sábado, 23 de março de 2024

Oração para desaparecer (Socorro Acioli, 2023)

 

por Daniela

Oração para desaparecer é o segundo romance da escritora cearense Socorro Acioli. A autora é jornalista e doutora em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), é professora e coordenadora da especialização em escrita e criação da Universidade de Fortaleza (Unifor). Tem mais de vinte livros publicados, entre eles ‘Ela tem olhos de céu’, que recebeu o prêmio Jabuti de literatura infantil; a coletânea de poemas Takimadalar, as ilhas invisíveis; e os romances A cabeça do santo (que ganhou edições na Inglaterra, Estados Unidos, França, México e Itália) e Oração para Desaparecer.

 Socorro soube da história da igreja soterrada em Almofala, Ceará, por uma amiga, em 2015, e começou a procurar mais informações.

“Foi quando achei uma crônica de Carlos Drummond de Andrade no Correio da Manhã de 17 de novembro de 1946. Ele pedia que sábios, poetas, artistas prestassem atenção à igrejinha de Almofala. E contava a história da Labareda, dos Tremembés, da disputa pela santa. E me deu de presente Joana Camelo, a prostituta que jogou um tamanco na cabeça do padre. Depois disso, eu decidi atender ao pedido do Drummond, tantos anos depois. Recebi Joana Camelo de suas mãos. Há uma Almofala no Brasil, sete Almofalas em Portugal. Comecei uma pesquisa intensa, com várias visitas à igreja, às casas de cura dos pajés Tremembés, ganhei um colar de proteção, fui ao rio ver cavalos marinhos, conheci uma das Almofalas portuguesas e dediquei sete anos muito felizes ao ‘Oração para desaparecer’. Escrevi três versões, joguei duas no lixo. A terceira é essa, que agora chega aos leitores, resultado da imensa paz de viver dentro deste livro de 2015 a 2023.” (Estado de Minas, out 2023)

A igreja de Almofala completou 300 anos de história em 2012.  Durante o século XVIII, com os primeiros desbravadores, a Igreja se fixou no território cearense para o trabalho de catequese, antecedendo o poder civil. Vários religiosos foram proprietários de sesmarias e  o território cearense foi pontuado por ermidas, capelas, aldeamentos pequenos e efêmeros como no caso de Almofala. A província de Almofala (Almo hala, do árabe, lugar de permanência temporária), segundo registros do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IPHAN, 2013), tem sua origem ligada à Carta Régia de 8 de janeiro de 1697, que determinava ao governador do Maranhão a doação por Sesmarias, de todas as terras necessárias aos índios Tremembés. Até 1696 o clima era de grande tensão entre os Tremembés, índios que habitavam a região, e os portugueses. O Pe. Assenso Gago, da Companhia de Jesus, mediou essa situação de tensão ao escrever ao Rei de Portugal mostrando-lhe a conveniência de aldear os Tremembés, entregando-lhes sesmarias de terras entre o rio Aracatymirim e do Timonha, atual Almofala. Sua majestade, por meio da Carta Régia 1697 respondeu à solicitação do jesuíta, concedendo uma légua de terra aos Tremembé, bem como aos índios do Ceará Grande, Pernambuco, Paraíba. Ordenou ao governador do Maranhão que não importunasse esses índios e nem os apartassem dos lugares por eles escolhidos para viverem. Inicialmente, bem próxima ao mar e ao rio Aracati-mirim, uma capela de taipa e coberta de palha foram erguidas para que fosse colocado início às atividades de educação religiosa. No início do século XVIII, nos anos de 1712 a 1758, no mesmo local da igreja provisória, houve a construção da igreja já em alvenaria com uma mescla de técnicas eruditas e populares. A presença da igreja no centro mostra como o distrito de Almofala cresceu ao seu redor (IPHAN, 2013). Em 1897, uma duna começou a se deslocar e foi engolindo a igreja e o aldeamento, inclusive as terras dos tremembés. A igreja ficou soterrada até 1943, quando a duna começou a se mover e a população local começou a voltar e desenterrar a igreja.

Nas palavras do Drummond, em 1946:

“Diante de algumas fotografias pertencentes ao arquivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, assalta-me o desejo de convocar os poetas, os sociólogos, os pintores, os romancistas e os músicos do Brasil e pedir-lhes que vejam, mas vejam longamente a igreja de Almofala.

Almofala, como Tróia, não é:foi. Foi um aldeamento de índios tremembés, a mais de cem quilômetros a oeste de Fortaleza. Em 1608 estabeleciam-se os jesuítas nas praias cearenses, começando a catequizar os silvícolas chefiados por Juripariguaçu, ou seja, o grande Diabo. Esse nome talvez influísse na fama que vieram a ter os tremembés: índios feros e turbulentos, afirma Berredo; mas o padre Antonio Vieira e, modernamente, Paulino Nogueira consideram-nos pacíficos e morigerados. O certo é que foram atraídos, evangelizados, atacados, expoliados e exterminados, segundo a sorte habitual do nosso gentio, e como calhava nessa ou naquela conjuntura. Hoje restam poucos e melancólicos tremembés que como a maioria de seus irmãos brasileiros, de sangue puro ou mestiço, não tem terras. Nem igreja porque a deles, Nossa Senhora da Conceição de Almofala, a areia comeu.

(...) Aqui está uma fotografia da DPHAN: meia dúzia de ‘cabras’ a cavalo, dez ou doze mulheres de saia arrastando o chão, guarda-sóis abertos, em torno de um monte de areia que obstrui a entrada da igreja e lhe devorou parte dos fundos; por um óculo aberto sobre a porta principal, a fotografia é branca: o céu do Ceará, num dia remoto. Outra fotografia, esta de há poucos anos tirada por um representante da repartição, o pinto Rescala, mostra a fachada inteira, liberta do areial, e o mesmo óculo deixa passar o mesmo céu, prolongando a visão através de regiões desoladas. Os caboclos conseguiram, após  37 anos, remover a duna imensa, mas o templo está ermo e inútil, presidindo a solidão do lugar. E bem em frente da igreja, a uns trezentos metros (onde outrora foi uma colina) outras fotografias mostram o espantoso, o trágico cemitério, que se diria um desses quadro de Yves Tanguy onde estão dispersas formas incoerentes numa perspectiva rasa e infinita. Ou certas composições angustiosas dos surrealistas. Ou uma cidade que o terremoto varresse. Ou os vestígios, que não sabemos interpretar, de alguma civilização sepultada há muito tempo, e que antecipa em nós o frio de nossa própria destruição. Mas não estamos no Egito: estamos ali no Ceará, e em 1898 o padre Antonio Tomás, autor de um soneto bastante conhecido, celebrava a derradeira missa na igreja atacada pelo vento.

Ele nos conta o episódio. Saíra de Acaraú para salvar as imagens que cumpria remover com urgência: o morro de areia crescia atrás da igreja e várias casas tinham sido engulidas. Os moradores demoliam suas moradias e iam reedificá-las em paragens mais abrigadas. Rui o teto da capela. O padre resolve oficiar uma última vez, aproveitando a madrugada, que é quando o vento sopra mais brando. Reúne toda a população pobre da vila e dos arredores. Cerca de três mil pessoas, tomadas de assombro, penetram a custo na igreja ou enchem o adro. Padre Antonio Tomás, ao Evangelho, explica ao povo que é preciso levar as imagens até a capela do Tanque do Meio a dez quilômetros de Almofala: a igreja está perdida. Vamos em procissão, diz ele. E continua a missa, mas ninguém a ouve. Os fiéis voltam-se para as imagens de que irão ficar privados, e um côro de gemidos, de suspiros, de soluços cobre a voz do padre. As mulheres entoam um bendito a Senhora da Conceição, em quadras improvisadas e os homens, batendo no peito, secundam. O eco vai perder-se ao mato longe.

A situação torna-se grave quando chega a notícia de que, por trás do morro de areia, uns ‘cabras’ armados se dispõem a obstar a retirada das imagens. O padre manda chamar os chefes do movimento, explica-lhes com doçura que ou as imagens são removidas ou tudo afunda na areia; eles continuam obstinados. Nisso Joana Camelo, uma mulher do povo, arrebata a imagem de Nossa Senhora do Rosário e saiu triunfante com ela. Padre Tomás grita aos mais próximos que a detenham. Ninguém o ouve. Então o padre corre no encalço da fugitiva, lutam os dois, toma-lhe das mãos a imagem. Os chefes da insurreição procuram defender Joana, dois homens ajudam o vigário, estabelece-se a confusão; ‘fechou-se o tempo’, escreve o padre Tomás; e triunfou o partido deste, depois de muita cabeça quebrada. O padre manda o subdelegado soltar os presos, como convêm, e todos arrependidos e confortados, iniciam a marcha para o Tanque do Meio, onde o vento não castigará mais os santos.

E a igreja desapareceu na areia, como desapareceram as casas, o cajueiral, a aldeia inteira dos tremembés. De 1905 é a sede do novo distrito, com duas casinhas para começar Itarena. Almofala ficou sendo uma lembrança.”

O livro Oração para Desaparecer é dividido em 3 partes. Na primeira delas, ‘Você trouxe todas as palavras’, uma jovem mulher narra, em primeira pessoa, como apareceu e foi resgatada por um casal de idosos em uma aldeia portuguesa chamada Almofala, perto de Caldas de Rainha. Chamada pelo casal e seus parentes de ‘ressurrecta’, saiu do buraco sem memória, sem cabelo, pelada, vendo pessoas mortas e falando português do Brasil. Está contando os fatos de alguns meses antes a um homem, Félix Ventura, vendedor de passados, para que ele crie documentos e invente uma história de vida evidenciada, já que ela nunca se lembrou de seu passado. Cida, o nome com que foi batizada por sua família portuguesa, precisa  de um passado produzido para poder viver seu futuro em Moçambique com Jorge Momade,  por quem se apaixonou. Anos depois, ao encontrar uma imagem quebrada de Nossa Senhora da Conceição na casa da família que a abrigara, ela tem um sonho e se lembra de onde veio e seu nome verdadeiro: Joana, de Almofala.

“ A vida é feita de palavras, elas explicam e fazem nascer e morrer. Se ninguém pronucia  um nome este ser está morto, mesmo que respire e leve um coração batendo no peito. Estar vivo é ser palavra na boca de alguém. Não lembrar delas me condenou ao abismo, não saber o nome das pessoas, do meu lugar, a narrativa da minha vida, tudo o que somos é história e história se conta com palavras. Por isso, bastou um bilhete. Lembrei-me da missa: “Mas dizei uma só palavra e serei salvo.” Fui salva por apenas duas, o nome da cidade de onde vim e meu nome.” (p.111)

Na parte dois, “Os ossos dela não estão lá”, quem narra é o biólogo Miguel, contando a Jorge sua história em Almofala, Ceará, sua pesquisa com cavalos marinhos, seu contato com os tremembés e seu sofrimento de 49 anos sem saber o que foi feito da mulher que amava, Joana Camelo. Que desapareceu na areia da igreja soterrada.

Na parte três, “A língua de fogo avisou”, é novamente Joana que  narra, em primeira pessoa, sua volta à Almofala brasileira e a sua família  tremembés, que a acolheram quando foi abandonada pela mãe na igreja de Almofala. Traz a santa quebrada de volta aos seus donos, reencontra Miguel e suas memórias.

“Só posso fazer uma coisa agora: renascer mais uma vez. Não vou parar de renascer nunca e acho que é assim com todos nós.”

O romance é bastante envolvente, com texto limpo, fluente e com boas frases e citações. A autora homenageia a língua portuguesa, que é fio conector de todos os personagens. Faz homenagens também a outros autores, como ao José Eduardo Agualusa, emprestando seu personagem do “Vendedor de Passados”, o angolano Félix Ventura. E também ao José Saramago, com a menção ao Livro dos Itinerários e à epígrafe do último livro do autor,  ‘A Viagem do Elefante” (“Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”). Ainda, é clara a influência do realismo mágico sul-americano, como Garcia-Márquez, no tom do romance e escolhas do enredo.

No entanto, fiquei um pouco incomodada com alguns recursos narrativos que a autora empregou, que a meu ver, empobreceram um pouco o resultado. Gostei muito do início do livro, da descrição inicial do ‘parto’ da terra, da confusão mental e desespero de não se saber quem é, porque está ali, o que aconteceu. Mas a entrada do personagem do Félix Ventura já me causou estranheza. Qual o sentido daquele personagem? Mesmo Jorge e Miguel me pareceram acessórios à trama, o livro poderia ter sido construído sem a presença deles.  Também não convence, mesmo dentro de uma história de realismo anímico, o gap de 49 anos, que para Joana foram sete. Ela teria ficado 42 anos com a vida suspensa, antes de aparecer na outra Almofala? A diferença da passagem do tempo de foram diferente da realidade pareceu apenas um artifício para que ela não pudesse resgatar a relação amorosa com Miguel.  O resgate da história da igreja de Almofala e da religiosidade dos tremembés me pareceu a verdadeira riqueza do livro.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Resenha de "A mulher que escreveu a bíblia", de Moacyr Scliar

 A Mulher que Escreveu a Bíblia (Brasil) — 2007

Autor: Moacyr Scliar

Editora: Companhia de Bolso

168 páginas




Sobre o autor (fonte wikipedia e outras)

Moacyr Scliar, nasceu em Porto Alegre, em 1937, e faleceu na mesma cidade, em 2011. Filho de imigrantes judeus do antigo Império Russo, Scliar formou-se em medicina e atuou como médico sanitarista e professor universitário. 

Além disso, foi escritor. Publicou mais de 70 livros e ganhou muitos prêmios literários, entre eles, quatro Jabutis, incluindo A Mulher que escreveu a Bíblia (prêmio Jabuti de Literatura, categoria romance, de 2000). 

Suas obras foram traduzidas para doze idiomas. 

Scliar foi o sétimo ocupante da cadeira 31 da Academia Brasileira de Letras. 


Sobre a obra 

A mulher que escreveu a Bíblia é uma sátira muito criativa e bem contada sobre o processo de redação da Bíblia se ela fosse escrita por uma mulher nos tempos de Salomão. 

No prólogo, o autor narra o encontro de uma mulher “feia” com um terapeuta de vidas passadas charlatão. A mulher dizia-se infeliz nos relacionamentos, em particular num relacionamento que teve com um funcionário da fazenda de seu pai que a troca por sua irmã. Após algumas sessões, a mulher desaparece e deixa uma carta ao terapeuta em que se diz agradecida e curada após descobrir que, no século X antes de Cristo, foi uma das setecentas esposas do rei Salomão - a mais feia de todas, mas a única capaz de ler e escrever. 

O romance, então, trata da história dessa mulher (sem nome) que, por ironia do destino, acaba encontrando-se em Jerusalém, casada com o mais poderoso dos soberanos da época. 

A menina, primogênita da família de um rico criador de cabras, era tão inteligente quanto feia. Vivia reclusa junto às montanhas e às cabras da fazenda de seu pai e nutria uma paixão não correspondida por um pastorzinho, que fora expulso daquela região ao engravidar sua irmã mais nova. 

Ciente da inteligência da menina, o escriba de seu pai (que também era analfabeto) decidiu ensiná-la a escrever.

Um dia, seu pai recebe a visita de um mensageiro do rei Salomão que determina que o fazendeiro conceda sua filha primogênita a contrair matrimônio com o rei em troca do estreitamento de laços políticos.

A menina parte para o templo e se une às outras 700 esposas do rei. Ao descobrir que sua mais nova esposa sabia escrever e percebendo a astúcia da menina, Salomão pede que ela se junte ao grupo de escribas do reino, que havia sido incumbido de escrever a história do povo de Israel, mas ainda não havia conseguido concluir o feito.

Ela, então, escreve o conjunto de livros que hoje conheceríamos como o antigo testamento bíblico. Seus textos são revisados constantemente pelos escribas, que acabam realizando edições exageradas. A obra seria apresentada à rainha de Sabá que estava em visita ao reino de Salomão, quando sofre um atentado e é parcialmente incinerada. O meliante era justamente o pastorzinho que ela conhecia da fazenda do seu pai, que, expulso, encontrou abrigo junto a um grupo de missionários daquela região. 

A prosa de Scliar é muito interessante porque, além de ser muito leve, traz aspectos relacionados ao fluxo de consciência da protagonista, o que abre espaço para a inserção de palavras chulas e reflexões muito particulares e divertidas. Nesse sentido, a obra é, claramente, é um texto feminista, uma apologia à inteligência e sagacidade do feminino.

A despeito do que possa ser imaginado ao lermos o título, a obra em si, traz muito pouco de contexto religioso, dogmático ou doutrinário – chega a ser quase o contrário! Apesar disso, percebe-se que o autor é um grande conhecedor dos textos bíblicos enquanto material literário, e, em certos trechos, ter o conhecimento prévio das histórias mencionadas auxiliaria na compreensão de certas ironias e referências trazidas pelo autor. 

A mulher que escreveu a bíblia é, antes de tudo, uma obra fantasiosa, irônica e cômica que surpreende muito pela forma e é uma excelente introdução aos textos de Scliar. 


Cristiane Vianna Rauen

06 de fevereiro de 2024

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Kramp: Memórias de uma infância, nostalgia e reflexão nos tempos de chumbo do Chile.

Imagem do filme Lua de Papel de 1973


A autora

María José Ferrada (Temuco, Chile, 1977). Jornalista e escritora. Conta com uma extensa obra para o público infantil reconhecida com o Prémio Iberoamericano SM de Literatura Infantil e Juvenil 2021. A sua primeira novela para adultos, Kramp (Emecé, 2017), foi traduzida para onze idiomas, e recebeu o Prémio do Círculo de Críticos de Arte, o Prémio Melhores Obras Literárias do Ministério das Culturas, das Artes e do Património e o Prémio Municipal de Literatura de Santiago. A sua segunda novela, El hombre del cartel (Alquimia, 2021) recebeu o Prémio do Círculo de Críticos de Arte. (Fonte : https://www.wook.pt/autor/maria-jose-ferrada/3593257).

 

A autora chilena  já escreveu mais de trinta livros e começou a escrever livros infantis quando pequena para seu irmão menor. Essa inspiração se converteu em oficio. 

Ferrada se interessa em dar visibilidade para temáticas que afetam e deixam vulneráveis as crianças pequenas (e também as grandes!) como rompimentos democráticos e processos migratórios. 

A obra da autora se propõe a permitir um espaço de liberdade de pensamento para as crianças, dando lugar para a capacidade reflexiva dos pequenos e os reconhecendo como protagonistas, sujeitos de suas histórias. 

 

Kramp é uma obra que insere nesse contexto ao narrar a vida de uma garota de seus 7 ou 8 anos durante a ditadura chilena, em romance autobiográfico com pitadas ficcionais. 

É o primeiro romance da escritora para adultos 

A obra

Kramp narra a história de uma menina entre 7 e 8 anos e seu pai, um caixeiro viajante, durante os anos 70 no interior do Chile. O que os une, a principio, é um catálogo de produtos da marca Kramp (produtos de serralheria e construção) vendidos pelo pai da garota. 

A história se desenvolve entre os anos 70 e 80 em um contexto politico de ditadura militar e perseguição de opositores no Chile, esse contexto é apresentado de forma sutil e vai sendo revelado para o leitor tal qual seria para uma criança, não o compreendemos diretamente, mas a medida que o romance se desenvolve os silêncios, os sussurros, as palavras cifradas, vão ficando mais audíveis para a menina e para o leitor.

A estrutura 

O livro possui 96 páginas e é dividido em 16 capítulos curtos. 

Todos os personagens são identificados apenas pelas iniciais de seus nomes, dos quais se destaca a protagonista M, seu pai D , sua mãe “uma bela mulher”, o fotógrafo de fantasmas, vendedores do quais se destaca, o vendedor amigo de seu pai S, e uma única exceção : um estudante chileno morto pela ditadura que em meio aos “fantasmas da ditadura” é identificado com seu nome completo Jaime André Suarez Moncada.

A trama se desenvolve a partir do acordo estabelecido entre pai e filha, na ausência do conhecimento da mãe, por meio do qual a garota passa a acompanhar o pai em suas viagens de venda de produtos Kramp por diversos vilarejos do interior do Chile. Nessas viagens, que duram apenas alguns meses, a garota aprende sobre as artimanhas dos vendedores, assiste filmes ao ar livre, bebe uísque e fuma com o pai e aprende também a negociar usando de sua posição de criança para auxiliar o pai nas vendas. 

A narrativa

A novela trata da relação entre pai e filha em um mundo não mais existente, o dos caixeiros viajantes. É também um exercício de recuperar ou de narrar a infância na vida adulta. 

A narradora é uma mulher que relembra sua vida aos 7 anos de idade, fazendo toda uma trajetória emocional, desde a idealização da figura paterna, até sua desilusão no começo da adolescência e por fim uma certa compreensão de seu contexto e limitações por meio da reflexão já na vida adulta.

A tecitura da obra se dá nas vozes da garota e da mulher que se confundem, fundindo de forma muitas vezes poética e outras vezes engraçada uma parte da história da vida de M. 

Em momento algum o livro incorre no erro de trazer uma “voz infantilizada” ao contrário disso, a garota é verossímil, e sua narrativa explora o desconhecimento típico dessa faixa etária como uma ferramenta para se construir e interpretar a realidade de forma criativa, terna e cativante. Por vezes a inocência esbarra no que é genuíno de uma criança : sua capacidade de nos fazer rir e chorar em um mesma frase. 

O paradoxo entre a inocência da criança diante das situações do mundo adulto e a consciência do leitor de que os limites da moral estão sendo quebrados é explorado de forma habilidosa pela autora. 

O ritmo do livro é quase um balanço entre a reflexão da adulta e as falas e percepções de sua criança, é um jogo que mantem uma cadência agradável e confere ao livro uma leveza, mesmo quando passa pela densidade do período da ditadura, das agruras das doenças mentais, da fragilidade do exercício paterno e dos vacilos morais da profissão de vendedor. 

M vê os pais quando pequena com os olhos de uma criança, sem julgamentos, mas com a percepção curiosa visando interpretá-los com as ferramentas que dispõe. 

Sua relação com o pai é narrada em milímetros e ele ocupa a posição de patrão e pai. 

A mãe fraturada pela ditadura é descrita como uma mulher distante, como uma astronauta que só está pela metade. 

Os vendedores colegas de seu pai são vistos sem maiores censuras com suas mentiras e artimanhas para sobreviver e trapacear.

M. passa a compreender esses mecanismos e os incorpora em sua relação com o mundo: sabe a fisionomia que deve fazer em momentos de apuro, sabe o deve falar e como deve agir no mundo dos caixeiros viajantes. Divide a mesa e o cigarro com seu pai, muitas vezes mais patrão do que pai. 

roadtrip com o pai é somente abalada por um evento trágico que convoca a presença da mãe, tirando-a se de seu torpor depressivo e coloca M. novamente na trilha comum de sua infância. 

A morte do fotógrafo é o ponto inflexão na história e é o ponto mais eloquente da trama para nos apresentar o momento histórico no qual o livro se desenrola. É nesse momento que período histórico sombrio no qual a narrativa está inserida derrama sua sombra sobre a compreensão em retrospecto de M.

 

Como todo idílio de infância, este também é impossível de reviver. Adolescente, a pequena M tenta novo contato com o pai e procura, em vão, recuperar a sensação de aventura que tinha quando pequena a fazer as viagem com seu “patrão”. 

Ocorre que nada é o mesmo. Ela, o pai, o mundo são vistos agora pela lente de uma adolescente e, como esperado, todas as fragilidades são expostas, de modo que, esse parece ser o último contato da garota com aquele mundo em ocaso.

E a transição da infância de M para adolescência, é acompanhada também pelo ocaso de uma profissão, o modelo de vendo dos caixeiros viajantes é ofuscado pela ascensão das grandes lojas de rede.

Comentários Adicionais

A estrutura de capítulos curtos, somada ao repertório possível de uma criança em um ambiente hostil, a busca por validação emocional e afeto encontra no livro uma forma impar de ser representado. A ditatura passa a falar mais alto no livro, mas essa superposição de camadas, eventos e períodos é feita com maestria e simplicidade pela autora. O ocaso de uma profissão e o amor do jeito possível, expostos na fragilidade da relação paterna, são também muito bem traçados na obra. 

Leitura recomendada para todos!

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Tudo pode ser roubado - Giovana Madalosso

                                

                                                                                                               Resenha: Maria Albeti Vitoriano

A autora

Giovana Madalosso nasceu em Curitiba, em 1975, e atualmente mora em São Paulo.  Formada em jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), atuou como redatora publicitária por quinze anos e, atualmente, escreve roteiros para televisão. 

Estreou como escritora com a coletânea de contos “A teta racional”, finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional. Em 2018 publicou “Tudo pode ser roubado”, seu primeiro romance e, em 2019, Suíte Tóquio, finalista do 63º Prêmio Jabuti na categoria Romance Literário e traduzido para espanhol e inglês.  

Em 2020, foi uma das organizadoras do Memorial Inumeráveis, projeto que homenageia as vítimas da pandemia de Covid-19 no Brasil, por meio da divulgação de suas histórias. Desde janeiro de 2023 é colunista do jornal Folha de São Paulo.

Giovana foi garçonete em restaurantes da família e, também, em Nova Iorque, quando estudava roteiro de cinema, o que lhe trouxe a percepção de que toda noite é decadente e subterrânea. 

A narrativa

A personagem central do livro “Tudo pode ser roubado” é uma garçonete que trabalha em um restaurante bastante conhecido, localizado na região da Avenida Paulista. Não sabemos seu nome, durante toda a narrativa é chamada de “rabuda” e, principalmente, de “rabudinha” pelo seu parceiro no roubo de uma preciosidade. Durante alguns anos “era apenas uma mocinha honesta ganhando a vida como garçonete” (p. 18), que aproveitava as horas de folga para encontros sexuais, com homens ou mulheres.

O primeiro roubo foi por acaso, aproveitando a saída do seu acompanhante, entra no closet e encontra uma pele de raposa, que começa a examinar. O homem retorna e, com medo de ser descoberta, esconde o objeto na bolsa, leva com ela e resolve vendê-lo. É quando conhece a dona de um brechó, a transgênero Tiana (Sebastiana), que compra os objetos “surrupiados” e começa a orientá-la sobre produtos que tem valor no mercado. 

Os encontros, a escolha dos parceiros ou parceiras, passam a ser oportunidades para roubar objetos que possam ser vendidos por um bom preço e, assim, conseguir dinheiro para dar entrada na compra do apartamento onde mora, “É por isso que de vez em quando eu passo a mão numa coisa ou outra. Por uma questão previdenciária” (p. 13). Fazia parte do regulamento, por ela criado, sempre passar para frente o objeto roubado, nunca usar. Ela se intitula uma “sonhadora mequetrefe” (p. 38). 

Certa noite, é procurada por um homem, Biel, um “picareta municipal”, segundo a garçonete, que lhe faz uma proposta tentadora, roubar um exemplar raríssimo do livro O guarani, de José de Alencar, de 1857, que havia sido comprado, em um leilão, por um professor. Esse livro era o objeto de desejo de um colecionador, J., que estava disposto a pagar 50 mil para cada um deles. Trata-se de um herdeiro de banqueiros, esquisitão, que a garçonete chama de “um vagabundo internacional (p.45), pois vive buscando objetos para suas coleções, promovendo festas e cheirando pó. Ele agora quer conseguir o Guarani, “Até conseguir e querer outra coisa” (p.45). 

A partir desse momento, a protagonista mergulha cada vez mais em um estranho submundo que mistura um milionário excêntrico, drogas e sexo. Passa a circular pelo mundo dos ricaços, mas sempre criticando a futilidade desse mundo. 

A protagonista tem um olhar perspicaz sobre o ser humano, talvez pelo seu trabalho como garçonete, mas principalmente pela outra segunda profissão, de procurar pessoas que possam ser vítimas dos seus roubos, que ela considera uma atividade sagrada (p. 149). Ao observar os frequentadores do restaurante onde trabalha, ela faz uma reflexão sobre as pessoas que estão naquelas mesas: “Pessoas comendo para matar a fome, comendo para sentir prazer, comendo para se acalmar, comendo para se esconder. Impressionante como um gesto tão rudimentar pode adquirir tantas variações quando filtrado pelo emocional estropiado do ser humano” (p. 50).

Como o objetivo de conseguir roubar o livro e, assim, conseguir o dinheiro, a “rabudinha”, começa a tarefa de conquistar o professor, Cícero, para conseguir ir à casa dele e surrupiar o tal livro, uma preciosidade. A tarefa que ela julgava fácil e rápida, tornou-se difícil e demorada pelo temperamento arredio do professor. 

Mas finalmente, ele se apaixona pela garçonete, que faz o papel de uma aluna ouvinte, com o desejo de aprender a escrever artigos para defender, principalmente, a causa dos transgêneros. Depois de várias tentativas, ela consegue que o professor a convide para casa dele. 

O encontro, tão adiado pelo professor, começa com ótimas perspectivas, principalmente, para ele, mas se transforma em um fracasso, em virtude de problemas psicológicos do professor.   Para se acalmar e tentar voltar ao estado de excitação, ele exagera na dose de um remédio e acaba dormindo. 

A “rabudinha” aproveita para revistar o apartamento e ao examinar a biblioteca reflete “Sempre pensei que o conhecimento servisse para libertar as pessoas, mas agora também percebia que, aliado à vaidade ou à insegurança, também servia para construir belíssimas gaiolas” (p.158).

Finalmente, encontra o livro e, nesse momento, fica em dúvida se deve levar essa preciosidade, retirando de quem ama a literatura, para quem apenas deseja um objeto a mais para sua coleção, “Uma vez adquirido um certo item, o colecionador sai à procura de outro” (p. 174). Ela se dá “conta de que está tratando com duas figuras distintas, um colecionador e um amante de literatura” (p. 173). 

Porém, decide levar o livro e, junto com Biel, passa para o colecionador que entrega o prometido, um envelope com 50 mil para cada um deles. Nesse momento, ela sentiu que estava enterrando o Cícero e o Guarani, mas também, o Biel e a perspectiva de vê-lo novamente. 

Foi exatamente o que aconteceu, marcaram um encontro para comemorar, ele não aparece e depois de uma noite de espera, ao relento, ela vai ao hotel em que ele estava hospedado e descobre que seu verdadeiro nome é Yuri e que tinha, provavelmente, viajado para o exterior. A verdade é que “havíamos nascido um para o outro, dois cães vagabundos no canil que é o mundo” (p. 18),

Triste, decepcionada, procura Tiana, sua única amiga, mas descobre que ela, também, não estava mais em São Paulo. Fugiu da cidade e, principalmente, de um homem por quem ela havia se apaixonado, mas que junto com um parceiro lhe dera uma surra, para não parecer um “maricona” e, mesmo assim, continuava procurando por ela.     

Num dos encontros, com um fotógrafo, a garçonete escuta uma reflexão sobre trabalhar no front de uma guerra: “A gente se acostuma com qualquer coisa, até com a guerra. Nos primeiros dias, você passa correndo na frente do inimigo. Depois, se nada acontece, você passa andando rápido. Um tempo depois, anda normalmente, como se estivesse andando na Paulista” (p. 84). Roubar para a garçonete, pode ser comparado a essa experiência do fotógrafo. 

A atmosfera da narrativa é repleta de melancolia. As diversas pessoas que interagem com a garçonete são solitárias, viveram ou vivem dramas reais, tais como a arquiteta, com câncer, o fotógrafo de zona de conflito. O livro coloca várias reflexões sobre a vida, sobre o consumismo e sobre a violência contra transexuais, são superficiais, mas deixam margem para reflexão. Como por exemplo, “...a gente é a soma das coisas que vimos por aí” (p.85)

Estilo da autora

A autora mostra um humor fino, sutil, às vezes irônico em vários momentos, principalmente, nas reflexões da garçonete. Um certo momento ela olha para um dos parceiros de cama e pensa: “Ele sorri para mim. Coitado, ele sorri para mim” (p.11).

Ela fala em “passarinhos desajustados” (p. 17), para se referir aos pássaros que começam a cantar ainda de madrugada. Sobre os ensinamentos que recebia de Tiana sobre roupas, estilistas e épocas a garçonete pensa “Não é um assunto de que gosto muito, mas, queira o não, eu estava atuando nesse ramo” (p. 25) 

No momento em que uma galerista fala que está cansada da vida em aeroportos, festas, coquetéis, galerias, a garçonete tem vontade de “...sugerir que ela tente um novo circuito festa na laje, hospital público, ponto de ônibus, rodoviária...” (p. 116) 

Alguns capítulos ganham o nome do objeto que a garota subtrai dos seus acompanhantes: “Óculos Tom Ford”, “Blazer de paetê Laurence Kazar”, “Masbaha de madrepérolas” e “Abotoaduras Pierre Cardin”, entre outros. É interessante que a protagonista faça a medição dos sorrisos em percentual, 10%, 20%, 70%, etc.

A autora não usa travessão ou aspas nos diálogos, mas é feito de tal forma que nada fica confuso ou estranho. A narrativa é feita na primeira pessoa, de forma leve e ágil, às vezes com um vocabulário vulgar, sotaque paulista, mas tudo dentro do contexto da trama. 

A autora consegue manter o suspense até o final, ela vai roubar o livro? 

Ambientação

A narrativa está ambientada em São Paulo, basicamente ao redor da Av. Paulista, trata de assuntos polêmicos, mas com leveza. A autora contrapõe as várias São Paulo, mostrando o lado rico e o lado miserável da cidade. A garçonete fala do local onde encontrará o Biel da seguinte forma: “Para lá da Augusta penteada pelo dinheiro, para lá da Augusta monitorada pelas câmaras, para lá da Praça Roosevelt, numa ruazinha escura e suja, mais ou menos no início do intestino da cidade” (p.29). 

E noutro momento, a personagem reflete sobre a cidade e sua população: “Essa era a São Paulo de que eu gostava, a São Paulo depois do expediente, quando as pessoas afrouxavam a gravata e deixavam entrever [...] as marcas de viver numa cidade tão obcecada com a produtividade” (p. 30). Mas há, também, outra São Paulo sobre a qual a garçonete reflete “..que eu renego, de todas as cidades que existem dentro de uma grande cidade a mais desprezível, a dos prédios altos com portarias altas, de mais helipontos do que bancos ou jardins (p.99).

A autora mostra São Paulo, com toda sua opulência, mas também o lado dos desvalidos. A solidão é uma constante na narrativa com por exemplo quando ela diz: “Desses prédios, descem pessoas que não sentam nos bancos, nem contemplam o chafariz, só fumam um cigarro e voltam correndo para dentro..” (p.12). 

Sobre a arquitetura, a garçonete observa: “Na altura dos meus olhos, estava a cidade na sua forma clássica, cinza e vertical, aqui e ali pontuada por uma pichação ou por uma janela [..] com pequenos traços do horizonte escapando como esmolas entre as construções” (p.39). Destaca, também, que no meio de tantas desigualdades, algo se destaca igual para todos: “Lá em cima estava o céu, o mesmo modelo que cobria a Oscar Freire e a Faria Lima, a Vieira Souto e a Quinta Avenida azulão e cravado pelo sol...” (p. 39).

Finalmente, fica a pergunta: tudo pode ser roubado? Essa é a questão sobre a qual a protagonista e Biel discutem em determinado momento. 


terça-feira, 11 de julho de 2023

A pediatra - Andrea del Fuego


Autora

ANDRÉA DEL FUEGO, pseudônimo da escritora Andréa Fátima dos Santos, nasceu em São Paulo, em 1975. Escritora e mestre em Filosofia pela USP, publicou os volumes de contos minto enquanto posso (O Nome da Rosa, 2004), nego tudo (Fina Flor, 2005), engano seu (O Nome da Rosa, 2007) e as miniaturas (Companhia das Letras, 2013), além de diversos livros juvenis e infantis.

Seu primeiro romance, Os Malaquias (Língua Geral, 2010), ganhou o Prêmio Saramago de literatura.

Curiosidades sobre a autora

Na ocasião do Prêmio Saramago de literatura, Andrea estava gravida de seu primeiro filho. Na ocasião, conheceu Pilar Del Rio, viúva de Saramago. No momento da premiação Pilar perguntou-lhe qual seria o nome da criança e ela lhe disse que seria Francisco. Pilar lhe disse “ainda tem tempo de colocar José”. Andrea tocada pela fala de Pilar batizou seu pequeno com o nome Francisco José. Outra curiosidade está relacionada ao destino da premiação. O prêmio de 25 mil euros recebido por Andrea foi utilizado para custear profissionais de parto humanizado. A criadora da pediatra que não gostava de crianças, revela-se, portanto, uma mãe prana!

Em relação ao seu pseudônimo Andrea conta em entrevistas que quando jovem escreveu contos “sem” eróticos, apresentando o trabalho para um amigo que gostou da escrita e a convidou para ser colunista de uma revista respondendo duvidas sexuais dos leitores. O editor, no entanto, informou que “Andrea de Fatima” não seria adequado. Foi quando sua sogra sugeriu Andrea Del Fuego inspirado em luz Del Fuego, por sua vez pseudônimo de Dora Vivacqua, mais conhecida pelo nome artístico Luz Del Fuego, e que foi uma dançarina, naturista, atriz, escritora e feminista brasileira. Destacou-se como pioneira na implementação do naturismo no Brasil entre os anos 1940 e 1950, tendo sido a fundadora do primeiro reduto naturista da América Latina e a primeira nudista brasileira. É também reconhecida por sua contribuição na luta pela emancipação das mulheres. A autora conta que na época não sabia da história de luz Del Fuego, mas depois que a conheceu gostou muitíssimo e adotou o nome artístico.


A obra

A capa, conforme conta a autora, foi escolhida por ela em um banco de imagens. A foto pertence a uma atriz alemã da década de vinte, que originalmente estava com uma suástica na vestimenta e encantou a autora pelo olhar vazio e absorto. A escritora ainda se amparou no efeito contraditório que a imagem inspira: uma mulher, medica que tem como profissão cuidar de criança, fumando.

Resumo da obra e seus personagens 

A obra é narrada em primeira pessoa, sem pontos e travessões em fluxo continuo de pensamento. A narradora é a única testemunha dos acontecimentos. Temos acesso apenas ao que passa em seus pensamentos. São 55 pequenos capítulos todos encapsulados na mente de Cecilia e sua relação pouco empática com o mundo e com aqueles que a rodeiam. Nesses capítulos, a medica confabula sobre aqueles que passam por sua vida e com os quais ela convive, mas não quer de fato compartilhar.

A narradora é Cecilia, filha única de pai médico e mãe enfermeira, medica neonatogista que diz não gostar de crianças e que assim define sua incursão na medicina “meu caso é comum, estudei medicina desapaixonada, com o pai no leme”.

Através da narrativa nos sãos apresentados personagens em variado grau de opacidade. Temos o marido do qual se divorcia. Homem que segundo a narradora é privilegiado do ponto de vista financeiro tal como ela, mas sofre de depressão. Cecilia demonstra forte desinteresse pelo marido e acaba por se separar dele nos primeiros capítulos do livro.

Posteriormente nos é apresentado seu amante, Celso. Personagem masculino de pouca expressividade, casado e que leva a esposa para ser paciente da amante, confiando-lhe não somente os cuidados no recém-nascido como também a saúde de sua esposa no momento do parto.

A esposa de Celso tem descrições bem contidas. Sabemos que é advogada, que sofreu na primeira gestação e que na segunda gestação apresentou quadros de depressão e ansiedade e por fim uma gravidez de risco. As aparições narrativas da esposa são sempre concessões clínicas da narradora que permite que o amante a faca de ouvinte de suas agruras domesticas única e exclusivamente para ganhar terreno para suas pretensões no relacionamento extraconjugal.

Outra personagem muito interessante é Deise. Figura tipicamente nacional, a da empregada que dorme em casa e fica a disposição do patrão, Deise vai ganhando terreno no monologo mental de Cecilia a medida que suas complexidades tipicamente humanas vão sendo colocadas na mesa: o fato de estar gravida, de o pai da criança ser o marido da Irma, a dependência alcoólica, todas esses acontecimentos vão ocupando a mente de Cecilia mais pela proximidade física do que por uma solidariedade emocional para com a situação de vulnerabilidade e desamparo da jovem, trata-se portando de uma clara relação de poder. A configuração da complexidade inerente da relação de intimidade e hierarquia típica do trabalho doméstico aqui é escalonada a máxima potência na medida em entra em cena o amante de Deise, Robson. Outra figura masculina representada tab. de forma muito opaca, Robson, o vigia da pizzaria pinheiros, aparenta certa insolência na medida em que transita da paisagem mental de Cecilia para a sala de estar de sua casa. Alterando uma fugaz atração que Cecilia teve sobre ele depois de saber de sua relação com Deise. De tensão erótica para desconfiança e hostilidade.

Na sua paisagem profissional temos também personagens que despertam desasseio em Cecilia. Temos o médico que pratica a medicina humanizada, área medica que gera desprezo para Cecilia. E outros elementos que orbitam este universo do parto humanizado Douglas, professoras de yoga.

Dentre eles, Jaime é o que mais a incomoda justamente por ser o antípoda de suas pratica profissional. Medico alternativo, querido pelos colegas, estudioso e considerado “o melhor”, a despeito dessas credenciais ele é uma afronta para a ciência e para a medicina,

Na esfera familiar Cecilia nos apresenta sua mãe e seu pai. Em relação a mãe sua mãe parece não esboçar grande cuidado ou atenção. Muito provavelmente se sente superior a mãe que é enfermeira enquanto ela é medica. mas a seu pai devota verdadeira apego. É em relação a ele que parece de fato ter alguma empatia e admiração. Seu pai é o médico diligente e idealizado ao qual todo paciente gostaria de confiar sua vida e saúde. Sua narrativa acena para uma relação quase edípica, somente abalada pela doença do pai, a fragilidade real, os cuidados, as doenças não conseguem amparo no coração dessa pediatra, até mesmo quando vindos daquele que aparentemente é o que ela mais ama

Por fim temos Bruninho, filho do amante, criança da qual participou do parto e para o qual Cecilia ira devotar um amor maternal nunca antes visto. Bruninho é uma criança que, pelo que indica a narradora é negligenciada e solitária. De modo que esse personagem parece de alguma maneira refletir a própria história da narradora. Filha de um médico workaholic e de uma enfermeira consumida por plantões, solitária e carente, Cecilia parece projetar em Bruninho a sua necessidade de resgate amoroso. A Bruninho Cecilia quer dar o colo ao qual recorre mesmo adulta na figura de seu pai.

Além desses personagens também podemos destacar a figura dos pais das crianças, das mães cuidadora de crianças com doenças crônicas, a figura da baba, das escolas infantis e da própria medicina. Nenhuma dessas pessoas ou instituições é poupada do olhar mordaz da pediatra. Os pais são insuportáveis, as babas aqui são desatentas e sem afeto. As escolas infantis são pretensiosas e enganadoras a medicina por aqui é tirada do pedestal e reduzida a uma sucessão de protocolos que pode garantir sucesso profissional não apenas para os vocacionados, mas inclusive para aqueles que detestam a profissão.


Avaliação da obra 

O monologo estabelecido por Cecilia é mordaz e verborrágico. Cecilia tece a vida por meio de protocolos e acoes nas quais todos aqueles que cruzam seu caminho são descartáveis. Os sexos tampem é visto de forma livre e sem limites, mas também parece um envolvimento protocolar sem verdadeira entrega. Não há conflito morais. O deserto particular da pediatra a engendra em devaneios que somente ela própria vive. Embora amoral e canalha nenhuma de suas guerras particulares cruza o limiar da maldade. Elas ficam apenas no plano mental. Embora não goste de crianças, nunca as matou. Embora deteste o médico alternativo, nunca denunciou Jaime ao conselho de medicina pela pratica de parto domiciliar, mesmo sabendo do endereço da esposa de sua amente, espreita, mas não chega as vias de desmascarar celso, e muito provavelmente embora tencione raptar o pequeno Bruninho, possivelmente não o levara para o litoral.

Cecilia é uma canalha de cativa justamente por não cruzar a fronteira do pacto social. O grande mérito da obra ao meu ver é o elogia a liberdade de pensamento. Em nossa intimidade todas podemos ser Cecilia. Ou melhores todos somos Cecilia em alguma medida. A mente não é pautada pela regra da moral social.

Por fim, é importante destacar a relevância das escritoras femininas contemporâneas. Cecilia desorganiza o clichê e a posição preá estabelecida da mulher de devota ao cuidado a mulher livre e desempecida para fazer aquilo que quiser.

Recomendo o livro pela facilidade da leitura e pela audácia bem-humorada da autora.

Ademais me fascina a capacidade da autora de escrever uma personagem que, ela própria adepta do parto humanizado, é o extremo oposto daquilo que ela pratica. Dessa forma fica a salvo de demagogias e militâncias que são importantes para a sociedade, mas podem se um desserviço para a literatura.

Cecilia é uma verdadeira iconoclasta que vilipendia de forma bem caustica os pedestais do exercício da medicina, do parto, da maternidade e muitos clichês como o da mulher vocacionada ao cuidado. Fascinante é o poder da arte que derruba estatuas sem precisar destrui-las.


terça-feira, 23 de maio de 2023

O som do rugido da onça - Micheliny Verunschk

Por: Carlos Guido S Azevedo

A Autora

Micheliny Verunschk (Recife - PE, 1972) é uma escritora e historiadora brasileira. Em 2004 foi indicada ao Prêmio Portugal Telecom de Literatura, com o livro de poesia Geografia íntima do deserto, sendo a única mulher estreante e, também, a mais jovem a ficar entre os dez finalistas. Com o romance Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida venceu o Prêmio São Paulo de Literatura, de 2015, na categoria de melhor romance escrito por autor estreante no gênero acima de 40 anos. É autora também de O observador e O nada (2003, poemas), A cartografia da noite (2010, poemas), B de Bruxa: Bonnus bonnificarum (2014, poemas), Aqui no coração do inferno (2016, romance), O peso do coração de um homem (2017, romance), Maravilhas banais (2017, poemas). Tem trabalhos publicados na França, Portugal, Espanha, Canadá e Estados Unidos. (Internet apresentação).

Seu livro mais recente é esse romance: O som do rugido da onça, lançado em 2021 e vencedor do Prêmio Jabuti e do Prêmio Oceanos no ano seguinte.

No meu entender Micheliny além de ser mulher pernambucana, toma as lições das mulheres de Tejucupaco - PE que ajudaram os brasileiros a expulsar os holandeses com uma guerra inusitada de abóboras quentes e água fervente com pimenta, nas estreitas ruas do distrito de e Tejucupapo, atual Goiania. Onde hoje opera a fábrica de automóveis Jeep.

A batalha de Tejucupapo, ou batalha do Monte das Trincheiras, em 24 de abril de 1646 se deu no contexto da segunda das Invasões holandesas do Brasil, graças ao empenho das mulheres da povoação cerca de 600 holandeses foram derrotados e bateram em retirada. Nesta que é considerada a primeira batalha em território brasileiro.

Essa é apenas um a introdução para ilustrar o sentimento de coragem para a luta de Micheliny.

 O Livro

Conta história de uma menina indígena da tribo miranha que é levada para a Baviera por dois cientistas alemães que vieram explorar e conhecer a flora e a fauna brasileira. Eram o Zoológo Johann Baptist Spix   e o botânico Carl Friedrich Phillipp Martius que vieram inspirados pelas viagens, no início do século, de Humboldt pela América do Sul, que gozava de amplo prestígio no meio intelectual da época.

Martius, ficou mais conhecido porque descreveu suas aventuras num livro Relato de Viagens ao Brasil – Expedição do botânico alemão Martius 1817 - 1820, fazendo um inventário da natureza do Brasil. Eles dividiram o território do Brasil em cinco biomas que usamos até hoje (cerrado, caatinga, Mata Atlântica, Floresta Amazônica e Pampa).

O sequestro dos índios realmente aconteceu e era comum que barcos europeus levassem muitos índios para aculturação, comércio humano ou exibições públicas, desde Cabral, pouco contada na história oficial, sempre que aportava uma nau em margens brasileiras, logo apareciam tribos para oferecerem seus inimigos e até seus parentes, em troca de bens de interesses.

A segunda parte do livro incorpora o álter ego da escritora na personagem Josefa que a partir do conhecimento das fotos dos dois índios levados para a Baviera e retratados por artistas, esculpidos em bronze e enterrados em cemitério real, com a presença da rainha, foi disseminado no mundo e estava disponível na exposição que surpreende Josefa.

Trazendo para a amarga realidade atual, a violência contra os índios e nossos problemas sociais. Eles são introduzidos por um discurso de defesa das terras indígenas na época da construção da barragem Belo Monte, do cacique Raoní Metuktire, muito conhecido no mundo por sua luta em defesa dos povos originários e que atraiu a ira de bruto governante do passado que chegou a mencioná-lo em discurso na ONU que: “A era do Raoní, teria ficado para trás”.

A terceira parte do livro é de muito bom gosto e descreve a vivência da autora no meio dos povos originários, tentando compreender seus mundos e costumes, chegando a participar de celebrações e experiências transcendentais que muito a influenciou na descrição dos sentimentos e pensamentos da Iñe-e.

A quarta parte do livro tem como fonte suas pesquisas na Alemanha sobre a vida da época dos acontecimentos, o próprio livro do cientista Marcus e os registros cartoriais da época.

Parte considerável do romance é a narrativa da história do ponto de vista de Iñe-e, a índia que que foi levada pelos cientistas, juntamente com uma dezena de outras crianças e adultos e documentados no livro de Martius. A autora, meio que ignora os demais transpostos, para buscar na voz de Iñe-e uma forma de desacreditar os cientistas, ou pelo menos tirar-lhes a pecha de heróis.

Frustrando minhas expectativas, Iñe-e acabou sendo descrita como uma menina muito xucra, sem interação com a realidade e com as pessoas, sem empatia, triste e apática, ao contrário do seu companheiro e antigo inimigo o menino Juri, que conseguiu até se divertir e interagir com os brancos, evidentemente dentro dos seus conceitos, muito embora todos estivessem condenados à morte rápida pela ausência de defesa e inabilidade corpórea para a convivência em ambiente tão contaminado como o das cidades.

A construção do personagem onça e sua formação no imaginário das tribos e na representação na vingadora, capaz de proteger a quem consegue incorporá-la e obedecer a seus chamados, foi muito criativa e, sem dúvida, é a parte do livro, mais bem fundamentada em pesquisas literárias e de campo, sob exploração do imaginário do povo miranha e de outros povos originários, além de ter sido escrito em uma prosa Roseana de muito bom gosto.

O texto deixa pouco claro que os miranha eram uma tribo de guerreiros que consideravam inimigos todos aqueles que não falassem a língua Bora. Se eles não entendessem ou não fossem entendidos era sinal de inimigo a ser capturado para ser vendido como escravo ou se fosse um guerreiro famoso de outra tribo seria morto e devorado em um ritual antropofágico, de muito significado para eles, que assim conseguiriam assimilar qualidades desse herói e conviveriam com seu espírito daí em diante. 

De livros didáticos na Internet: “Os miranha eram considerados brutos, antropófagos e seus chefes costumavam vender seus prisioneiros e seus inimigos como escravos e até mesmo os seus parentes”. “Os miranha em 2014 eram 21.459 no Amazonas e 445 na Colômbia, na época do ocorrido, não se tem estatística de quantidade, mas deveriam ser muitos e fortes na região. Tiveram suas terras demarcadas no século XX em 1929 TI Méria (Médio Solimões); em 1991 a Ti Miratu no município de Urini; 1998 Ti Cuiú-Cuiú no município de Maraã, homologada em 2003.”

Noutra frente, o livro é um libelo muito interessante de reforço dos valores morais, sociais e religiosos atuais com incorporação de todas as lutas baseadas no conceito atual do “politicamente correto”, forma de pensar que abandona toda e qualquer contextualização das eras passadas e de seus conhecimentos, costumes e valores, para fazer uma análise de qualquer ação do passado sob os valores atuais e assim, exercer um julgamento do passado segundo os padrões atuais, condenando e execrando todas as justificativas, não científicas ou não igualitárias contemporâneas.

A arquitetura

A estrutura arquitetônica do livro de Micheliny é explicada por ela como semelhante à construção de uma oca indígena: Primeiro se fincam as troncas ou estroncas que segurarão o teto, depois as varas que seguram as paredes e só então se trabalha galhos e folhas que irão ser entrelaçadas para construírem paredes e teto.

Seu primeiro lance é a apresentação da cosmovisão dos índios  miranha. Na verdade, o alicerce da Oca imaginária, porque sem esse contexto muitas partes da história não fariam sentido.

 “Quando Niimúe criou o mundo....o mundo é esse gigante que mal distinguimos se estamos distraídos...” na verdade é um mundo em constante peleja e se auto devorando. Mas, principalmente devorando aqueles que não lhe ouvem e o destroem etc.

A segunda estaca é a apresentação de Iñe-e no navio com todas as novidades do mar e da própria embarcação atulhada de espécies de animais, vegetais e gente... já com o ponto de vista de Iñe-e e começando a dar vida a sua personagem com uma versão descolonizadora, apresentando o sentimento e a visão do mundo dos espíritos, na crença indígena, que os cientistas tiravam seus espíritos quando os pintavam e fotografavam, tanto das pessoas como dos animais e plantas e avança na percepção de que os animais mumificados continuavam vivos só que congelados e para sempre em alerta permanente.

A surpresa desse lance é a entrega de que essa é a estória da morte de Iñe-e e de como ela perdeu seu nome, sua casa e sua voz. A voz é colocada como a identidade de todo ser, animado ou inanimado, “quando se perde a voz, se perde a vida”, fazendo jus à cosmovisão maranha.

Em seguida, a autora, se coloca no texto como a personagem Josefa que emprestará a Iñe-e a sua voz e sua língua e mesmo as letras arrumadas como “colar de formigas no chão”.

Descreve muito poeticamente o nascimento de Iñe-e e seu irmão gêmeo, seu crescimento no meio da comunidade, seu desaparecimento temporário quando criança e seu encontro com uma onça que não lhe feriu, fato que gerou desconfiança do seu pai de que ela seria uma inimiga por ter convivido pacificamente com o animal mais perigoso e inimigo de todos.

O Trançado

Deste ponto em diante começa a fazer o trançado já falado dos galhos e das árvores para a construção da oca, ou seja, do texto.

Conta a chegada dos cientistas na tribo, já acompanhado de índios de outras tribos trazendo missangas, chitas e metais que agradavam aos chefes e foram recebidos com muita alegria e reconhecimento e são alimentados e tratados em suas feridas pelas mulheres, fazendo um dia de festa, danças e interessados em fazerem negócios lucrativos.

O pai de Iñe-e se embrenha na mata para buscar escravos para o homem e na volta trouxe alguns poucos homens, muitas mulheres e várias crianças.

Antes era costume que seu povo trocasse com os brancos apenas os inimigos e os órfãos dos inimigos por mercadorias variadas e ferramentas de trabalho.  Mas o pai de Iñe-e já estava se aculturando usando roupa comprida o tempo todo e até dizia palavras da língua dos brancos e exigia ser chamado de João Manoel, porque fora batizado em uma de suas viagens.

São muitos os momentos poéticos de sua descrição: (22) “Uma manhã em que o sol se levanta do mesmo jeito que sempre se levanta, e em que a mata fala sua língua de mesmo modo com que sempre falava nada denunciava o que estava para acontecer”.   Este fez parte da introdução do momento chave do livro, aquele em que o pai de Iñe-e a dá de presente ao estrangeiro Martius como agradecimento pelo acordo sobre a venda das sete crianças inimigas.

Aí a história toma outro rumo. Josefa o álter ego da escritora que já havia se identificado com um desenho da índia Iñe-e numa exposição, vê Raoni com um sêr quase mítico, o que desperta nela uma estranheza em relação à sua pessoa, ao mundo em que vive como se tivesse uma ligação umbilical como aquela gente ou um sentimento de busca pessoal por esse mundo da inocência perdida que precisaria ser resgatada para voltar à sua inteireza no mundo.

Vai em busca do resgate da história de Iñe-e  e assume a missão de reescrever a história retirando daqueles cientistas a imagem de bons e competentes, porque na avaliação contemporânea de Josefa, Homens bons não sequestram crianças.

Josefa busca no Google retratos da menina e começa a se identificar com ela, “se sua tia pudesse em algum momento representar a menina que ela fora, seria algo muito diferente daquele retrato xambouqueiro da menina do povo miranha?... Ela olha a menina e é seu próprio rosto que vê”.

Foi a Munique em busca de elementos para sua história e recebe a informação do assassinato de Mariele Franco, mais uma vez a história adquire novo colorido, mais atual e integrado à luta social no Brasil e no mundo, que parece só continuar a luta antiga por um reconhecimento mútuo da diversidade entre os homens. 

Seguem-se as aventuras de Iñe-e junto com os cientistas, a entrega dos outros índios a pessoas de confiança de Marcus, a entrega de Iñe-e à rainha e a surpresa e tentativa de diálogo e seus usos como brinquedos das filhas da rainha.

A morte do menino Juri é detalhada e sua consternação é geral. Ele respondera com valentia tudo o que passou, conseguindo alguma interação com as crianças e os adultos, até se divertindo com os costumes estranhos dos brancos, mas poucos meses depois não resiste à doença do inverno europeu e falece com problemas pulmonares.

É assistido com a medicina da época, mas não tem sucesso, seu enterro é, de certa forma, solene com a presença da Rainha. Que manda fazer um busto para lhe identificar o túmulo.

Esquecendo, acho propositalmente, a visão ou cosmovisão da época do colonizador, mesmo a sua necessidade de compreensão do mundo e de pesquisa científica. Afirma, sem rodeios, que tudo começou com Iñe-e. Ou seja, é esse ponto de vista que você vai ler aqui, não se aflija, sou Iñe-e e o resto não vai me interessar. (gostei da franqueza, embora subtendida).

A estratégia clara, típica do movimento “politicamente correto” e, garantia de sucesso dos romances atuais, é aplicado sem dúvida pela autora, trata-se de recolocar no contexto atual aquela visão opressora do modelo colonial e fazer um julgamento com os valores atualmente em voga de modo a gerar um sentimento de repulsa e indignação para os cientistas, a ciência e a ação exploradora e espoliadora dos colonizadores, mesmo que sejam cientistas ou estudiosos bem intencionados, não importa, são os pecados de gerações como a escravidão e a exploração do ser humano em qualquer circunstância. O fato de serem cientistas, só serve como agravante por terem sequestrado crianças e considerando os índios como espécies de estudos como as plantas e animais tirados da terra.

Acredito, que a autora tinha material para realizar um livro épico e magistral, contando uma história interessante, abordada do ponto de vista do silvícola, o que é raro na história moderna, desde a fase da literatura de José de Alencar, Gonçalves Dias, Gonçalves Magalhães com seu I-Juca Pirama.

Mas, foram frustradas minha expectativa, porque seria de grande interesse uma análise do choque de concepção do mundo dos nativos dom a dos cientistas. Contrapondo duas visões de mundo de modo mais equilibrado e consentâneo com o conhecimento de hoje sobre as duas civilizações.

Minha surpresa foi por esperar um livro épico que contava a história de um sequestro de indígenas pelos colonizadores, muito comum na época da colonização ou até da pré-colonização, para uso como estudo científico e demonstração de sucesso das suas viagens ao Brasil.

Encontrei um libelo libertário, feminista e datado, feito dentro da medida e do diapasão da literatura engajada da atualidade com lapsos de temporalidade e sentido, com pouco amálgama de integração entre as duas personagens centrais da trama, Iñe-e e Josefa o álter ego da escritora.

Sem dúvida, duas mulheres tão potentes poderiam ter sido mais exploradas no sentido próprio da exploração dos sentimentos e do crescimento do autoconhecimento.

Da Iñe-e procurei conhecer seus pensamentos próprios, suas surpresas, resignações ou mesmo um tipo qualquer de integração, mas Iñe-e é quase morta. Calada e assustada o tempo todo. O seu companheiro o menino Jari ainda consegue acusar a estranheza diante dos comportamentos do homem branco, mas Iñe-e é muito opaca.

A saída foi típica de Guimarães Rosa, a realidade fantástica, transformá-la em onça e conversar com o rio.  A onça é a dona da história, foi um achado muito bom a de lhe colocar como uma onça, só que não conseguiu lhe dar as suas propriedades.

Mulher onça pega bem e é admirada em sua fortaleza, mesmo que seja derrotada pelas doenças e fragilidades, mas exala algumas características da onça. São onças de Guimarães Rosa, as onças de Ariano, as jaguatiricas, uruajura, tapiraí-auára, tem maria-maria, estão todas lá, no baile das onças.

Experiência transcendental com Ayuasca e muitas histórias da tradição de diferentes tribos, com muita pesquisa e informações, ajudaram a fazer a obra significativa.

Afinal o Som do Rugido da Onça é ouvido por ela na parte final do livro quando se ouve o respirar cansado de Martius com dor na consciência por ter degredado Iñe-e de sua linda terra natal e ter prestado serviços tão relevantes para a ciência e para o Brasil, a ponto de ter como inscrição em sua lápide “Entre as palmeiras me sinto sempre jovem. No meio delas ressuscito”, mas para isso ele teria que ser onça ...findo estava, caça que era”.

Apreciei imensamente, com as devidas observações.

Indico e aconselho, sem restrições. 

terça-feira, 18 de abril de 2023

O leopardo - Giuseppe Tomasi di Lampedusa


Resenha de Lenita Turchi

O leopardo, considerado um dos romances mais importantes da Itália, publicado em 1958, após ter sido rejeitado duas vezes, é ainda fonte de debates e controvérsias. As recusas vieram do autor Elio Vitorino, conhecido como profeta do neorrealismo italiano, que o apontavam como “antiquado e desequilibrado” ou antiquado e reacionário.  E foi graças a uma análise da mulher do conde Lampedusa, a psicanalista Licy, que uma cópia do manuscrito chega às mãos da agente literária Elena Croce que o romance é publicado. Segundo Jorge Bacena, escritor que aprovou a publicação: “Desde a primeira página me dei conta que estava frente a obra de um grande escritor e ao avançar estava convencido que o verdadeiro escritor era também poeta”.

O autor

Guiseppi Tomasi de Lampedusa, duque de Parma e príncipe de Lampeduza, nascido em 1896, passou sua infância e adolescência nos palácios dos pais e avós na Sicília. É convocado para lutar na Primeira Guerra e ao término desta vai viver em Londres com um tio nobre e diplomata. Casou se com a aristocrata russa Alessandra Wolff-Stormersee, psicanalista, que introduziu Lampeduza nos estudos freudianos e juntos estudavam literatura russa.  Na vida londrina dedicou-se à literatura e história e dava aulas de literatura francesa e inglesa para círculos literários. Leitor compulsivo lia tanto a literatura clássica como a contemporânea, tendo como referência autores como Tolstoi, Sthendal, Shakespeare, Dicknes, Jaime Joyce e Elliot. Segundo seu biógrafo, (David Gilmor) o desejo do escritor era escrever sobre a vida do Principe de Salina, mas desistiu por achar que não tinha capacidade de escrever como Jayme Joyce.

Depois resolveu ser mais “modesto” e o projeto inicial era de escrever um romance histórico, ambientado na Sicília no tempo do desembarque de Garibaldi em Marsala, inspirado na vida de seu bisavô, o astrônomo príncipe de Lampedusa.  Este projeto planejado por 25 anos foi iniciado em 1954 e concluído 30 meses depois, de fato transcendeu em muito o propósito de escrever o memorial da família Lampedusa. O Gatopardo é uma análise primorosa da história política e social da Sicília, no período das guerras de unificação e da transição do regime monárquico e do surgimento da burguesia italiana.  É também uma refinada descrição da cultura siciliana com seus valores, normas, rituais, padrões de comportamento e a percepção do tempo pelos habitantes da ilha.  É sobretudo uma discussão existencial sobre os prazeres da vida e sua finitude.

O gatopardo: personagens

O romance tem como personagem central Don Fabricio, príncipe de Salinas, que assim como o bisavô do autor, era astrônomo e um homem refinado e ciente da sua condição de classe.  Em torno dele, gravitam sua família constituída pela mulher Stella, 3 filhas e 4 filhos, o sobrinho Trancredi e o cão Bendico.  Aqui a descrição do autor sobre o príncipe

“Primeiro (e último) de uma linhagem que, durante séculos, fora incapaz de fazer sequer as somas das próprias despesas e a subtração das próprias dívidas, possuía reais e fortes inclinações para astronomia, delas obtendo suficiente reconhecimento público e gratas alegrias privadas. Basta dizer que o orgulho e a análise matemática associavam-se nele a ponto de lhe dar a ilusão de que os astros obedeciam a seus cálculos ....” (p. 48).

Tancredi Falconieri, protegido e preferido do príncipe Salinas, é visto e tratado como o filho que gostaria de ter. Jovem, encantador, de vida social intensa e fortuna dilapidada pelo pai, Tancredi se alia aos grupos combatentes da monarquia com o seguinte argumento.

“Se nós não estivermos presentes, eles aprontam a república. Se queremos que tudo continue como está é preciso que tudo mude” (p. 69). 

Após a vitória de Garibaldi, Tancredi vai visitar o tio com amigos e este se surpreende ao ver o sobrinho e os amigos trajando uniformes de oficiais ao invés das camisas vermelhas que antes vestiam. O diálogo que se segue ilustra bem a personalidade do sobrinho e dos jovens de sua classe.

“Mas que garibaldinos coisa nenhuma, tiozão! Já fomos; agora chega. Cavriaghi e eu somos oficiais do exército regular de Sua Majestade o rei da Sardenha, ainda por uns meses, e da Itália em breve.  Quando o exército de Garibaldi se dissolveu podíamos escolher: ir para casa ou ficar no exército do Rei. Ele e eu, como todos os homens de bem, entramos para o exército “verdadeiro”. Com aqueles outros não dava pra fica. Meu Deus, que gentalha”. 

O padre Pirrone, que aparece quase como membro da família, representa o pensamento conservador da Igreja e, mais especificamente, dos jesuítas. Este personagem é apresentado como um conselheiro, protetor das virtudes da família e um colega de trabalho do príncipe em seus estudos de astronomia. Um equilibrista entre as vontades humanas do príncipe e os princípios da igreja. Um sabedor de sua posição, enquanto aquele que não deve manifestar sua opinião sem antes sondar as intenções daqueles que a solicitam.

D. Calojeno Sedara, comerciante e proprietário rural, e sua filha Angelica, representam a burguesia ascendente, que enriquecia com as mudanças econômicas e políticas gestadas durante as guerras para a união dos reinos da Sicília, sob o reinado do Rei da Sardenha e da futura Itália. D. Calogeno é descrito como inteligente, astuto que soube tirar proveito comercial do seu apoio ao exército libertador, mas sem p refinamento necessário para ascender socialmente. Na sua perspicácia, envia a bela filha para estudar em Florença e esconde a mulher, uma camponesa de rara beleza, porém rude e de pouca inteligência. Angelica bela e sedutora aprende com facilidade os rituais e convenções da nobreza.  

Cenário ou outro personagem?

A Sicília é a maior das ilhas do mar Mediterrâneo e, devido a sua posição geográfica, ocupou lugar de destaque nos eventos históricos e políticos dos povos da região mediterrânea. Cultura diversificada, fruto de ocupações, que remontam aos IIIº e IIº milênio a.C,, dos povos sicanos e fenícios. Nos séculos seguintes, a ilha foi disputada e ocupada por gregos, romanos, ostrogodos, árabes, aragoneses, judeus e normandos que constituíram um tecido social denso de camadas culturais que se sobrepõem. Essa é a beleza, a riqueza e, ao mesmo tempo, a sina “mudar para continuar como está”, conforme a definição do príncipe de Salinas. “Na Sicília não importa fazer certo ou errado, o pecado que nós sicilianos não perdoamos nunca é simplesmente o “fazer”. Somos velhos, Chevalley, velhíssimos. Há vinte e cinco séculos pelo menos nós carregamos nos ombros o peso de magnificas civilizações heterogêneas ... os sicilianos não querem melhorar pela simples razão que se consideram perfeitos; sua vaidade é mais forte que sua miséria. (p. 223)

A novela / trama   

O romance se desenvolve em oito partes, como se fosse um diário. Segue uma periodização que tem início em maio de 1860, que marca o desembarque de Garibaldi em Marsala e a tomada de Palermo.  E concluído em maio de 1910 com a decadência da fortuna e prestígio da família, representados pelas moderadas inovações do Papa Pio X.

Na primeira parte, a família do príncipe Salina, após a oração diária, é surpreendida com a notícia de um soldado encontrado morto nos jardins do palácio em Palermo. Essa é a forma que o autor utiliza para falar da guerra para depor a monarquia dos Bourbons e unir os dois reinos da Sicília.  Daí em diante os temas morte, conflitos e razões para existência perpassam toda estória.

Tancredi vai visitar a tio em Donnafugatta, castelo de verão dos Salinas, e lá conhece Angelica num jantar, que por tradição o nobre deve oferecer às personalidades do local, o principal deles D. Calogeno.  O encontro da bela Angelica com a família do príncipe Salinas é narrado pelo autor como um sucesso, ou seja, todos representaram bem os devidos papeis “impecável direção cênica”.

O romance entre Tancredi e Angelica prossegue sob olhares benevolentes do príncipe e de D. Calogeno. O príncipe que vê em Angelica e em seu patrimônio a possibilidade de alavancar a carreira do astucioso Trancredi e o pai de Angelica a oportunidade de fazer parte da nobreza ainda que falida. Angelica e Trancredi representam aqui a união dos novos ricos com a nobreza falida. Um jogo que todos ganham se agirem de acordo as regras do teatro da época. Ou seja, o príncipe, ignora a atração que sua filha Concetta sente pelo primo e pensa o que seria melhor para a sobrevivência da família. O pai de Angelica na sua astucia sabe das vantagens da união de sua fortuna com a nobreza ainda no poder.    

O baile de apresentação de Angelica à sociedade é um dos pontos fortes do livro. Neste capítulo, o autor narra com ironia e riqueza de detalhes o comportamento da nobreza assim como o caráter fugaz da beleza e da vida. Os mínimos detalhes, como chegar na hora marcada, considerado prova de refinamento, passando pela barba, o corte e tecido da vestimenta de D Calogeno, assim como as falas dos mesmos são cuidadosamente programados e supervisionados por Trancredi e seu tio para que a noiva seja aceita e não envergonhe a família. Na festa, já cansado e sem poder se retirar, era de bom tom ficar até as 6 da manhã, o príncipe lança seu olhar crítico a todas as futilidades e superficialidade da sua classe e da própria existência.  Trancredi e Angelica o encontram na biblioteca comtemplando uma cópia do quadro a “Morte do Justo,” de Creuze. Para desviar sua atenção deste tema, Angelica pede que o príncipe a acompanhe para dançar uma valsa. No início uma recusa, mas difícil negar o pedido “súplicas” da sedutora Angelica. Reanimado pela deferência e pela admiração que os dançarinos causavam no salão, o príncipe se rejuvenesce e “por um instante naquela noite, a morte foi aos seus olhos coisa dos outros”.

Neste livro, a obra da uma vida, Lampedusa mostra sua genialidade não só na narrativa, refinada e irônica, mas também na construção dos personagens.  O romance tem a influência dos autores russos e franceses em que que o autor é especialista, mas é ao mesmo tempo original. As descrições dos cenários, lembram Stenhal e Tostoi, nos detalhes e nuances. A descrição do jardim do palácio onde é encontrado o soldado morto, no início do conflito, é poderosa e traz consigo a visão da Sicília.

“Era um jardim para cegos:  olhar era constantemente ofendido, mas o olfato podia extrair dele um prazer forte embora nada delicado. As rosas, Paul Neyron, cujas mudas ele próprio havia trazido de Paris, haviam degenerado:  excitadas a princípio e logo enlanguescidas pelos sucos vigorosos e indolentes da terra siciliana queimados pelos verões apocalípticos, haviam se transformado numa espécie de repolhos cor de carne, obscenos e que destilavam um aroma denso quase torpe que nenhum criador francês teria ousado esperar. O príncipe colocou uma delas debaixo do nariz e pareceu lhe cheirar a coxa de uma bailarina da ópera. Benicó,  a quem, também a ofereceu, retraiu-se nauseado e apressou se buscar sensações mais salutares entre adubo”

Outros dos muitos aspectos que fazem do romance uma obra prima são os diálogos do príncipe com padre Pirrone e com o organista companheiro de caça. Quando padre Pirrone ao saber das inclinações políticas do príncipe de apoiar a união da Sicília afirma indignado “Em poucas palavras então os senhores vão se mancomunar com os liberais! ... até mesmo com os maçons à custa da igreja. .... O senhor sarava os cegos do corpo; mas onde vão parar os cegos de espírito?”

“Não somos cegos, caro padre, somos somente homens. Vivemos uma realidade móvel a qual tentamos nos adaptar assim como as algas se dobram ao impulso do mar. À Santa madre Igreja foi explicitamente prometida a imortalidade; a nós como classe social não. Para nós um paliativo que promete durar cem anos equivale a eternidade” (p. 80).

Belo e triste, o romance exige dedicação na leitura pois cada situação tem vários significados e, por isso mesmo, fonte de debates. A beleza da narrativa se expressa nos sutis jogos de palavras e ironia das situações. Não nos admira que o romance ainda seja fruto de interpretações e polêmicas. O príncipe é mordaz e irônico com todos, inclusive consigo mesmo. Assim desagradou a nobreza, a igreja, os novos ricos, os “revolucionários”, e os sicilianos.

Visão muito cética da humanidade “tudo deve mudar para ficar como está”.

O Leopardo foi filmado por Luchino Visconti e considerado um dos melhores filmes do diretor. Príncipe de Salinas, interpretado por Burt Lancaster, Angelica por Claudia Cardinale e Trancredi  por Alan Delon.