segunda-feira, 15 de maio de 2017

A PESTE


de Albert Camus
por Carlos Guido Azevedo

Resistente a leitura de qualquer dos livros de Camus e de outros existencialistas, fui induzido por Claudine a superar minha relutância, que tem base na consciência da incapacidade de resistir aos encantos desses escritores que tendem a menosprezar o valor da vida, da fé e do destino do homem. Assim, tenho evitado lê-los, como evito o cigarro e a outras substâncias.
A Peste foi uma grande surpresa, um clássico onde a vida fez sentido e a morte foi tratada com respeito e dignidade. Naturalmente, por instinto, assumo algum personagem durante a leitura, desta vez foi o jornalista Rambert, acho por similaridade, com minha síndrome de “não sou daqui, nem vim pra ficar”, que me invade em cada lugar diferente que tenho morado, nessa minha vida meio nômade.
Conhece Oran? Vai se familiarizar com ela fácil, é a cidade atacada pela epidemia. Qualquer um pode ver, sentir os cheiros, a poeira e os barulhos de Oran descritos por Camus, através de poucos e certeiros traços escritos com sensibilidade. Afinal, para travar conhecimento com uma cidade, “basta saber como se trabalha, como se ama e como se morre nela”. Oran foi fechada, atacada pela peste negra, ninguém podia sair ou entrar na cidade, seus habitantes tiveram que viver a circunstância de “apartados do mundo”.
O sentimento de isolamento é que faz Oran universal ao transformar todos os moradores em “separados”. É aí que o leitor se descobre em Oran, lá, “como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber”.
O cronista, Dr. Bernand Rieux, no olho do furacão não se faz herói ou observador onisciente, economiza personagens, toma emprestado anotações de outros, mas observa os habitantes em grupos com maestria, eles é que demoram a se perceberem no coletivo. Diante do perigo, tentam negá-lo, fugir, transferir a responsabilidade para outros, tentam toda espécie de fuga, até encararem a tragédia de frente e viverem o melhor possível, diante das circunstâncias.
Jean Tarrou, cujas anotações apoiam Rieux, observa os comentários da população e anota em seu caderno, pensamentos tipo: “Pergunta: Como fazer para não se perder tempo? Resposta: Senti-lo em toda a sua extensão. Meios: Passar os dias na sala de espera de um dentista, numa cadeira desconfortável”; e dá outras formas de se prestar atenção ao tempo. Aliás, o tempo é um dos assuntos mais marcantes do livro, como se arrasta, se acelera, passa desapercebido ou toma velocidade de vendaval em função das circunstâncias ditadas pela epidemia, pela natureza e pelo estado de espírito do observador. Tarrou, ajuda Rieux em todas as tarefas e faz uma amizade tão sólida que acaba morando na sua casa e lá falecendo como uma das últimas vítimas da epidemia.
Raymond Rabert o jornalista tomado de surpresa pelo fechamento das portas da cidade enquanto fazia uma reportagem, representa bem os pensamentos do separado, impedido de ir ao encontro marcado com a amada, não se sente minimamente pertencente a cidade e busca fugir de todos os modos legais ou não. A grande questão da peste na cidade, parece ser esmaecida pela problemática humana da apartação, da separação do ser amado, das dúvidas sobre se, se continua sendo amado, dada a distância, a própria vida da amada, as circunstâncias que ela vive longe, se ela ou ele ainda é a mesma ou se transformou em outa pessoa, são questões que vão envolver todos os separados. Sem qualquer julgamento Rieux vai aconselhando Rabert em cada etapa de suas tentativas de fuga, e este acaba se sentindo útil, fazendo amizades e colaborando corajosamente na luta contra a epidemia.
A todo instante vemos demonstrações de amizade entre as pessoas que emocionam e revelam a verdadeira humanidade do texto, as caminhadas em grupo para visitação de doentes, o desprendimento de pessoas simples que se dedicam a apoiar, organizar dispensários, isolamentos e até o própria funcionamento da cidade, lutando para buscar a normalidade, fazer funcionar as repartições, o comércio e a vida afinal, diante de tantas restrições, limitações e agruras. As famílias parecem se unirem mais, os bairros ganham características distintas se harmonizam, dialogam, estão todos dentro do mesmo caldeirão.
Joseph Grand o empregado da Câmara um funcionário dedicado à burocracia, parece o mais comum e sem méritos dos seres, frágil e insignificante, até que aos poucos vai se dando a conhecer e se revela “um dos raros homens que tem a coragem de assumir seus sentimentos”. Um apaixonado pela escrita e pelo dever, centrado em esculpir um único parágrafo do seu futuro livro, para o qual os críticos iriam tirar o chapéu.
Cottard o empresário, suicida frustrado, procurado pela justiça que torce pela doença, a Peste é sua salvação. Com tudo fora de ordem não haverá pressa em lhe mandar prender e acompanha com desenvoltura o crescendo da doença, colaborando em tudo, mas parece torcer para que nunca se acabe, enlouquecendo quando sente que o seu final vai chegando.
Mas, de todos os personagens o mais marcante para mim, por questão de religião, foi o padre Paneloux, tribuno carismático que expressa a busca de compreender a epidemia, primeiramente, interpreta a peste como a ira de Deus contra os pecados da cidade, querendo que todos se penitenciem, peçam perdão, porém, acompanhamos sua transformação depois de assistir ao sofrimento e morte de uma criança, o filho do juiz. Paneloux faz um novo sermão e recoloca os seus pensamentos de incompreensão e dúvidas, quando o fatalismo e o existencialismo se apresentam e levam Paneloux a se entregar a doença não como um mal, mas como um benefício enviado por Deus, já que em seu raciocínio se devia “aceitar tudo ou negar tudo” e ele não queria negar tudo e acaba se contaminando e morrendo com a doença.
Há muito o que se falar e sobretudo o que se pensar a respeito desse instigante livro, desde a sua originalidade, a erudição do autor, os inusitados pontos de vista que clareiam ângulos diferentes de uma mesma estória, o ressalto à amizade entre os homens, como sentimento mais forte de superação de dificuldades, elo de enfrentamento e crescimento da emoção, respeito e coragem para enfrentar a fraqueza coletiva.
Conclui o livro com a síntese: “Sabiam agora que, se há qualquer coisa que se pode desejar sempre e obter algumas vezes, essa qualquer coisa é a ternura humana...” e avança em seu niilismo “e aos outros que buscaram por cima do homem..., não houvera resposta...é justo que, vez por outra a alegria viesse a recompensar os que se contentam com o homem e seu pobre terrível amor”.

Gostei muito e recomendo com louvor.
Mas preciso ter cuidado.

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