Um Grão de Trigo (1967; edição Alfaguara 2015)
Autor: Ngugi
Wa Thiong´o (1938, Quênia)
by
Daniela
Uhuru
Kenyatta foi eleito em 2013 como o quarto presidente da República do Quênia.
Quando do seu nascimento, em 1961, seu pai Jomo Kenyatta, liberado após 8 anos
de prisão, já liderava as negociações com a Inglaterra para a independência do Quênia,
e lhe deu o nome desta esperança. A Uhuru viria a se concretizar em 1963,
encerrando o período de cerca de 70 anos de colonização inglesa no território
kikuyu, combatida de forma organizada desde os anos 20.
O processo
de descolonização do Quênia é o pano de fundo da ficção histórica de Ngugi Wa
Thiong´o, escrita em 1967. A história se passa nos dias anteriores à Uhuru, na
vila de Thabai, onde os personagens têm suas interações marcadas pelas
cicatrizes do período de Emergência (1952 a 1960) que foi decretado pelas
autoridades inglesas locais em resposta à rebelião Mau Mau. Os personagens
principais (Mugo, Mumbi, Gynkonio,
Karanja, Kihika) carregam, cada um na sua solidão, seus atos de
heroísmo, sacrifício e traição. O autor, Ngugi, é da mesma geração de seus
personagens e viveu o período de rebelião dos quenianos contra os ingleses, que
deixou entre 130 e 300 mil mortos (curiosidade: o avô do Obama passou por um
campo de detenção no Quênia).
Kihika
cresceu ouvindo dos anciãos de Thabai histórias sobre o Movimento de
resistência à colonização inglesa, seus heróis, sacrifícios e feitos. Alguns
meses depois que a Emergência foi
decretada e Jomo Kenyatta e outras lideranças do Movimento foram presos,
Kihika foi se esconder na floresta, liderando um grupo de rebeldes. Após
assassinar o chefe do distrito, Robson, Kihika é capturado e enforcado em praça
pública.
“Em verdade, em verdade vos digo: se o grão
de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá
muito fruto.”
João 12,24
(versículo sublinhado em preto na Bíblia de Kihika)
No dia da
celebração da Uhuru, os organizadores da festa na vila querem homenageá-lo e
alguns articulam para que seu traidor seja desmascarado publicamente. Mugo,
considerado por todos um herói por ter resistido a torturas e greve de fome nos
campos de detenção sem entregar ninguém, é convidado a discursar na homenagem,
mas se recusa a ir, ele só quer ser deixado em paz. Desde o começo ele queria
ser deixado em paz, não acreditava na capacidade do Movimento de se contrapor
aos britânicos e só queria trabalhar o seu pedaço de terra. Por isso a raiva de
Kihika, do discurso de Kihika e da vez que ele apareceu em sua casa na noite em
que assassinou Robson e o tragou para uma causa que não era sua. Por isso o entregou para as autoridades
inglesas.
Mumbi , irmã
de Kihika, e Gynkonio viveram o amor nos tempos da Emergência, mas a prisão de
Gynkonio por seis anos em campo de detenção abriu um fosso profundo entre os
dois. Para voltar para casa, Gynkonio confessa seu juramento ao Movimento, mas
encontra Mumbi com um filho de seu maior rival, Karanja. Karanja, que pertencia
ao grupo do jovem Kihika, opta por colaborar com os ingleses em troca de
migalhas de poder sobre seus iguais, e tem que viver com sua traição
particular.
‘De fato, o
maior feito de Ngugi no romance é o uso de um conjunto de narrativas múltiplas,
nas quais o passado só pode ser representado através da consciência de um grupo
de personagens cujas intenções e desejos são tão complexos e conflitados que ,
no fim, a história do nacionalismo no Quênia se torna um enigma.” (Simon Gikandi, prefácio)
O ponto de
vista do narrador onisciente facilita a construção dos personagens a partir de
suas memórias, medos, desejos e frustrações, e essa construção se dá ao longo
de toda a trama, em eventos não lineares no tempo. Os fatos, ou a interpretação
deles por cada um, vão sendo revelados aos poucos, com maestria. Os inúmeros
personagens secundários (tem até uma fitopatologista na história!) colorem a
paisagem narrativa e dão uma dimensão do drama coletivo da época. O tradutor
optou por não traduzir alguns termos, como
jembe e panga; shamba; shauri, o que dá um efeito interessante ao texto.
Curioso também é que no capítulo 14, quando começa a descrição do dia da Uhuru,
há uma cena que é narrada na primeira pessoa do plural (p251-253 – nossa
aldeia, tecemos, esperávamos, temíamos, nossos corações), que interpretei como
um relato testemunhal do autor.
Depois do
sucesso do romance, escrito em inglês quando o autor estudava na Universidade
de Leeds, James Ngugi (seu nome de batismo) adotou o nome atual e passou a
escrever somente no idioma gikuyu. Em 1977, no governo do presidente Jomo
Kenyatta, líder nacionalista exaltado em “Um grão de trigo”, Ngugi foi preso
por causa das críticas sociais de seus romances e peças em gikuyu. Libertado um
ano depois, continuou a ser perseguido e exilou-se nos Estados Unidos, onde
vive até hoje, dando aulas na Universidade da Califórnia-Irvine. Em 2004,
quando voltou ao Quênia pela primeira vez depois de 22 anos, sua casa foi
invadida por três ladrões, que o agrediram e estupraram sua mulher. Os
invasores foram presos e condenados à morte.
“Como
romancista, é claro que não me interesso por situações em preto e branco, tento
ver as nuances das personalidades e da História. “Um grão de trigo” expressava
meus sentimentos na época, quatro anos depois da independência, quando eu sentia
que muitas metas da luta pela libertação estavam sendo deixadas de lado pelo
novo governo pós-colonial. O romance investigava aquele momento, quando não
tínhamos uma ideia clara do que estava errado, mas sentíamos que algo não ia
bem. Daí a ambiguidade, talvez.” (entrevista do autor na FLIP, 2015)
https://oglobo.globo.com/cultura/livros/atracao-da-flip-2015-escritor-queniano-ngugi-wa-thiongo-fala-sobre-dilemas-da-africa-16036074
O que tem
que morrer para germinar?
“Insensato! O que semeias não readquire vida
a não ser que morra. E o que semeias não é o corpo da futura planta que deve
nascer, mas um simples grão de trigo ou de qualquer outra espécie.”
Ia Coríntios 15, 36
Disse o
Senhor a Moisés: “Vai ter com o faraó e dize-lhe: Assim fala o Senhor, Deixa o
meu povo partir.”
Êxodo 8.1
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