus, mediou essa situação de tensão ao escrever ao Rei de Portugal mostrando-lhe a conveniência de aldear os Tremembés, entregando-lhes sesmarias de terras entre o rio Aracatymirim e do Timonha, atual Almofala. Sua majestade, por meio da Carta Régia 1697 respondeu à solicitação do jesuíta, concedendo uma légua de terra aos Tremembé, bem como aos índios do Ceará Grande, Pernambuco, Paraíba. Ordenou ao governador do Maranhão que não importunasse esses índios e nem os apartassem dos lugares por eles escolhidos para viverem. Inicialmente, bem próxima ao mar e ao rio Aracati-mirim, uma capela de taipa e coberta de palha foram erguidas para que fosse colocado início às atividades de educação religiosa. No início do século XVIII, nos anos de 1712 a 1758, no mesmo local da igreja provisória, houve a construção da igreja já em alvenaria com uma mescla de técnicas eruditas e populares. A presença da igreja no centro mostra como o distrito de Almofala cresceu ao seu redor (IPHAN, 2013). Em 1897, uma duna começou a se deslocar e foi engolindo a igreja e o aldeamento, inclusive as terras dos tremembés. A igreja ficou soterrada até 1943, quando a duna começou a se mover e a população local começou a voltar e desenterrar a igreja.

Nas palavras do Drummond, em 1946:

“Diante de algumas fotografias pertencentes ao arquivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, assalta-me o desejo de convocar os poetas, os sociólogos, os pintores, os romancistas e os músicos do Brasil e pedir-lhes que vejam, mas vejam longamente a igreja de Almofala.

Almofala, como Tróia, não é:foi. Foi um aldeamento de índios tremembés, a mais de cem quilômetros a oeste de Fortaleza. Em 1608 estabeleciam-se os jesuítas nas praias cearenses, começando a catequizar os silvícolas chefiados por Juripariguaçu, ou seja, o grande Diabo. Esse nome talvez influísse na fama que vieram a ter os tremembés: índios feros e turbulentos, afirma Berredo; mas o padre Antonio Vieira e, modernamente, Paulino Nogueira consideram-nos pacíficos e morigerados. O certo é que foram atraídos, evangelizados, atacados, expoliados e exterminados, segundo a sorte habitual do nosso gentio, e como calhava nessa ou naquela conjuntura. Hoje restam poucos e melancólicos tremembés que como a maioria de seus irmãos brasileiros, de sangue puro ou mestiço, não tem terras. Nem igreja porque a deles, Nossa Senhora da Conceição de Almofala, a areia comeu.

(...) Aqui está uma fotografia da DPHAN: meia dúzia de ‘cabras’ a cavalo, dez ou doze mulheres de saia arrastando o chão, guarda-sóis abertos, em torno de um monte de areia que obstrui a entrada da igreja e lhe devorou parte dos fundos; por um óculo aberto sobre a porta principal, a fotografia é branca: o céu do Ceará, num dia remoto. Outra fotografia, esta de há poucos anos tirada por um representante da repartição, o pinto Rescala, mostra a fachada inteira, liberta do areial, e o mesmo óculo deixa passar o mesmo céu, prolongando a visão através de regiões desoladas. Os caboclos conseguiram, após  37 anos, remover a duna imensa, mas o templo está ermo e inútil, presidindo a solidão do lugar. E bem em frente da igreja, a uns trezentos metros (onde outrora foi uma colina) outras fotografias mostram o espantoso, o trágico cemitério, que se diria um desses quadro de Yves Tanguy onde estão dispersas formas incoerentes numa perspectiva rasa e infinita. Ou certas composições angustiosas dos surrealistas. Ou uma cidade que o terremoto varresse. Ou os vestígios, que não sabemos interpretar, de alguma civilização sepultada há muito tempo, e que antecipa em nós o frio de nossa própria destruição. Mas não estamos no Egito: estamos ali no Ceará, e em 1898 o padre Antonio Tomás, autor de um soneto bastante conhecido, celebrava a derradeira missa na igreja atacada pelo vento.

Ele nos conta o episódio. Saíra de Acaraú para salvar as imagens que cumpria remover com urgência: o morro de areia crescia atrás da igreja e várias casas tinham sido engulidas. Os moradores demoliam suas moradias e iam reedificá-las em paragens mais abrigadas. Rui o teto da capela. O padre resolve oficiar uma última vez, aproveitando a madrugada, que é quando o vento sopra mais brando. Reúne toda a população pobre da vila e dos arredores. Cerca de três mil pessoas, tomadas de assombro, penetram a custo na igreja ou enchem o adro. Padre Antonio Tomás, ao Evangelho, explica ao povo que é preciso levar as imagens até a capela do Tanque do Meio a dez quilômetros de Almofala: a igreja está perdida. Vamos em procissão, diz ele. E continua a missa, mas ninguém a ouve. Os fiéis voltam-se para as imagens de que irão ficar privados, e um côro de gemidos, de suspiros, de soluços cobre a voz do padre. As mulheres entoam um bendito a Senhora da Conceição, em quadras improvisadas e os homens, batendo no peito, secundam. O eco vai perder-se ao mato longe.

A situação torna-se grave quando chega a notícia de que, por trás do morro de areia, uns ‘cabras’ armados se dispõem a obstar a retirada das imagens. O padre manda chamar os chefes do movimento, explica-lhes com doçura que ou as imagens são removidas ou tudo afunda na areia; eles continuam obstinados. Nisso Joana Camelo, uma mulher do povo, arrebata a imagem de Nossa Senhora do Rosário e saiu triunfante com ela. Padre Tomás grita aos mais próximos que a detenham. Ninguém o ouve. Então o padre corre no encalço da fugitiva, lutam os dois, toma-lhe das mãos a imagem. Os chefes da insurreição procuram defender Joana, dois homens ajudam o vigário, estabelece-se a confusão; ‘fechou-se o tempo’, escreve o padre Tomás; e triunfou o partido deste, depois de muita cabeça quebrada. O padre manda o subdelegado soltar os presos, como convêm, e todos arrependidos e confortados, iniciam a marcha para o Tanque do Meio, onde o vento não castigará mais os santos.

E a igreja desapareceu na areia, como desapareceram as casas, o cajueiral, a aldeia inteira dos tremembés. De 1905 é a sede do novo distrito, com duas casinhas para começar Itarena. Almofala ficou sendo uma lembrança.”

O livro Oração para Desaparecer é dividido em 3 partes. Na primeira delas, ‘Você trouxe todas as palavras’, uma jovem mulher narra, em primeira pessoa, como apareceu e foi resgatada por um casal de idosos em uma aldeia portuguesa chamada Almofala, perto de Caldas de Rainha. Chamada pelo casal e seus parentes de ‘ressurrecta’, saiu do buraco sem memória, sem cabelo, pelada, vendo pessoas mortas e falando português do Brasil. Está contando os fatos de alguns meses antes a um homem, Félix Ventura, vendedor de passados, para que ele crie documentos e invente uma história de vida evidenciada, já que ela nunca se lembrou de seu passado. Cida, o nome com que foi batizada por sua família portuguesa, precisa  de um passado produzido para poder viver seu futuro em Moçambique com Jorge Momade,  por quem se apaixonou. Anos depois, ao encontrar uma imagem quebrada de Nossa Senhora da Conceição na casa da família que a abrigara, ela tem um sonho e se lembra de onde veio e seu nome verdadeiro: Joana, de Almofala.

“ A vida é feita de palavras, elas explicam e fazem nascer e morrer. Se ninguém pronucia  um nome este ser está morto, mesmo que respire e leve um coração batendo no peito. Estar vivo é ser palavra na boca de alguém. Não lembrar delas me condenou ao abismo, não saber o nome das pessoas, do meu lugar, a narrativa da minha vida, tudo o que somos é história e história se conta com palavras. Por isso, bastou um bilhete. Lembrei-me da missa: “Mas dizei uma só palavra e serei salvo.” Fui salva por apenas duas, o nome da cidade de onde vim e meu nome.” (p.111)

Na parte dois, “Os ossos dela não estão lá”, quem narra é o biólogo Miguel, contando a Jorge sua história em Almofala, Ceará, sua pesquisa com cavalos marinhos, seu contato com os tremembés e seu sofrimento de 49 anos sem saber o que foi feito da mulher que amava, Joana Camelo. Que desapareceu na areia da igreja soterrada.

Na parte três, “A língua de fogo avisou”, é novamente Joana que  narra, em primeira pessoa, sua volta à Almofala brasileira e a sua família  tremembés, que a acolheram quando foi abandonada pela mãe na igreja de Almofala. Traz a santa quebrada de volta aos seus donos, reencontra Miguel e suas memórias.

“Só posso fazer uma coisa agora: renascer mais uma vez. Não vou parar de renascer nunca e acho que é assim com todos nós.”

O romance é bastante envolvente, com texto limpo, fluente e com boas frases e citações. A autora homenageia a língua portuguesa, que é fio conector de todos os personagens. Faz homenagens também a outros autores, como ao José Eduardo Agualusa, emprestando seu personagem do “Vendedor de Passados”, o angolano Félix Ventura. E também ao José Saramago, com a menção ao Livro dos Itinerários e à epígrafe do último livro do autor,  ‘A Viagem do Elefante” (“Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”). Ainda, é clara a influência do realismo mágico sul-americano, como Garcia-Márquez, no tom do romance e escolhas do enredo.

No entanto, fiquei um pouco incomodada com alguns recursos narrativos que a autora empregou, que a meu ver, empobreceram um pouco o resultado. Gostei muito do início do livro, da descrição inicial do ‘parto’ da terra, da confusão mental e desespero de não se saber quem é, porque está ali, o que aconteceu. Mas a entrada do personagem do Félix Ventura já me causou estranheza. Qual o sentido daquele personagem? Mesmo Jorge e Miguel me pareceram acessórios à trama, o livro poderia ter sido construído sem a presença deles.  Também não convence, mesmo dentro de uma história de realismo anímico, o gap de 49 anos, que para Joana foram sete. Ela teria ficado 42 anos com a vida suspensa, antes de aparecer na outra Almofala? A diferença da passagem do tempo de foram diferente da realidade pareceu apenas um artifício para que ela não pudesse resgatar a relação amorosa com Miguel.  O resgate da história da igreja de Almofala e da religiosidade dos tremembés me pareceu a verdadeira riqueza do livro.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Resenha de "A mulher que escreveu a bíblia", de Moacyr Scliar

 A Mulher que Escreveu a Bíblia (Brasil) — 2007

Autor: Moacyr Scliar

Editora: Companhia de Bolso

168 páginas




Sobre o autor (fonte wikipedia e outras)

Moacyr Scliar, nasceu em Porto Alegre, em 1937, e faleceu na mesma cidade, em 2011. Filho de imigrantes judeus do antigo Império Russo, Scliar formou-se em medicina e atuou como médico sanitarista e professor universitário. 

Além disso, foi escritor. Publicou mais de 70 livros e ganhou muitos prêmios literários, entre eles, quatro Jabutis, incluindo A Mulher que escreveu a Bíblia (prêmio Jabuti de Literatura, categoria romance, de 2000). 

Suas obras foram traduzidas para doze idiomas. 

Scliar foi o sétimo ocupante da cadeira 31 da Academia Brasileira de Letras. 


Sobre a obra 

A mulher que escreveu a Bíblia é uma sátira muito criativa e bem contada sobre o processo de redação da Bíblia se ela fosse escrita por uma mulher nos tempos de Salomão. 

No prólogo, o autor narra o encontro de uma mulher “feia” com um terapeuta de vidas passadas charlatão. A mulher dizia-se infeliz nos relacionamentos, em particular num relacionamento que teve com um funcionário da fazenda de seu pai que a troca por sua irmã. Após algumas sessões, a mulher desaparece e deixa uma carta ao terapeuta em que se diz agradecida e curada após descobrir que, no século X antes de Cristo, foi uma das setecentas esposas do rei Salomão - a mais feia de todas, mas a única capaz de ler e escrever. 

O romance, então, trata da história dessa mulher (sem nome) que, por ironia do destino, acaba encontrando-se em Jerusalém, casada com o mais poderoso dos soberanos da época. 

A menina, primogênita da família de um rico criador de cabras, era tão inteligente quanto feia. Vivia reclusa junto às montanhas e às cabras da fazenda de seu pai e nutria uma paixão não correspondida por um pastorzinho, que fora expulso daquela região ao engravidar sua irmã mais nova. 

Ciente da inteligência da menina, o escriba de seu pai (que também era analfabeto) decidiu ensiná-la a escrever.

Um dia, seu pai recebe a visita de um mensageiro do rei Salomão que determina que o fazendeiro conceda sua filha primogênita a contrair matrimônio com o rei em troca do estreitamento de laços políticos.

A menina parte para o templo e se une às outras 700 esposas do rei. Ao descobrir que sua mais nova esposa sabia escrever e percebendo a astúcia da menina, Salomão pede que ela se junte ao grupo de escribas do reino, que havia sido incumbido de escrever a história do povo de Israel, mas ainda não havia conseguido concluir o feito.

Ela, então, escreve o conjunto de livros que hoje conheceríamos como o antigo testamento bíblico. Seus textos são revisados constantemente pelos escribas, que acabam realizando edições exageradas. A obra seria apresentada à rainha de Sabá que estava em visita ao reino de Salomão, quando sofre um atentado e é parcialmente incinerada. O meliante era justamente o pastorzinho que ela conhecia da fazenda do seu pai, que, expulso, encontrou abrigo junto a um grupo de missionários daquela região. 

A prosa de Scliar é muito interessante porque, além de ser muito leve, traz aspectos relacionados ao fluxo de consciência da protagonista, o que abre espaço para a inserção de palavras chulas e reflexões muito particulares e divertidas. Nesse sentido, a obra é, claramente, é um texto feminista, uma apologia à inteligência e sagacidade do feminino.

A despeito do que possa ser imaginado ao lermos o título, a obra em si, traz muito pouco de contexto religioso, dogmático ou doutrinário – chega a ser quase o contrário! Apesar disso, percebe-se que o autor é um grande conhecedor dos textos bíblicos enquanto material literário, e, em certos trechos, ter o conhecimento prévio das histórias mencionadas auxiliaria na compreensão de certas ironias e referências trazidas pelo autor. 

A mulher que escreveu a bíblia é, antes de tudo, uma obra fantasiosa, irônica e cômica que surpreende muito pela forma e é uma excelente introdução aos textos de Scliar. 


Cristiane Vianna Rauen

06 de fevereiro de 2024

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Kramp: Memórias de uma infância, nostalgia e reflexão nos tempos de chumbo do Chile.

Imagem do filme Lua de Papel de 1973


A autora

María José Ferrada (Temuco, Chile, 1977). Jornalista e escritora. Conta com uma extensa obra para o público infantil reconhecida com o Prémio Iberoamericano SM de Literatura Infantil e Juvenil 2021. A sua primeira novela para adultos, Kramp (Emecé, 2017), foi traduzida para onze idiomas, e recebeu o Prémio do Círculo de Críticos de Arte, o Prémio Melhores Obras Literárias do Ministério das Culturas, das Artes e do Património e o Prémio Municipal de Literatura de Santiago. A sua segunda novela, El hombre del cartel (Alquimia, 2021) recebeu o Prémio do Círculo de Críticos de Arte. (Fonte : https://www.wook.pt/autor/maria-jose-ferrada/3593257).

 

A autora chilena  já escreveu mais de trinta livros e começou a escrever livros infantis quando pequena para seu irmão menor. Essa inspiração se converteu em oficio. 

Ferrada se interessa em dar visibilidade para temáticas que afetam e deixam vulneráveis as crianças pequenas (e também as grandes!) como rompimentos democráticos e processos migratórios. 

A obra da autora se propõe a permitir um espaço de liberdade de pensamento para as crianças, dando lugar para a capacidade reflexiva dos pequenos e os reconhecendo como protagonistas, sujeitos de suas histórias. 

 

Kramp é uma obra que insere nesse contexto ao narrar a vida de uma garota de seus 7 ou 8 anos durante a ditadura chilena, em romance autobiográfico com pitadas ficcionais. 

É o primeiro romance da escritora para adultos 

A obra

Kramp narra a história de uma menina entre 7 e 8 anos e seu pai, um caixeiro viajante, durante os anos 70 no interior do Chile. O que os une, a principio, é um catálogo de produtos da marca Kramp (produtos de serralheria e construção) vendidos pelo pai da garota. 

A história se desenvolve entre os anos 70 e 80 em um contexto politico de ditadura militar e perseguição de opositores no Chile, esse contexto é apresentado de forma sutil e vai sendo revelado para o leitor tal qual seria para uma criança, não o compreendemos diretamente, mas a medida que o romance se desenvolve os silêncios, os sussurros, as palavras cifradas, vão ficando mais audíveis para a menina e para o leitor.

A estrutura 

O livro possui 96 páginas e é dividido em 16 capítulos curtos. 

Todos os personagens são identificados apenas pelas iniciais de seus nomes, dos quais se destaca a protagonista M, seu pai D , sua mãe “uma bela mulher”, o fotógrafo de fantasmas, vendedores do quais se destaca, o vendedor amigo de seu pai S, e uma única exceção : um estudante chileno morto pela ditadura que em meio aos “fantasmas da ditadura” é identificado com seu nome completo Jaime André Suarez Moncada.

A trama se desenvolve a partir do acordo estabelecido entre pai e filha, na ausência do conhecimento da mãe, por meio do qual a garota passa a acompanhar o pai em suas viagens de venda de produtos Kramp por diversos vilarejos do interior do Chile. Nessas viagens, que duram apenas alguns meses, a garota aprende sobre as artimanhas dos vendedores, assiste filmes ao ar livre, bebe uísque e fuma com o pai e aprende também a negociar usando de sua posição de criança para auxiliar o pai nas vendas. 

A narrativa

A novela trata da relação entre pai e filha em um mundo não mais existente, o dos caixeiros viajantes. É também um exercício de recuperar ou de narrar a infância na vida adulta. 

A narradora é uma mulher que relembra sua vida aos 7 anos de idade, fazendo toda uma trajetória emocional, desde a idealização da figura paterna, até sua desilusão no começo da adolescência e por fim uma certa compreensão de seu contexto e limitações por meio da reflexão já na vida adulta.

A tecitura da obra se dá nas vozes da garota e da mulher que se confundem, fundindo de forma muitas vezes poética e outras vezes engraçada uma parte da história da vida de M. 

Em momento algum o livro incorre no erro de trazer uma “voz infantilizada” ao contrário disso, a garota é verossímil, e sua narrativa explora o desconhecimento típico dessa faixa etária como uma ferramenta para se construir e interpretar a realidade de forma criativa, terna e cativante. Por vezes a inocência esbarra no que é genuíno de uma criança : sua capacidade de nos fazer rir e chorar em um mesma frase. 

O paradoxo entre a inocência da criança diante das situações do mundo adulto e a consciência do leitor de que os limites da moral estão sendo quebrados é explorado de forma habilidosa pela autora. 

O ritmo do livro é quase um balanço entre a reflexão da adulta e as falas e percepções de sua criança, é um jogo que mantem uma cadência agradável e confere ao livro uma leveza, mesmo quando passa pela densidade do período da ditadura, das agruras das doenças mentais, da fragilidade do exercício paterno e dos vacilos morais da profissão de vendedor. 

M vê os pais quando pequena com os olhos de uma criança, sem julgamentos, mas com a percepção curiosa visando interpretá-los com as ferramentas que dispõe. 

Sua relação com o pai é narrada em milímetros e ele ocupa a posição de patrão e pai. 

A mãe fraturada pela ditadura é descrita como uma mulher distante, como uma astronauta que só está pela metade. 

Os vendedores colegas de seu pai são vistos sem maiores censuras com suas mentiras e artimanhas para sobreviver e trapacear.

M. passa a compreender esses mecanismos e os incorpora em sua relação com o mundo: sabe a fisionomia que deve fazer em momentos de apuro, sabe o deve falar e como deve agir no mundo dos caixeiros viajantes. Divide a mesa e o cigarro com seu pai, muitas vezes mais patrão do que pai. 

roadtrip com o pai é somente abalada por um evento trágico que convoca a presença da mãe, tirando-a se de seu torpor depressivo e coloca M. novamente na trilha comum de sua infância. 

A morte do fotógrafo é o ponto inflexão na história e é o ponto mais eloquente da trama para nos apresentar o momento histórico no qual o livro se desenrola. É nesse momento que período histórico sombrio no qual a narrativa está inserida derrama sua sombra sobre a compreensão em retrospecto de M.

 

Como todo idílio de infância, este também é impossível de reviver. Adolescente, a pequena M tenta novo contato com o pai e procura, em vão, recuperar a sensação de aventura que tinha quando pequena a fazer as viagem com seu “patrão”. 

Ocorre que nada é o mesmo. Ela, o pai, o mundo são vistos agora pela lente de uma adolescente e, como esperado, todas as fragilidades são expostas, de modo que, esse parece ser o último contato da garota com aquele mundo em ocaso.

E a transição da infância de M para adolescência, é acompanhada também pelo ocaso de uma profissão, o modelo de vendo dos caixeiros viajantes é ofuscado pela ascensão das grandes lojas de rede.

Comentários Adicionais

A estrutura de capítulos curtos, somada ao repertório possível de uma criança em um ambiente hostil, a busca por validação emocional e afeto encontra no livro uma forma impar de ser representado. A ditatura passa a falar mais alto no livro, mas essa superposição de camadas, eventos e períodos é feita com maestria e simplicidade pela autora. O ocaso de uma profissão e o amor do jeito possível, expostos na fragilidade da relação paterna, são também muito bem traçados na obra. 

Leitura recomendada para todos!

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Tudo pode ser roubado - Giovana Madalosso

                                

                                                                                                               Resenha: Maria Albeti Vitoriano

A autora

Giovana Madalosso nasceu em Curitiba, em 1975, e atualmente mora em São Paulo.  Formada em jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), atuou como redatora publicitária por quinze anos e, atualmente, escreve roteiros para televisão. 

Estreou como escritora com a coletânea de contos “A teta racional”, finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional. Em 2018 publicou “Tudo pode ser roubado”, seu primeiro romance e, em 2019, Suíte Tóquio, finalista do 63º Prêmio Jabuti na categoria Romance Literário e traduzido para espanhol e inglês.  

Em 2020, foi uma das organizadoras do Memorial Inumeráveis, projeto que homenageia as vítimas da pandemia de Covid-19 no Brasil, por meio da divulgação de suas histórias. Desde janeiro de 2023 é colunista do jornal Folha de São Paulo.

Giovana foi garçonete em restaurantes da família e, também, em Nova Iorque, quando estudava roteiro de cinema, o que lhe trouxe a percepção de que toda noite é decadente e subterrânea. 

A narrativa

A personagem central do livro “Tudo pode ser roubado” é uma garçonete que trabalha em um restaurante bastante conhecido, localizado na região da Avenida Paulista. Não sabemos seu nome, durante toda a narrativa é chamada de “rabuda” e, principalmente, de “rabudinha” pelo seu parceiro no roubo de uma preciosidade. Durante alguns anos “era apenas uma mocinha honesta ganhando a vida como garçonete” (p. 18), que aproveitava as horas de folga para encontros sexuais, com homens ou mulheres.

O primeiro roubo foi por acaso, aproveitando a saída do seu acompanhante, entra no closet e encontra uma pele de raposa, que começa a examinar. O homem retorna e, com medo de ser descoberta, esconde o objeto na bolsa, leva com ela e resolve vendê-lo. É quando conhece a dona de um brechó, a transgênero Tiana (Sebastiana), que compra os objetos “surrupiados” e começa a orientá-la sobre produtos que tem valor no mercado. 

Os encontros, a escolha dos parceiros ou parceiras, passam a ser oportunidades para roubar objetos que possam ser vendidos por um bom preço e, assim, conseguir dinheiro para dar entrada na compra do apartamento onde mora, “É por isso que de vez em quando eu passo a mão numa coisa ou outra. Por uma questão previdenciária” (p. 13). Fazia parte do regulamento, por ela criado, sempre passar para frente o objeto roubado, nunca usar. Ela se intitula uma “sonhadora mequetrefe” (p. 38). 

Certa noite, é procurada por um homem, Biel, um “picareta municipal”, segundo a garçonete, que lhe faz uma proposta tentadora, roubar um exemplar raríssimo do livro O guarani, de José de Alencar, de 1857, que havia sido comprado, em um leilão, por um professor. Esse livro era o objeto de desejo de um colecionador, J., que estava disposto a pagar 50 mil para cada um deles. Trata-se de um herdeiro de banqueiros, esquisitão, que a garçonete chama de “um vagabundo internacional (p.45), pois vive buscando objetos para suas coleções, promovendo festas e cheirando pó. Ele agora quer conseguir o Guarani, “Até conseguir e querer outra coisa” (p.45). 

A partir desse momento, a protagonista mergulha cada vez mais em um estranho submundo que mistura um milionário excêntrico, drogas e sexo. Passa a circular pelo mundo dos ricaços, mas sempre criticando a futilidade desse mundo. 

A protagonista tem um olhar perspicaz sobre o ser humano, talvez pelo seu trabalho como garçonete, mas principalmente pela outra segunda profissão, de procurar pessoas que possam ser vítimas dos seus roubos, que ela considera uma atividade sagrada (p. 149). Ao observar os frequentadores do restaurante onde trabalha, ela faz uma reflexão sobre as pessoas que estão naquelas mesas: “Pessoas comendo para matar a fome, comendo para sentir prazer, comendo para se acalmar, comendo para se esconder. Impressionante como um gesto tão rudimentar pode adquirir tantas variações quando filtrado pelo emocional estropiado do ser humano” (p. 50).

Como o objetivo de conseguir roubar o livro e, assim, conseguir o dinheiro, a “rabudinha”, começa a tarefa de conquistar o professor, Cícero, para conseguir ir à casa dele e surrupiar o tal livro, uma preciosidade. A tarefa que ela julgava fácil e rápida, tornou-se difícil e demorada pelo temperamento arredio do professor. 

Mas finalmente, ele se apaixona pela garçonete, que faz o papel de uma aluna ouvinte, com o desejo de aprender a escrever artigos para defender, principalmente, a causa dos transgêneros. Depois de várias tentativas, ela consegue que o professor a convide para casa dele. 

O encontro, tão adiado pelo professor, começa com ótimas perspectivas, principalmente, para ele, mas se transforma em um fracasso, em virtude de problemas psicológicos do professor.   Para se acalmar e tentar voltar ao estado de excitação, ele exagera na dose de um remédio e acaba dormindo. 

A “rabudinha” aproveita para revistar o apartamento e ao examinar a biblioteca reflete “Sempre pensei que o conhecimento servisse para libertar as pessoas, mas agora também percebia que, aliado à vaidade ou à insegurança, também servia para construir belíssimas gaiolas” (p.158).

Finalmente, encontra o livro e, nesse momento, fica em dúvida se deve levar essa preciosidade, retirando de quem ama a literatura, para quem apenas deseja um objeto a mais para sua coleção, “Uma vez adquirido um certo item, o colecionador sai à procura de outro” (p. 174). Ela se dá “conta de que está tratando com duas figuras distintas, um colecionador e um amante de literatura” (p. 173). 

Porém, decide levar o livro e, junto com Biel, passa para o colecionador que entrega o prometido, um envelope com 50 mil para cada um deles. Nesse momento, ela sentiu que estava enterrando o Cícero e o Guarani, mas também, o Biel e a perspectiva de vê-lo novamente. 

Foi exatamente o que aconteceu, marcaram um encontro para comemorar, ele não aparece e depois de uma noite de espera, ao relento, ela vai ao hotel em que ele estava hospedado e descobre que seu verdadeiro nome é Yuri e que tinha, provavelmente, viajado para o exterior. A verdade é que “havíamos nascido um para o outro, dois cães vagabundos no canil que é o mundo” (p. 18),

Triste, decepcionada, procura Tiana, sua única amiga, mas descobre que ela, também, não estava mais em São Paulo. Fugiu da cidade e, principalmente, de um homem por quem ela havia se apaixonado, mas que junto com um parceiro lhe dera uma surra, para não parecer um “maricona” e, mesmo assim, continuava procurando por ela.     

Num dos encontros, com um fotógrafo, a garçonete escuta uma reflexão sobre trabalhar no front de uma guerra: “A gente se acostuma com qualquer coisa, até com a guerra. Nos primeiros dias, você passa correndo na frente do inimigo. Depois, se nada acontece, você passa andando rápido. Um tempo depois, anda normalmente, como se estivesse andando na Paulista” (p. 84). Roubar para a garçonete, pode ser comparado a essa experiência do fotógrafo. 

A atmosfera da narrativa é repleta de melancolia. As diversas pessoas que interagem com a garçonete são solitárias, viveram ou vivem dramas reais, tais como a arquiteta, com câncer, o fotógrafo de zona de conflito. O livro coloca várias reflexões sobre a vida, sobre o consumismo e sobre a violência contra transexuais, são superficiais, mas deixam margem para reflexão. Como por exemplo, “...a gente é a soma das coisas que vimos por aí” (p.85)

Estilo da autora

A autora mostra um humor fino, sutil, às vezes irônico em vários momentos, principalmente, nas reflexões da garçonete. Um certo momento ela olha para um dos parceiros de cama e pensa: “Ele sorri para mim. Coitado, ele sorri para mim” (p.11).

Ela fala em “passarinhos desajustados” (p. 17), para se referir aos pássaros que começam a cantar ainda de madrugada. Sobre os ensinamentos que recebia de Tiana sobre roupas, estilistas e épocas a garçonete pensa “Não é um assunto de que gosto muito, mas, queira o não, eu estava atuando nesse ramo” (p. 25) 

No momento em que uma galerista fala que está cansada da vida em aeroportos, festas, coquetéis, galerias, a garçonete tem vontade de “...sugerir que ela tente um novo circuito festa na laje, hospital público, ponto de ônibus, rodoviária...” (p. 116) 

Alguns capítulos ganham o nome do objeto que a garota subtrai dos seus acompanhantes: “Óculos Tom Ford”, “Blazer de paetê Laurence Kazar”, “Masbaha de madrepérolas” e “Abotoaduras Pierre Cardin”, entre outros. É interessante que a protagonista faça a medição dos sorrisos em percentual, 10%, 20%, 70%, etc.

A autora não usa travessão ou aspas nos diálogos, mas é feito de tal forma que nada fica confuso ou estranho. A narrativa é feita na primeira pessoa, de forma leve e ágil, às vezes com um vocabulário vulgar, sotaque paulista, mas tudo dentro do contexto da trama. 

A autora consegue manter o suspense até o final, ela vai roubar o livro? 

Ambientação

A narrativa está ambientada em São Paulo, basicamente ao redor da Av. Paulista, trata de assuntos polêmicos, mas com leveza. A autora contrapõe as várias São Paulo, mostrando o lado rico e o lado miserável da cidade. A garçonete fala do local onde encontrará o Biel da seguinte forma: “Para lá da Augusta penteada pelo dinheiro, para lá da Augusta monitorada pelas câmaras, para lá da Praça Roosevelt, numa ruazinha escura e suja, mais ou menos no início do intestino da cidade” (p.29). 

E noutro momento, a personagem reflete sobre a cidade e sua população: “Essa era a São Paulo de que eu gostava, a São Paulo depois do expediente, quando as pessoas afrouxavam a gravata e deixavam entrever [...] as marcas de viver numa cidade tão obcecada com a produtividade” (p. 30). Mas há, também, outra São Paulo sobre a qual a garçonete reflete “..que eu renego, de todas as cidades que existem dentro de uma grande cidade a mais desprezível, a dos prédios altos com portarias altas, de mais helipontos do que bancos ou jardins (p.99).

A autora mostra São Paulo, com toda sua opulência, mas também o lado dos desvalidos. A solidão é uma constante na narrativa com por exemplo quando ela diz: “Desses prédios, descem pessoas que não sentam nos bancos, nem contemplam o chafariz, só fumam um cigarro e voltam correndo para dentro..” (p.12). 

Sobre a arquitetura, a garçonete observa: “Na altura dos meus olhos, estava a cidade na sua forma clássica, cinza e vertical, aqui e ali pontuada por uma pichação ou por uma janela [..] com pequenos traços do horizonte escapando como esmolas entre as construções” (p.39). Destaca, também, que no meio de tantas desigualdades, algo se destaca igual para todos: “Lá em cima estava o céu, o mesmo modelo que cobria a Oscar Freire e a Faria Lima, a Vieira Souto e a Quinta Avenida azulão e cravado pelo sol...” (p. 39).

Finalmente, fica a pergunta: tudo pode ser roubado? Essa é a questão sobre a qual a protagonista e Biel discutem em determinado momento. 


terça-feira, 11 de julho de 2023

A pediatra - Andrea del Fuego


Autora

ANDRÉA DEL FUEGO, pseudônimo da escritora Andréa Fátima dos Santos, nasceu em São Paulo, em 1975. Escritora e mestre em Filosofia pela USP, publicou os volumes de contos minto enquanto posso (O Nome da Rosa, 2004), nego tudo (Fina Flor, 2005), engano seu (O Nome da Rosa, 2007) e as miniaturas (Companhia das Letras, 2013), além de diversos livros juvenis e infantis.

Seu primeiro romance, Os Malaquias (Língua Geral, 2010), ganhou o Prêmio Saramago de literatura.

Curiosidades sobre a autora

Na ocasião do Prêmio Saramago de literatura, Andrea estava gravida de seu primeiro filho. Na ocasião, conheceu Pilar Del Rio, viúva de Saramago. No momento da premiação Pilar perguntou-lhe qual seria o nome da criança e ela lhe disse que seria Francisco. Pilar lhe disse “ainda tem tempo de colocar José”. Andrea tocada pela fala de Pilar batizou seu pequeno com o nome Francisco José. Outra curiosidade está relacionada ao destino da premiação. O prêmio de 25 mil euros recebido por Andrea foi utilizado para custear profissionais de parto humanizado. A criadora da pediatra que não gostava de crianças, revela-se, portanto, uma mãe prana!

Em relação ao seu pseudônimo Andrea conta em entrevistas que quando jovem escreveu contos “sem” eróticos, apresentando o trabalho para um amigo que gostou da escrita e a convidou para ser colunista de uma revista respondendo duvidas sexuais dos leitores. O editor, no entanto, informou que “Andrea de Fatima” não seria adequado. Foi quando sua sogra sugeriu Andrea Del Fuego inspirado em luz Del Fuego, por sua vez pseudônimo de Dora Vivacqua, mais conhecida pelo nome artístico Luz Del Fuego, e que foi uma dançarina, naturista, atriz, escritora e feminista brasileira. Destacou-se como pioneira na implementação do naturismo no Brasil entre os anos 1940 e 1950, tendo sido a fundadora do primeiro reduto naturista da América Latina e a primeira nudista brasileira. É também reconhecida por sua contribuição na luta pela emancipação das mulheres. A autora conta que na época não sabia da história de luz Del Fuego, mas depois que a conheceu gostou muitíssimo e adotou o nome artístico.


A obra

A capa, conforme conta a autora, foi escolhida por ela em um banco de imagens. A foto pertence a uma atriz alemã da década de vinte, que originalmente estava com uma suástica na vestimenta e encantou a autora pelo olhar vazio e absorto. A escritora ainda se amparou no efeito contraditório que a imagem inspira: uma mulher, medica que tem como profissão cuidar de criança, fumando.

Resumo da obra e seus personagens 

A obra é narrada em primeira pessoa, sem pontos e travessões em fluxo continuo de pensamento. A narradora é a única testemunha dos acontecimentos. Temos acesso apenas ao que passa em seus pensamentos. São 55 pequenos capítulos todos encapsulados na mente de Cecilia e sua relação pouco empática com o mundo e com aqueles que a rodeiam. Nesses capítulos, a medica confabula sobre aqueles que passam por sua vida e com os quais ela convive, mas não quer de fato compartilhar.

A narradora é Cecilia, filha única de pai médico e mãe enfermeira, medica neonatogista que diz não gostar de crianças e que assim define sua incursão na medicina “meu caso é comum, estudei medicina desapaixonada, com o pai no leme”.

Através da narrativa nos sãos apresentados personagens em variado grau de opacidade. Temos o marido do qual se divorcia. Homem que segundo a narradora é privilegiado do ponto de vista financeiro tal como ela, mas sofre de depressão. Cecilia demonstra forte desinteresse pelo marido e acaba por se separar dele nos primeiros capítulos do livro.

Posteriormente nos é apresentado seu amante, Celso. Personagem masculino de pouca expressividade, casado e que leva a esposa para ser paciente da amante, confiando-lhe não somente os cuidados no recém-nascido como também a saúde de sua esposa no momento do parto.

A esposa de Celso tem descrições bem contidas. Sabemos que é advogada, que sofreu na primeira gestação e que na segunda gestação apresentou quadros de depressão e ansiedade e por fim uma gravidez de risco. As aparições narrativas da esposa são sempre concessões clínicas da narradora que permite que o amante a faca de ouvinte de suas agruras domesticas única e exclusivamente para ganhar terreno para suas pretensões no relacionamento extraconjugal.

Outra personagem muito interessante é Deise. Figura tipicamente nacional, a da empregada que dorme em casa e fica a disposição do patrão, Deise vai ganhando terreno no monologo mental de Cecilia a medida que suas complexidades tipicamente humanas vão sendo colocadas na mesa: o fato de estar gravida, de o pai da criança ser o marido da Irma, a dependência alcoólica, todas esses acontecimentos vão ocupando a mente de Cecilia mais pela proximidade física do que por uma solidariedade emocional para com a situação de vulnerabilidade e desamparo da jovem, trata-se portando de uma clara relação de poder. A configuração da complexidade inerente da relação de intimidade e hierarquia típica do trabalho doméstico aqui é escalonada a máxima potência na medida em entra em cena o amante de Deise, Robson. Outra figura masculina representada tab. de forma muito opaca, Robson, o vigia da pizzaria pinheiros, aparenta certa insolência na medida em que transita da paisagem mental de Cecilia para a sala de estar de sua casa. Alterando uma fugaz atração que Cecilia teve sobre ele depois de saber de sua relação com Deise. De tensão erótica para desconfiança e hostilidade.

Na sua paisagem profissional temos também personagens que despertam desasseio em Cecilia. Temos o médico que pratica a medicina humanizada, área medica que gera desprezo para Cecilia. E outros elementos que orbitam este universo do parto humanizado Douglas, professoras de yoga.

Dentre eles, Jaime é o que mais a incomoda justamente por ser o antípoda de suas pratica profissional. Medico alternativo, querido pelos colegas, estudioso e considerado “o melhor”, a despeito dessas credenciais ele é uma afronta para a ciência e para a medicina,

Na esfera familiar Cecilia nos apresenta sua mãe e seu pai. Em relação a mãe sua mãe parece não esboçar grande cuidado ou atenção. Muito provavelmente se sente superior a mãe que é enfermeira enquanto ela é medica. mas a seu pai devota verdadeira apego. É em relação a ele que parece de fato ter alguma empatia e admiração. Seu pai é o médico diligente e idealizado ao qual todo paciente gostaria de confiar sua vida e saúde. Sua narrativa acena para uma relação quase edípica, somente abalada pela doença do pai, a fragilidade real, os cuidados, as doenças não conseguem amparo no coração dessa pediatra, até mesmo quando vindos daquele que aparentemente é o que ela mais ama

Por fim temos Bruninho, filho do amante, criança da qual participou do parto e para o qual Cecilia ira devotar um amor maternal nunca antes visto. Bruninho é uma criança que, pelo que indica a narradora é negligenciada e solitária. De modo que esse personagem parece de alguma maneira refletir a própria história da narradora. Filha de um médico workaholic e de uma enfermeira consumida por plantões, solitária e carente, Cecilia parece projetar em Bruninho a sua necessidade de resgate amoroso. A Bruninho Cecilia quer dar o colo ao qual recorre mesmo adulta na figura de seu pai.

Além desses personagens também podemos destacar a figura dos pais das crianças, das mães cuidadora de crianças com doenças crônicas, a figura da baba, das escolas infantis e da própria medicina. Nenhuma dessas pessoas ou instituições é poupada do olhar mordaz da pediatra. Os pais são insuportáveis, as babas aqui são desatentas e sem afeto. As escolas infantis são pretensiosas e enganadoras a medicina por aqui é tirada do pedestal e reduzida a uma sucessão de protocolos que pode garantir sucesso profissional não apenas para os vocacionados, mas inclusive para aqueles que detestam a profissão.


Avaliação da obra 

O monologo estabelecido por Cecilia é mordaz e verborrágico. Cecilia tece a vida por meio de protocolos e acoes nas quais todos aqueles que cruzam seu caminho são descartáveis. Os sexos tampem é visto de forma livre e sem limites, mas também parece um envolvimento protocolar sem verdadeira entrega. Não há conflito morais. O deserto particular da pediatra a engendra em devaneios que somente ela própria vive. Embora amoral e canalha nenhuma de suas guerras particulares cruza o limiar da maldade. Elas ficam apenas no plano mental. Embora não goste de crianças, nunca as matou. Embora deteste o médico alternativo, nunca denunciou Jaime ao conselho de medicina pela pratica de parto domiciliar, mesmo sabendo do endereço da esposa de sua amente, espreita, mas não chega as vias de desmascarar celso, e muito provavelmente embora tencione raptar o pequeno Bruninho, possivelmente não o levara para o litoral.

Cecilia é uma canalha de cativa justamente por não cruzar a fronteira do pacto social. O grande mérito da obra ao meu ver é o elogia a liberdade de pensamento. Em nossa intimidade todas podemos ser Cecilia. Ou melhores todos somos Cecilia em alguma medida. A mente não é pautada pela regra da moral social.

Por fim, é importante destacar a relevância das escritoras femininas contemporâneas. Cecilia desorganiza o clichê e a posição preá estabelecida da mulher de devota ao cuidado a mulher livre e desempecida para fazer aquilo que quiser.

Recomendo o livro pela facilidade da leitura e pela audácia bem-humorada da autora.

Ademais me fascina a capacidade da autora de escrever uma personagem que, ela própria adepta do parto humanizado, é o extremo oposto daquilo que ela pratica. Dessa forma fica a salvo de demagogias e militâncias que são importantes para a sociedade, mas podem se um desserviço para a literatura.

Cecilia é uma verdadeira iconoclasta que vilipendia de forma bem caustica os pedestais do exercício da medicina, do parto, da maternidade e muitos clichês como o da mulher vocacionada ao cuidado. Fascinante é o poder da arte que derruba estatuas sem precisar destrui-las.