ou LÍNGUAS, de Domenico Starnone
por Claudine M. D. Duarte
O autor, Domenico Starnone nasceu em Nápoles, em 1943. Publicou seu primeiro livro aos 42 anos e é autor de romances, além de roteiros, peças de teatro e artigos.
“O banal é a superfície à qual nos acostumamos, mas se a gente arranhar aparecem coisas incríveis. O banal é um modo de não contar, de estacionar as coisas. O trabalho de um escritor é mostrar que o óbvio não é tão óbvio”, afirma Starnone, que, embora quisesse ser escritor desde a adolescência, se dedicou ao ensino. Nos anos setenta, começou a escrever no jornal IlManifestocolunas sobre o cotidiano na escola e isso representou o detalhe banal em sua vida: “Agora não sei se sou um professor ou um escritor”. Em 2001, recebeu o Prêmio Strega e dele, já temos publicados 5 (cinco) livros pela editora Todavia, todos traduzidos pelo Maurício Santanna Dias: Laços (2014), Assombrações (2016), Dentes (2018), Segredos (2019) e Línguas (2021).
Confesso que a tradução, aqui no Brasil, dos títulos de seus romances me incomoda e partilho aqui os títulos originais e, para comparação, como foram traduzidos para o inglês:
· Laços, Lacci, Ties
· Assombrações, Scherzetto, Trick
· Segredos, Confidenza, Trust
· Línguas, Vita mortale e immortale dela bambina di Milano, The Mortal and Immortal Life of the Girl from Milan
O título escolhido pelo autor confere um peso maior à existência da “menina de Milão” na vida do narrador que o foco nas várias línguas ou dialetos adotados pelos personagens. Como em romances anteriores, Starnone, opta pela narração em primeira pessoa e a defende afirmando que
“a narrativa do eu é sempre uma investigação sobre a nossa turbulenta clausura existencial e sobre as interrogações que derivam dela. Como realmente somos? Bons, maus, corajosos, vis, infiéis, inteligentes, estúpidos? Sou a peça de qual quebra-cabeça? Amo, sou amado de volta, ajo em prol do melhor, sofro, provoco sentimento? E, posto esse frágil eu, o outro como é? Melhor que eu? Pior que eu? Os neurônios-espelho não nos ajudam muito. Todo realismo não pode senão narrar os desvios e as inclinações do que se choca em outros eus.”
Assim percebi construído esse livro, com desvios e inclinações do narrador, Mimi, que, ao encadear lembranças, reflexões existenciais e eventos aparentemente banais, vai se descobrindo nas relações com outras pessoas.
A trama tem Nápoles como cenário e nos traz cenas da infância do narrador, com destaque para o relacionamento com dois personagens: a avó materna, que, apesar de ter outros netos, demonstra predileção por Mimi e Lello, um amigo da mesma idade. Uma garota se muda para o prédio da frente e, em sua sacada, ela dança, conquistando os dois garotos que chegam a ensaiar duelos para terem direito à “milanesa”. O encantamento de Mimi com “a menina de Milão” não se resumia à sua dança, mas também às frases em italiano que a escutou pronunciar. Aquela língua harmoniosamente falada era muito mais bela que o dialeto napolitano de sua família. Descreve breves, porém profundos diálogos com a avó sobre Amor e Morte, constrói fantasias sobre o mundo dos mortos e se compara a Orfeu resgatando a amada do mundo dos mortos.
“... se algum dia pudesse lhe falar, que ela soubesse – uma palavra puxa outra – que eu estava apaixonado por sua bela alma e que meu amor seria eterno, e que, se ela fazia questão de dançar no parapeito e cair lá embaixo, depois poderia contar comigo com certeza, pois eu iria pessoalmente buscá-la no além-túmulo, sem jamais fazer a bobagem de me virar para olhá-la.”
Ao inserir o mito de Orfeu* em sua narrativa, Starnone nos proporciona uma deliciosa história de um amor (quase) eterno. Lello conta a Mimi que a garota faleceu, afogada e aí se dá o fim da ‘vida mortal da menina de Milão’. A amada, mesmo morta, viveria (vive?) nas memórias do amante. Dez anos depois, já na universidade, estudando Letras, o narrador é atraído por um curso de Glotologia pois se interessa pelas línguas em geral e as poucas palavras que escutou a milanesa pronunciando voltavam à sua mente, com direito a imagens invadindo seus sonhos.
“Talvez tenha sido a imagem do Vesúvio exterminador; talvez a ideia de que em nosso planeta há continuamente decessos de indivíduos e extermínios em massa tão intoleráveis que até os deuses se lamentam de os terem permitido; talvez só o fato de que eu tinha a cabeça cheia de formulas literárias e buscava boas ocasiões para usá-las. (...) E, no italiano apaixonado que falávamos entre nós, concluí muito acima do tom deste modo: quase tudo daquela menina agora se perdeu, por isso hoje, enquanto o professor dava aula, senti que a milanesa e sua voz se conservaram em minha cabeça como num papiro carbonizado que uma máquina – uma espécie de autômato do século XVIII – desenrola com delicadeza, restituindo-me a história do tumultuoso primeiro amor. (...) misturando o Vesúvio, Pompeia, Herculano e uma menina milanesa, era capaz de organizar um apocalipse pessoal e médio-baixo.”
Com maestria, o autor mescla a presença da ‘menina de Milão’ na vida do narrador e o papel fundamental exercido por sua avó, Anna. Isso me encantou. Como no livro Assombrações, Starnone descreve algumas pinceladas de crueldade que as crianças são capazes de ter com seus avós e ao mesmo tempo, retrata uma vida afetiva que desvenda histórias do passado e resgata o que lhe é caro e único: o prazer da palavra. Em três tempos, na infância, na universidade e na vida adulta, o narrador consegue delinear seu amadurecimento sempre com a ajuda de Anna, Nanni ou Nonnà – como era chamada pelos netos. Línguas é uma preciosidade, em 3 atos intrinsecamente conectados, somos cativados pelas pequenas (grandes) reflexões do narrador e como chegou a uma vida satisfeita de si. O capítulo final devia vir com um alerta “para ler e reler, sem moderação”:
“... já sabendo que esse pouco de realmente vivo que fazemos ao viver permanece fora da escrita, que os signos são constitucionalmente insuficientes, oscilam entre comentário e exaustão, e ainda bem que é assim.”
Outro ponto relevante é como a escrita do livro é imagética, colocando luz, cor e sons em alguns personagens e deixando outros 'embaçados'. Como, por exemplo, o restante da família de Mini: pai, mãe e o irmão mais novo. Sabemos que eles existem, mas deles, apreendemos muito pouco. São flashes, espectros, com poucas contribuições ao processo de reconstrução da memória do narrador, mas, em verdade, muito importantes para a criação do ambiente doméstico tão dependente dos trabalhos da avó.
Recomendo a leitura desse e de outros livros do Domenico Starnone. Concordo com ele quando afirmou que a literatura “deve mostrar aquilo que resistimos a ver, ou que escondemos porque nos dá medo. É preciso contar a verdade da própria experiência, isso é a única coisa que um escritor tem. E isto não significa fazer autobiografia, e sim usar a experiência para traçar as histórias.” E talvez por isso use sua cidade natal como cenário: é um lugar complexo, que não pode se encaixar em um estereótipo: “Sobre Nápoles sempre há algo mais a dizer”.
***
*Orfeu resolveu buscar sua amada nas paragens onde habitam os corações frios. A melodia de sua lira fez os que viviam sem luz correrem para ouvi-lo atentos e silenciosos, como pássaros dentro da noite.
Ao abordar o Rei das Sombras, Orfeu obteve dele o direito de retornar com Eurídice ao sol. Porém seu pedido seria atendido com a condição de que não olhasse para trás, para ver se sua amada o seguia. Mas, impaciente, ele olhou para ela e a perdeu para sempre.