terça-feira, 13 de dezembro de 2016

A Terceira Margem do Rio


de João Guimarães Rosa

Comentários de Priscila Fernandes Costa

O conto de Guimarães Rosa centra-se na narrativa de um filho a respeito de seu pai, mas, sobretudo, e sem que ele próprio se dê conta, sobre o lugar que ele ocupa na relação com este pai. Embora o tempo todo fale do personagem paterno, revela no não-dito de seu discurso toda a sua problemática em relação àquele.
Comecemos pelo título, que não foi expressão do narrador, mas escolha do autor. A primeira sensação que se tem ao ouvir o título do conto é de completa estranheza: qual é esta terceira margem do rio? Tenta-se a todo custo localizar este lugar estranho, afinal nosso mundo é construído,  de entrada, a partir da ereção de imagens,  sob mas só nos sobra o desconhecido, o enigmático, o impossível. A partir daí o autor nos conduz a experimentar algo da ordem do inefável, disto que, numa primeira leitura, aparece como incompreensível e inapreensível, e que,  ao mesmo tempo, nos captura e aprisiona. Temos aí, então, a marca da incidência do inconsciente em cada um de nós, o que nos adverte que estaremos navegando por águas mais escuras.  
Em seguida, nos damos conta de estar lidando com personagens sem nome, o que nos leva a pensar que mais do que de identidades, trata-se ali de lugares e funções simbólicas:  o pai, a mãe, o filho narrador (o sujeito), os irmãos.
O pai, este homem “cumpridor, ordeiro, positivo; ...não figurava mais estúrdio nem mais triste que os outros.. Só quieto”, mas sobretudo silencioso, desiste da família e do mundo falado e mergulha, ou melhor, desliza para um universo natural (no sentido da natureza), quase inumano, em busca de não se sabe o quê. Parte em sua canoa sem levar nada – “não pegou matula e trouxa” – rumo a um desconhecido/familiar, desprovido e liberto de qualquer tipo de laço social. E nunca mais volta. Passa a viver em sua canoa ao sabor dos caprichos do rio.
Com um adeus decidido, vai-se embora numa partida silenciosa, que deixa em cada um, seja uma saudade envergonhada,  um vazio,  uma lembrança constante  desta presença ausente,  deste perto e longe: “Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação”.  Ao filho resta, apenas, tentar dar sentido a tudo que, no agir do pai, lhe escapa.
Fiquei me perguntando qual é o personagem central do conto: o rio com sua terceira margem?  O pai que abdica de sua função na família? Ou o filho que a tudo assiste, mas de forma ativa,  sem saber o que tudo aquilo representa, e, menos ainda, que aquela história o representa? Me parece ser o filho o personagem principal do conto, que através de sua narrativa demonstra oscilar entre as fronteiras do real e do surreal, do fantasistico/fantástico e do quotidiano familiar.
Através da canoa do pai, passeia – e nós leitores junto com ele – por uma zona estranha e ao mesmo tempo conhecida, (Unheimilich, para usar um termo de Freud), que é a dimensão própria das representações inconscientes. Representações edípicas de amor/rivalidade com a figura paterna, de quem ele precisa se livrar, mas que ao mesmo tempo não pode prescindir, a não ser pagando o preço da loucura. Mandar o pai embora,  desembaraçar-se dele – mesmo que apenas na fantasia onipotente da criança – deixa livre,  para o filho, um  lugar privilegiado ao lado da mãe, “que era quem regia e ralhava no diário com a gente”; esta figura  amada reina no centro do desejo infantil e incestuoso deste filho.
Um pai silencioso... um rio silencioso! A terceira margem  parece estar aí como a representação da interdição tirânica de um pai absoluto, que através do silêncio – de ambos –, vocifera e se impõe no inconsciente e na vida do filho, tornando-se temido e incompreensível para ele. Mas ele recusa a se inscrever na Lei do Pai e por isso mantém-se sempre à margem, à margem do rio, à margem da vida; sem se dar conta de que o que esse silêncio grita e reivindica, em seu inconsciente, é a função paterna primordial: a castração simbólica.
Não há possibilidade para este filho, sempre criança, – mesmo já estando no começo da velhice – de construir para si uma vida de adulto se continuar vivendo nessa rivalidade infantil com o pai, preso a um supereu que o tiraniza e lhe endereça uma ordem que para ele (o filho) não tem qualquer significação.  O pai se faz presente na ausência e sua palavra se torna mais pontente na mudez. Há neste voto de silêncio misterioso algo que deixa o filho preso, fixado a um  pai inacessível e, até certo, ponto desumanizado. Trata-se exatamente da culpa (neurótica) que o paralisa e imobiliza a ponto de não conseguir ir embora dali,  mesmo depois que todos os outros membros da família se foram.
No fim do conto, o filho finalmente foge deste pai, recusando ocupar o lugar dele, o que pode ser entendido como a única saída saudável para o impasse no qual ele próprio se colocou. É preciso traçar um destino próprio. Aceita-se castrado e faltoso, introjeta a lei simbólica e se  permite assumir uma identidade de adulto diferenciado do pai. Torna-se, então, sujeito/agente da própria história; torna -se o narrador do próprio conto.
* * *
imagem: Melancholy (1892), Edvard Munch



Nenhum comentário:

Postar um comentário