de Albert Camus
Resistente a leitura de qualquer
dos livros de Camus e de outros existencialistas, fui induzido por Claudine a
superar minha relutância, que tem base na consciência da incapacidade de
resistir aos encantos desses escritores que tendem a menosprezar o valor da
vida, da fé e do destino do homem. Assim, tenho evitado lê-los, como evito o
cigarro e a outras substâncias.
por Carlos Guido Azevedo
A Peste foi uma grande surpresa,
um clássico onde a vida fez sentido e a morte foi tratada com respeito e
dignidade. Naturalmente, por instinto, assumo algum personagem durante a
leitura, desta vez foi o jornalista Rambert, acho por similaridade, com minha
síndrome de “não sou daqui, nem vim pra ficar”, que me invade em cada lugar
diferente que tenho morado, nessa minha vida meio nômade.
Conhece Oran? Vai se familiarizar
com ela fácil, é a cidade atacada pela epidemia. Qualquer um pode ver, sentir
os cheiros, a poeira e os barulhos de Oran descritos por Camus, através de
poucos e certeiros traços escritos com sensibilidade. Afinal, para travar
conhecimento com uma cidade, “basta saber como se trabalha, como se ama e como
se morre nela”. Oran foi fechada, atacada pela peste negra, ninguém podia sair
ou entrar na cidade, seus habitantes tiveram que viver a circunstância de “apartados
do mundo”.
O sentimento de isolamento é que faz
Oran universal ao transformar todos os moradores em “separados”. É aí que o
leitor se descobre em Oran, lá, “como no resto do mundo, por falta de tempo e
de reflexão, somos obrigados a amar sem saber”.
O cronista, Dr. Bernand Rieux, no
olho do furacão não se faz herói ou observador onisciente, economiza
personagens, toma emprestado anotações de outros, mas observa os habitantes em
grupos com maestria, eles é que demoram a se perceberem no coletivo. Diante do
perigo, tentam negá-lo, fugir, transferir a responsabilidade para outros,
tentam toda espécie de fuga, até encararem a tragédia de frente e viverem o
melhor possível, diante das circunstâncias.
Jean Tarrou, cujas anotações
apoiam Rieux, observa os comentários da população e anota em seu caderno,
pensamentos tipo: “Pergunta: Como fazer para não se perder tempo? Resposta:
Senti-lo em toda a sua extensão. Meios: Passar os dias na sala de espera de um
dentista, numa cadeira desconfortável”; e dá outras formas de se prestar
atenção ao tempo. Aliás, o tempo é um dos assuntos mais marcantes do livro,
como se arrasta, se acelera, passa desapercebido ou toma velocidade de vendaval
em função das circunstâncias ditadas pela epidemia, pela natureza e pelo estado
de espírito do observador. Tarrou, ajuda Rieux em todas as tarefas e faz uma
amizade tão sólida que acaba morando na sua casa e lá falecendo como uma das
últimas vítimas da epidemia.
Raymond Rabert o jornalista
tomado de surpresa pelo fechamento das portas da cidade enquanto fazia uma
reportagem, representa bem os pensamentos do separado, impedido de ir ao encontro
marcado com a amada, não se sente minimamente pertencente a cidade e busca
fugir de todos os modos legais ou não. A grande questão da peste na cidade,
parece ser esmaecida pela problemática humana da apartação, da separação do ser
amado, das dúvidas sobre se, se continua sendo amado, dada a distância, a
própria vida da amada, as circunstâncias que ela vive longe, se ela ou ele
ainda é a mesma ou se transformou em outa pessoa, são questões que vão envolver
todos os separados. Sem qualquer julgamento Rieux vai aconselhando Rabert em
cada etapa de suas tentativas de fuga, e este acaba se sentindo útil, fazendo
amizades e colaborando corajosamente na luta contra a epidemia.
A todo instante vemos
demonstrações de amizade entre as pessoas que emocionam e revelam a verdadeira
humanidade do texto, as caminhadas em grupo para visitação de doentes, o
desprendimento de pessoas simples que se dedicam a apoiar, organizar dispensários,
isolamentos e até o própria funcionamento da cidade, lutando para buscar a
normalidade, fazer funcionar as repartições, o comércio e a vida afinal, diante
de tantas restrições, limitações e agruras. As famílias parecem se unirem mais,
os bairros ganham características distintas se harmonizam, dialogam, estão
todos dentro do mesmo caldeirão.
Joseph Grand o empregado da
Câmara um funcionário dedicado à burocracia, parece o mais comum e sem méritos
dos seres, frágil e insignificante, até que aos poucos vai se dando a conhecer
e se revela “um dos raros homens que tem a coragem de assumir seus
sentimentos”. Um apaixonado pela escrita e pelo dever, centrado em esculpir um
único parágrafo do seu futuro livro, para o qual os críticos iriam tirar o
chapéu.
Cottard o empresário, suicida
frustrado, procurado pela justiça que torce pela doença, a Peste é sua salvação.
Com tudo fora de ordem não haverá pressa em lhe mandar prender e acompanha com
desenvoltura o crescendo da doença, colaborando em tudo, mas parece torcer para
que nunca se acabe, enlouquecendo quando sente que o seu final vai chegando.
Mas, de todos os personagens o
mais marcante para mim, por questão de religião, foi o padre Paneloux, tribuno
carismático que expressa a busca de compreender a epidemia, primeiramente,
interpreta a peste como a ira de Deus contra os pecados da cidade, querendo que
todos se penitenciem, peçam perdão, porém, acompanhamos sua transformação
depois de assistir ao sofrimento e morte de uma criança, o filho do juiz.
Paneloux faz um novo sermão e recoloca os seus pensamentos de incompreensão e
dúvidas, quando o fatalismo e o existencialismo se apresentam e levam Paneloux
a se entregar a doença não como um mal, mas como um benefício enviado por Deus,
já que em seu raciocínio se devia “aceitar tudo ou negar tudo” e ele não queria
negar tudo e acaba se contaminando e morrendo com a doença.
Há muito o que se falar e
sobretudo o que se pensar a respeito desse instigante livro, desde a sua
originalidade, a erudição do autor, os inusitados pontos de vista que clareiam
ângulos diferentes de uma mesma estória, o ressalto à amizade entre os homens,
como sentimento mais forte de superação de dificuldades, elo de enfrentamento e
crescimento da emoção, respeito e coragem para enfrentar a fraqueza coletiva.
Conclui o livro com a síntese: “Sabiam
agora que, se há qualquer coisa que se pode desejar sempre e obter algumas
vezes, essa qualquer coisa é a ternura humana...” e avança em seu niilismo “e aos
outros que buscaram por cima do homem..., não houvera resposta...é justo que,
vez por outra a alegria viesse a recompensar os que se contentam com o homem e seu
pobre terrível amor”.
Gostei muito e recomendo com
louvor.
Mas preciso ter cuidado.
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