sábado, 13 de outubro de 2018

Memórias de Porco-Espinho

de Alain Mabanckou

TRADUÇÃO: Paula Souza Dias Nogueira
Editora : Malê – Rio de Janeiro / 2017


de Marilia Klotz

Sobre o Autor

Alain Mabanckou, nasceu em 24 de fevereiro de 1966 (52 anos) na África , especificamente na República do Congo. Estudou direito em Brazzaville e aos 22 anos imigrou para a França , onde fez uma pós graduação em Paris. Possui uma dupla nacionalidade Franco – Congolês que acompanhou toda sua trajetória de vida e suas produções literárias. Na França trabalhou em várias multinacionais antes de se consagrar na literatura. Sua formação passa pelas letras, pela filosofia e pelo direito. Atualmente, mora nos USA e desde de 2002 atua como professor convidado, inicialmente de literatura e escrita criativa na Universidade de Michigan, e posteriormente na Universidade da Califórnia com disciplinas de literatura francófona.
É autor de 5 romances, 6 livros de poesias e vários relatos publicados em diferentes periódicos como o “Le Figaro ” de Paris e “Le soir” de Bruxelas.
Entre os prêmios mais importantes destaca-se  em 1999 o Grande prêmio Literário da África Negra e em 2006 o prêmio Renaudot com o livro Memórias do Porco-Espinho.
Este ano, 2018, participou da FLIP em Paraty – RJ/Brasil, onde falou sobre literatura e linguagem, mas também sobre as tradições da África, da Europa e da América. 
Mabanckou escreveu um livro infantil que conta a história de um menino de 10 anos de idade, cuja vida é marcada por grandes dificuldades, mas sobretudo por um enorme aprendizado sobre a morte. Ele obtém esse ensinamento através da relação que estabelece com  uma estrela.
Suas obras são traduzidas em 15 idiomas e, segundo o próprio autor “Memórias de Porco-espinho” é seu romance mais africano, onde homenageia as crenças, lendas e tradições africanas. Para ele o que interessa é “a face invisível das coisas, pois a realidade só está completa, quando se leva em consideração aquilo que não vemos”. Amplia desta maneira o conceito de realidade para além de uma palpável e objetiva.
Alain Mabanckou , inova as formas tradicionais dos contos africanos, fazendo uma narrativa criativa e irônica ao mesmo tempo o que faz dele, segundo os especialistas,  um dos maiores expoentes da literatura francófona atual. Faz parte de uma geração de escritores africanos que reflete criticamente sobre seu passado, sua herança cultural e, principalmente sobre a questão da identidade , através dos temas do exílio, da imigração, da sexualidade entre outros.
Em geral , os países africanos são vistos no ocidente como iguais e de uma única cultura. Mabanckou, entretanto, através de seus escritos tenta recuperar e resgatar as diferentes culturas  existentes , bem como reconstruir a identidade de cada povo e de cada tribo.
Para além de tudo isso sua narrativa possui toda uma originalidade que vem das línguas orais africanas faladas no Congo que transparece na construção da história , cujo único sinal de pontuação é a vírgula.

Sobre a História

Memórias de Porco-Espinho é a paródia de uma lenda popular africana de que todo ser humano possui um duplo animal, pacífico ou nocivo. Toda história é narrada por um porco-espinho que conviveu intimamente com os seres humanos de onde se autoriza a criticá-los  em seus hábitos e comportamentos, mas sobretudo na mania que todo o ser humano tem de se colocar como o umbigo do mundo, o centro e a auto referência para a busca de suas satisfações e de seus desejos mais obscuros.
No caso, o porco-espinho, que sòmente no final do livro descobrimos que possui um nome – NGUMBÁ , dado por seu mestre, era o duplo de um humano Kibandí a quem devia submissão e servidão inquestionável. Kibandí e o porco-espinho tem o mesmo corpo e só podem existir juntos. Quando o mestre Kibandí morre, o bichano usa o pouco tempo que lhe resta para fazer uma avaliação de sua própria conduta e tentar uma reparação quanto a sua fama de mal.  O porco-espinho executa os sinistros desejos de seu mestre e realiza uma série de assassinatos de todos aqueles que atravessam o caminho de seu senhor. O faz com a ajuda de seus perigosos espinhos. Depois da morte de Kibandí e completamente triste pelo ocorrido, o porco-espinho senta-se aos pés do BAOBÁ ( árvore grandiosa e milenar típica do continente africano) e passa a contar-lhe sua história pessoal. Essa narrativa parece ter uma dupla função, não apenas reparar sua fama de mal, como encontrar sua própria identidade diferente daquela colada em  Kibandí. Parece buscar uma possível diferenciação. O EU e o OUTRO até então misturados, com o advento da morte e consequente separação, ocorre um corte neste prolongamento imaginário.  Na prática de 100 homicídios exercidos pelo animal  porco-espinho à mando do humano Kibandí, cabe a pergunta : “Quem entre o homem e o animal é verdadeiramente a besta? ”
Não é demais lembrar que o Porco – espinho nascido como duplo nocivo de seu mestre Kibandí, morre como duplo pacífico na busca da realização dos sonhos mais comuns ligados à sexualidade, a afinidade com um outro par, com sua descendência e com a transmissão de valores éticos e morais. (pg 126).
A história é rica em metáforas e significados o que nos permite uma série de leituras e interpretações.
Gostaria de acrescentar a propósito do “ duplo “ que no desenvolvimento infantil existe um momento, onde não raro a criança inventa um amigo imaginário com quem dialoga, mas só ele vê, pois é invisível aos outros.  É o duplo de si- mesmo que surge para realizar no imaginário, na fantasia, tudo aquilo que a criança, não pode ou não consegue fazer na realidade.
Da mesma forma que no livro o duplo nocivo de Kibandí só aparece aos 10 anos de idade e mediante um processo particular (espécie de ritual) no desenvolvimento infantil esse duplo também não está presente de saída. Faz parte de uma construção subjetiva humana e dos processos de recalcamento inconsciente. Alguns desejos que não podem ser satisfeitos na realidade são deslocados para esse outro lugar simbólico, digamos para esse duplo de si mesmo , conhecido e desconhecido de todos nós ao mesmo tempo.
A importância das leis encarnadas nas figuras parentais e de autoridade, sejam no mundo humano ou animal são extremamente importantes e determinantes para o aparecimento desses outros “duplos”.  A Bíblia, por exemplo é uma referência à essas leis sagradas que aparece na história como a representação daquilo que se pode e o que não se pode fazer. (pg 15).
Finalmente, dentre as inúmeras associações que se pode fazer nessa  história,  a questão da morte, para mim, coroa toda a busca de sentido para a vida, sendo que é nesse momento da morte de Kibandí que o porco-espinho realiza seu processo de significação e de sentido missionário acerca da sua vida.” A palavra diz ele, nos salva do medo da morte ! “ Extraímos , portanto a importância da fala do porco espinho e da escuta acolhedora e silenciosa do Baobá tal qual de um psicanalista num processo analítico com seu analisando.
Gostei e recomendo a leitura!!!

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Memórias de Porco-Espinho

de Alain Mabanckou


Comentários de Carlos Guido Azevedo


Muito interessante e qualificado o livro de Alain Mabanckou com amplas inovações de estilo, grafia e sonoridade. O livro foi escrito em francês respeitando a sonoridade de língua falada no Congo. Não faz uso do ponto e nem inicia capítulo ou parágrafo com maiúscula.
Quebrando assim, algumas regras da linguagem escrita e inovando no estilo, a fábula se  desenvolve, cheia de pensamentos filosóficos e questionamentos humanos através da voz de um porco espinho, que segundo a tradição do Congo é um duplo animal, propriedade firmada pela tradição do Congo como característica que cada pessoa carrega que pode ser pacífico ou nocivo e que atende ao “outro ele mesmo” de cada um, numa visão muito psicanalítica do alter-ego, como as especialistas do grupo poderão explicar.
A alegoria desenvolvida por Nabanckou nas memórias do Porco-Espinho é uma prosopopeia na qual os animais pensam e falam como humanos e carregam o pior da humanidade, compreendendo suas dores e incertezas.
A confissão do Porco Espinho ao grande Baobá após a morte de Kibandí do qual o porco falante era o duplo nocivo é de uma humanidade sem precedente, com claras alusões ao remorso pela sequência de assassinatos do qual ele julga ter participado, obrigado pela sua condição de duplo nocivo, porque, ao fim e ao cabo, era obrigado a suprir a fome de sangue do outro ele mesmo de Kibandí.
Relata sua formação no bando de porcos-espinhos e a marcação constante que o porco mestre lhe aplicava, talvez já soubesse que estaria talhado para ser duplo nocivo e lhe transmitia lições que viriam a ser úteis para sua vida isolada. Dizia o mestre para que ele viesse a aceitar seu destino: "de tanto esperar uma condição melhor, o sapo ficou sem rabo para toda a eternidade”. 
“A modéstia é as vezes um obstáculo que nos impede de existir, temos de valorizar nossas próprias qualidades”. 
“Eu sou como um surdo que corre até perder o fôlego. Se virem um surdo correr, não façam perguntas, sigam-no, pois ele não escutou o perigo, ele o viu”.
Participou efetivamente, conta ele ao Baobá, de 99 assassinatos e todos realizados com perícia de mestre com o lançamento de seus espinhos mais mortíferos, e em nenhum dos casos deixou qualquer tipo de prova ou rastro que incriminasse seu original humano.
Através de sua dualidade como duplo nocivo ele descobriu a leitura e o interesse pelas grandes questões da humanidade que lhe eram passados diretamente pela mente do original humano.
Todo o desenrolar da vida de Kibandí é repassada para o Baobá na digressão do porco-espinho seu duplo animal. Nela se revela um ser rejeitado e sofredor que saiu da sua aldeia Mossaká com sua mãe, após a morte do pai e foram viver na aldeia Sêkêpembê, onde viveram como estrangeiros, sem poder participar das reuniões e festas da aldeia.
Especializado em fazer telhados, Kibandí foi um bom profissional, mas, feio como um percevejo, magro como um prego de moldura de foto, foi rejeitado por Kimanú sua pretendente e por estas e outras acabou alcoólico viciado em vinho da palma.
Seu sofrimento acabou desenvolvendo sua capacidade de desejar o mal aos outros por qualquer que fosse o motivo, desencadeando a ação do duplo nocivo para alimentar seu “outro ele mesmo” que desejava a morte de seus oponentes.
Nestas condições o porco espinho falante desenvolvia a sua missão de assassinar através do lançamento de seus espinhos mortais os inimigos de Kibandí, o que na tradição do Congo correspondia a comer o inimigo, ou seja, desejar e provocar a sua morte.
A centésima morte seria a de dois gêmeos, o que feria a tradição e a capacidade de ação do duplo nocivo e trazendo a morte do original humano do porco-espinho e por consequência a do seu duplo animal.
No entanto, está ele ali ao pé do Baobá contando a estória e se descobrindo vivo e crendo que o Ser lá de cima o quer para outras missões. Pois só por Ele é que pode acontecer isso dele estar vivo e com todo este sentimento de remorso e autocomiseração. Afinal Deus existe.

Gostei e recomendo com louvor.