de João Guimarães Rosa
Comentários de Priscila Fernandes
Costa
O conto de Guimarães Rosa centra-se
na narrativa de um filho a respeito de seu pai, mas, sobretudo, e sem que ele
próprio se dê conta, sobre o lugar que ele ocupa na relação com este pai.
Embora o tempo todo fale do personagem paterno, revela no não-dito de seu
discurso toda a sua problemática em relação àquele.
Comecemos pelo título, que não
foi expressão do narrador, mas escolha do autor. A primeira sensação que se tem
ao ouvir o título do conto é de completa estranheza: qual é esta terceira
margem do rio? Tenta-se a todo custo localizar este lugar estranho, afinal
nosso mundo é construído, de entrada, a
partir da ereção de imagens, sob mas só
nos sobra o desconhecido, o enigmático, o impossível. A partir daí o autor nos
conduz a experimentar algo da ordem do inefável, disto que, numa primeira
leitura, aparece como incompreensível e inapreensível, e que, ao mesmo tempo, nos captura e aprisiona.
Temos aí, então, a marca da incidência do inconsciente em cada um de nós, o que
nos adverte que estaremos navegando por águas mais escuras.
Em seguida, nos damos conta de
estar lidando com personagens sem nome, o que nos leva a pensar que mais do que
de identidades, trata-se ali de lugares e funções simbólicas: o pai, a mãe, o filho narrador (o sujeito),
os irmãos.
O pai, este homem “cumpridor, ordeiro, positivo; ...não figurava mais estúrdio nem mais triste
que os outros.. Só quieto”, mas sobretudo silencioso, desiste da família e
do mundo falado e mergulha, ou melhor, desliza para um universo natural (no
sentido da natureza), quase inumano, em busca de não se sabe o quê. Parte em sua
canoa sem levar nada – “não pegou matula
e trouxa” – rumo a um desconhecido/familiar, desprovido e liberto de
qualquer tipo de laço social. E nunca mais volta. Passa a viver em sua canoa ao
sabor dos caprichos do rio.
Com um adeus decidido, vai-se
embora numa partida silenciosa, que deixa em cada um, seja uma saudade
envergonhada, um vazio, uma lembrança constante desta presença ausente, deste perto e longe: “Nem falou outras palavras,
não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação”. Ao filho resta, apenas, tentar dar sentido a
tudo que, no agir do pai, lhe escapa.
Fiquei me perguntando qual é o
personagem central do conto: o rio com sua terceira margem? O pai que abdica de sua função na família? Ou
o filho que a tudo assiste, mas de forma ativa,
sem saber o que tudo aquilo representa, e, menos ainda, que aquela história
o representa? Me parece ser o filho o personagem principal do conto, que
através de sua narrativa demonstra oscilar entre as fronteiras do real e do
surreal, do fantasistico/fantástico e do quotidiano familiar.
Através da canoa do pai, passeia
– e nós leitores junto com ele – por uma zona estranha e ao mesmo tempo
conhecida, (Unheimilich, para usar um
termo de Freud), que é a dimensão própria das representações inconscientes. Representações
edípicas de amor/rivalidade com a figura paterna, de quem ele precisa se
livrar, mas que ao mesmo tempo não pode prescindir, a não ser pagando o preço
da loucura. Mandar o pai embora, desembaraçar-se dele – mesmo que apenas na
fantasia onipotente da criança – deixa livre,
para o filho, um lugar
privilegiado ao lado da mãe, “que era
quem regia e ralhava no diário com a gente”; esta figura amada reina no centro do desejo infantil e
incestuoso deste filho.
Um pai silencioso... um rio
silencioso! A terceira margem parece
estar aí como a representação da interdição tirânica de um pai absoluto, que
através do silêncio – de ambos –, vocifera e se impõe no inconsciente e na vida
do filho, tornando-se temido e incompreensível para ele. Mas ele recusa a se
inscrever na Lei do Pai e por isso mantém-se sempre à margem, à margem do rio, à
margem da vida; sem se dar conta de que o que esse silêncio grita e reivindica,
em seu inconsciente, é a função paterna primordial: a castração simbólica.
Não há possibilidade para este
filho, sempre criança, – mesmo já estando no começo da velhice – de
construir para si uma vida de adulto se continuar vivendo nessa rivalidade
infantil com o pai, preso a um supereu que o tiraniza e lhe endereça uma ordem
que para ele (o filho) não tem qualquer significação. O pai se faz presente na ausência e sua
palavra se torna mais pontente na mudez. Há neste voto de silêncio misterioso
algo que deixa o filho preso, fixado a um pai inacessível e, até certo, ponto
desumanizado. Trata-se exatamente da culpa (neurótica) que o paralisa e
imobiliza a ponto de não conseguir ir embora dali, mesmo depois que todos os outros membros da
família se foram.
No fim do conto, o filho
finalmente foge deste pai, recusando ocupar o lugar dele, o que pode ser entendido
como a única saída saudável para o impasse no qual ele próprio se colocou. É
preciso traçar um destino próprio. Aceita-se castrado e faltoso, introjeta a
lei simbólica e se permite assumir uma
identidade de adulto diferenciado do pai. Torna-se, então, sujeito/agente da
própria história; torna -se o narrador do próprio conto.
* * *
imagem: Melancholy (1892), Edvard Munch
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