terça-feira, 11 de julho de 2023

A pediatra - Andrea del Fuego


Autora

ANDRÉA DEL FUEGO, pseudônimo da escritora Andréa Fátima dos Santos, nasceu em São Paulo, em 1975. Escritora e mestre em Filosofia pela USP, publicou os volumes de contos minto enquanto posso (O Nome da Rosa, 2004), nego tudo (Fina Flor, 2005), engano seu (O Nome da Rosa, 2007) e as miniaturas (Companhia das Letras, 2013), além de diversos livros juvenis e infantis.

Seu primeiro romance, Os Malaquias (Língua Geral, 2010), ganhou o Prêmio Saramago de literatura.

Curiosidades sobre a autora

Na ocasião do Prêmio Saramago de literatura, Andrea estava gravida de seu primeiro filho. Na ocasião, conheceu Pilar Del Rio, viúva de Saramago. No momento da premiação Pilar perguntou-lhe qual seria o nome da criança e ela lhe disse que seria Francisco. Pilar lhe disse “ainda tem tempo de colocar José”. Andrea tocada pela fala de Pilar batizou seu pequeno com o nome Francisco José. Outra curiosidade está relacionada ao destino da premiação. O prêmio de 25 mil euros recebido por Andrea foi utilizado para custear profissionais de parto humanizado. A criadora da pediatra que não gostava de crianças, revela-se, portanto, uma mãe prana!

Em relação ao seu pseudônimo Andrea conta em entrevistas que quando jovem escreveu contos “sem” eróticos, apresentando o trabalho para um amigo que gostou da escrita e a convidou para ser colunista de uma revista respondendo duvidas sexuais dos leitores. O editor, no entanto, informou que “Andrea de Fatima” não seria adequado. Foi quando sua sogra sugeriu Andrea Del Fuego inspirado em luz Del Fuego, por sua vez pseudônimo de Dora Vivacqua, mais conhecida pelo nome artístico Luz Del Fuego, e que foi uma dançarina, naturista, atriz, escritora e feminista brasileira. Destacou-se como pioneira na implementação do naturismo no Brasil entre os anos 1940 e 1950, tendo sido a fundadora do primeiro reduto naturista da América Latina e a primeira nudista brasileira. É também reconhecida por sua contribuição na luta pela emancipação das mulheres. A autora conta que na época não sabia da história de luz Del Fuego, mas depois que a conheceu gostou muitíssimo e adotou o nome artístico.


A obra

A capa, conforme conta a autora, foi escolhida por ela em um banco de imagens. A foto pertence a uma atriz alemã da década de vinte, que originalmente estava com uma suástica na vestimenta e encantou a autora pelo olhar vazio e absorto. A escritora ainda se amparou no efeito contraditório que a imagem inspira: uma mulher, medica que tem como profissão cuidar de criança, fumando.

Resumo da obra e seus personagens 

A obra é narrada em primeira pessoa, sem pontos e travessões em fluxo continuo de pensamento. A narradora é a única testemunha dos acontecimentos. Temos acesso apenas ao que passa em seus pensamentos. São 55 pequenos capítulos todos encapsulados na mente de Cecilia e sua relação pouco empática com o mundo e com aqueles que a rodeiam. Nesses capítulos, a medica confabula sobre aqueles que passam por sua vida e com os quais ela convive, mas não quer de fato compartilhar.

A narradora é Cecilia, filha única de pai médico e mãe enfermeira, medica neonatogista que diz não gostar de crianças e que assim define sua incursão na medicina “meu caso é comum, estudei medicina desapaixonada, com o pai no leme”.

Através da narrativa nos sãos apresentados personagens em variado grau de opacidade. Temos o marido do qual se divorcia. Homem que segundo a narradora é privilegiado do ponto de vista financeiro tal como ela, mas sofre de depressão. Cecilia demonstra forte desinteresse pelo marido e acaba por se separar dele nos primeiros capítulos do livro.

Posteriormente nos é apresentado seu amante, Celso. Personagem masculino de pouca expressividade, casado e que leva a esposa para ser paciente da amante, confiando-lhe não somente os cuidados no recém-nascido como também a saúde de sua esposa no momento do parto.

A esposa de Celso tem descrições bem contidas. Sabemos que é advogada, que sofreu na primeira gestação e que na segunda gestação apresentou quadros de depressão e ansiedade e por fim uma gravidez de risco. As aparições narrativas da esposa são sempre concessões clínicas da narradora que permite que o amante a faca de ouvinte de suas agruras domesticas única e exclusivamente para ganhar terreno para suas pretensões no relacionamento extraconjugal.

Outra personagem muito interessante é Deise. Figura tipicamente nacional, a da empregada que dorme em casa e fica a disposição do patrão, Deise vai ganhando terreno no monologo mental de Cecilia a medida que suas complexidades tipicamente humanas vão sendo colocadas na mesa: o fato de estar gravida, de o pai da criança ser o marido da Irma, a dependência alcoólica, todas esses acontecimentos vão ocupando a mente de Cecilia mais pela proximidade física do que por uma solidariedade emocional para com a situação de vulnerabilidade e desamparo da jovem, trata-se portando de uma clara relação de poder. A configuração da complexidade inerente da relação de intimidade e hierarquia típica do trabalho doméstico aqui é escalonada a máxima potência na medida em entra em cena o amante de Deise, Robson. Outra figura masculina representada tab. de forma muito opaca, Robson, o vigia da pizzaria pinheiros, aparenta certa insolência na medida em que transita da paisagem mental de Cecilia para a sala de estar de sua casa. Alterando uma fugaz atração que Cecilia teve sobre ele depois de saber de sua relação com Deise. De tensão erótica para desconfiança e hostilidade.

Na sua paisagem profissional temos também personagens que despertam desasseio em Cecilia. Temos o médico que pratica a medicina humanizada, área medica que gera desprezo para Cecilia. E outros elementos que orbitam este universo do parto humanizado Douglas, professoras de yoga.

Dentre eles, Jaime é o que mais a incomoda justamente por ser o antípoda de suas pratica profissional. Medico alternativo, querido pelos colegas, estudioso e considerado “o melhor”, a despeito dessas credenciais ele é uma afronta para a ciência e para a medicina,

Na esfera familiar Cecilia nos apresenta sua mãe e seu pai. Em relação a mãe sua mãe parece não esboçar grande cuidado ou atenção. Muito provavelmente se sente superior a mãe que é enfermeira enquanto ela é medica. mas a seu pai devota verdadeira apego. É em relação a ele que parece de fato ter alguma empatia e admiração. Seu pai é o médico diligente e idealizado ao qual todo paciente gostaria de confiar sua vida e saúde. Sua narrativa acena para uma relação quase edípica, somente abalada pela doença do pai, a fragilidade real, os cuidados, as doenças não conseguem amparo no coração dessa pediatra, até mesmo quando vindos daquele que aparentemente é o que ela mais ama

Por fim temos Bruninho, filho do amante, criança da qual participou do parto e para o qual Cecilia ira devotar um amor maternal nunca antes visto. Bruninho é uma criança que, pelo que indica a narradora é negligenciada e solitária. De modo que esse personagem parece de alguma maneira refletir a própria história da narradora. Filha de um médico workaholic e de uma enfermeira consumida por plantões, solitária e carente, Cecilia parece projetar em Bruninho a sua necessidade de resgate amoroso. A Bruninho Cecilia quer dar o colo ao qual recorre mesmo adulta na figura de seu pai.

Além desses personagens também podemos destacar a figura dos pais das crianças, das mães cuidadora de crianças com doenças crônicas, a figura da baba, das escolas infantis e da própria medicina. Nenhuma dessas pessoas ou instituições é poupada do olhar mordaz da pediatra. Os pais são insuportáveis, as babas aqui são desatentas e sem afeto. As escolas infantis são pretensiosas e enganadoras a medicina por aqui é tirada do pedestal e reduzida a uma sucessão de protocolos que pode garantir sucesso profissional não apenas para os vocacionados, mas inclusive para aqueles que detestam a profissão.


Avaliação da obra 

O monologo estabelecido por Cecilia é mordaz e verborrágico. Cecilia tece a vida por meio de protocolos e acoes nas quais todos aqueles que cruzam seu caminho são descartáveis. Os sexos tampem é visto de forma livre e sem limites, mas também parece um envolvimento protocolar sem verdadeira entrega. Não há conflito morais. O deserto particular da pediatra a engendra em devaneios que somente ela própria vive. Embora amoral e canalha nenhuma de suas guerras particulares cruza o limiar da maldade. Elas ficam apenas no plano mental. Embora não goste de crianças, nunca as matou. Embora deteste o médico alternativo, nunca denunciou Jaime ao conselho de medicina pela pratica de parto domiciliar, mesmo sabendo do endereço da esposa de sua amente, espreita, mas não chega as vias de desmascarar celso, e muito provavelmente embora tencione raptar o pequeno Bruninho, possivelmente não o levara para o litoral.

Cecilia é uma canalha de cativa justamente por não cruzar a fronteira do pacto social. O grande mérito da obra ao meu ver é o elogia a liberdade de pensamento. Em nossa intimidade todas podemos ser Cecilia. Ou melhores todos somos Cecilia em alguma medida. A mente não é pautada pela regra da moral social.

Por fim, é importante destacar a relevância das escritoras femininas contemporâneas. Cecilia desorganiza o clichê e a posição preá estabelecida da mulher de devota ao cuidado a mulher livre e desempecida para fazer aquilo que quiser.

Recomendo o livro pela facilidade da leitura e pela audácia bem-humorada da autora.

Ademais me fascina a capacidade da autora de escrever uma personagem que, ela própria adepta do parto humanizado, é o extremo oposto daquilo que ela pratica. Dessa forma fica a salvo de demagogias e militâncias que são importantes para a sociedade, mas podem se um desserviço para a literatura.

Cecilia é uma verdadeira iconoclasta que vilipendia de forma bem caustica os pedestais do exercício da medicina, do parto, da maternidade e muitos clichês como o da mulher vocacionada ao cuidado. Fascinante é o poder da arte que derruba estatuas sem precisar destrui-las.


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