quarta-feira, 14 de junho de 2017

Um Grão de Trigo - Ngugi Wa Thiong´o

Um Grão de Trigo (1967; edição Alfaguara 2015)
Autor: Ngugi Wa Thiong´o (1938, Quênia)
by Daniela
 



Uhuru Kenyatta foi eleito em 2013 como o quarto presidente da República do Quênia. Quando do seu nascimento, em 1961, seu pai Jomo Kenyatta, liberado após 8 anos de prisão, já liderava as negociações com a Inglaterra para a independência do Quênia,   e lhe deu o nome desta esperança.  A Uhuru viria a se concretizar em 1963, encerrando o período de cerca de 70 anos de colonização inglesa no território kikuyu, combatida de forma organizada desde os anos 20. 
O processo de descolonização do Quênia é o pano de fundo da ficção histórica de Ngugi Wa Thiong´o, escrita em 1967. A história se passa nos dias anteriores à Uhuru, na vila de Thabai, onde os personagens têm suas interações marcadas pelas cicatrizes do período de Emergência (1952 a 1960) que foi decretado pelas autoridades inglesas locais em resposta à rebelião Mau Mau. Os personagens principais (Mugo, Mumbi, Gynkonio,  Karanja, Kihika) carregam, cada um na sua solidão, seus atos de heroísmo, sacrifício e traição. O autor, Ngugi, é da mesma geração de seus personagens e viveu o período de rebelião dos quenianos contra os ingleses, que deixou entre 130 e 300 mil mortos (curiosidade: o avô do Obama passou por um campo de detenção no Quênia).
Kihika cresceu ouvindo dos anciãos de Thabai histórias sobre o Movimento de resistência à colonização inglesa, seus heróis, sacrifícios e feitos. Alguns meses depois que a Emergência foi  decretada e Jomo Kenyatta e outras lideranças do Movimento foram presos, Kihika foi se esconder na floresta, liderando um grupo de rebeldes. Após assassinar o chefe do distrito, Robson, Kihika é capturado e enforcado em praça pública.

Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto.”
João 12,24 (versículo sublinhado em preto na Bíblia de Kihika)
No dia da celebração da Uhuru, os organizadores da festa na vila querem homenageá-lo e alguns articulam para que seu traidor seja desmascarado publicamente. Mugo, considerado por todos um herói por ter resistido a torturas e greve de fome nos campos de detenção sem entregar ninguém, é convidado a discursar na homenagem, mas se recusa a ir, ele só quer ser deixado em paz. Desde o começo ele queria ser deixado em paz, não acreditava na capacidade do Movimento de se contrapor aos britânicos e só queria trabalhar o seu pedaço de terra. Por isso a raiva de Kihika, do discurso de Kihika e da vez que ele apareceu em sua casa na noite em que assassinou Robson e o tragou para uma causa que não era sua.  Por isso o entregou para as autoridades inglesas.
Mumbi , irmã de Kihika, e Gynkonio viveram o amor nos tempos da Emergência, mas a prisão de Gynkonio por seis anos em campo de detenção abriu um fosso profundo entre os dois. Para voltar para casa, Gynkonio confessa seu juramento ao Movimento, mas encontra Mumbi com um filho de seu maior rival, Karanja. Karanja, que pertencia ao grupo do jovem Kihika, opta por colaborar com os ingleses em troca de migalhas de poder sobre seus iguais, e tem que viver com sua traição particular.
‘De fato, o maior feito de Ngugi no romance é o uso de um conjunto de narrativas múltiplas, nas quais o passado só pode ser representado através da consciência de um grupo de personagens cujas intenções e desejos são tão complexos e conflitados que , no fim, a história do nacionalismo no Quênia se torna um enigma.”  (Simon Gikandi, prefácio)
O ponto de vista do narrador onisciente facilita a construção dos personagens a partir de suas memórias, medos, desejos e frustrações, e essa construção se dá ao longo de toda a trama, em eventos não lineares no tempo. Os fatos, ou a interpretação deles por cada um, vão sendo revelados aos poucos, com maestria. Os inúmeros personagens secundários (tem até uma fitopatologista na história!) colorem a paisagem narrativa e dão uma dimensão do drama coletivo da época. O tradutor optou por não traduzir alguns termos, como  jembe e panga; shamba; shauri, o que dá um efeito interessante ao texto. Curioso também é que no capítulo 14, quando começa a descrição do dia da Uhuru, há uma cena que é narrada na primeira pessoa do plural (p251-253 – nossa aldeia, tecemos, esperávamos, temíamos, nossos corações), que interpretei como um relato testemunhal do autor.
Depois do sucesso do romance, escrito em inglês quando o autor estudava na Universidade de Leeds, James Ngugi (seu nome de batismo) adotou o nome atual e passou a escrever somente no idioma gikuyu. Em 1977, no governo do presidente Jomo Kenyatta, líder nacionalista exaltado em “Um grão de trigo”, Ngugi foi preso por causa das críticas sociais de seus romances e peças em gikuyu. Libertado um ano depois, continuou a ser perseguido e exilou-se nos Estados Unidos, onde vive até hoje, dando aulas na Universidade da Califórnia-Irvine. Em 2004, quando voltou ao Quênia pela primeira vez depois de 22 anos, sua casa foi invadida por três ladrões, que o agrediram e estupraram sua mulher. Os invasores foram presos e condenados à morte.
“Como romancista, é claro que não me interesso por situações em preto e branco, tento ver as nuances das personalidades e da História. “Um grão de trigo” expressava meus sentimentos na época, quatro anos depois da independência, quando eu sentia que muitas metas da luta pela libertação estavam sendo deixadas de lado pelo novo governo pós-colonial. O romance investigava aquele momento, quando não tínhamos uma ideia clara do que estava errado, mas sentíamos que algo não ia bem. Daí a ambiguidade, talvez.” (entrevista do autor na FLIP, 2015)
https://oglobo.globo.com/cultura/livros/atracao-da-flip-2015-escritor-queniano-ngugi-wa-thiongo-fala-sobre-dilemas-da-africa-16036074
O que tem que morrer para germinar?
Insensato! O que semeias não readquire vida a não ser que morra. E o que semeias não é o corpo da futura planta que deve nascer, mas um simples grão de trigo ou de qualquer outra espécie.
 Ia Coríntios 15, 36
Disse o Senhor a Moisés: “Vai ter com o faraó e dize-lhe: Assim fala o Senhor, Deixa o meu povo partir.”
Êxodo 8.1

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