terça-feira, 15 de setembro de 2015

NÚMERO ZERO


de Umberto Eco

 por Priscila Fernandes Costa
            Número Zero, último romance de Humberto Eco se passa na Itália, na cidade de Milão, no ano de 1992. Tem como tema central o impacto do mau jornalismo na opinião pública. O título do livro refere-se a uma prática nada incomum no meio jornalístico. Trata-se de uma edição teste, de circulação limitada, de uma publicação – revista ou jornal - que ainda está por ser lançada, com o intuito de ver a aceitação do público em relação a tal veículo. 
            O livro trata, então, da redação imaginária de um jornal de nome “O Amanhã” que não se sabe se irá entrar em circulação de fato, mas que tem como objetivo desinformar, difamar, chantagear, manipular, elaborar dossiês e documentação secreta e prestar serviços duvidosos a certo Comendador (Vimercate é seu nome) que “quer entrar para o clube de elite das finanças, dos bancos e, quem sabe, dos grandes jornais”.
            O diretor do jornal é Simei, um jornalista sem escrúpulos, contratado diretamente pelo Comendador e encarregado de montar uma equipe de redatores que ficará responsável pela confecção das matérias. Além do periódico, Simei tem a intenção de “escrever” um livro sobre os bastidores do jornal que já nasce comprado e corrompido. O livro teria como título “Amanhã: ontem”. O primeiro a ser contratado é Colonna, que deverá atuar como assistente de Simei, e é quem narra história em primeira pessoa. Enquanto assistente de direção,  terá como tarefa revisar todos os artigos dos colegas, e, ao mesmo tempo, ficará incumbido de escrever o livro de memórias de Simei.  
Colonna, 50 anos, descreve a si mesmo como um grande perdedor. Nunca conseguiu terminar o curso de jornalismo e se viu, ao longo da vida, envolvido em atividades que, embora tenham lhe dado muito conhecimento e erudição, não foram suficientes para conceder-lhe a mínima notoriedade no meio jornalístico.  Escreveu somente em alguns periódicos locais, “coisas como crítica teatral para espetáculos de província e companhias itinerantes”. Trabalhou como “escritor-fantasma”, professor de alemão e durante muito tempo acalentou o sonho de escrever um livro que lhe trouxesse riqueza e glória. “Os perdedores, assim como os autodidatas, diz ele, sempre têm conhecimentos mais vastos que os vencedores, ..., o prazer da erudição é reservado aos perdedores. Além de Simei, Colonna é o único que conhece as verdadeiras intensões do Comendador e que sabe da possibilidade do jornal nunca vir a ser publicado.  Os demais contratados são Maia Fresia, Braggadocio, Cambria, Lucidi, Palatino e Constanza.
            Maia Fresia, 28 anos, é a única mulher do grupo. Por razões familiares não pôde concluir o curso de letras. Trabalhou durante cinco anos numa revista de fofocas onde escrevia sobre a vida particular, de preferência secreta ou fantasiosa, de celebridades e sobre o mundo dos espetáculos. Aceitou se juntar ao grupo porque imaginava que seria uma oportunidade para falar de assuntos mais sérios. Descreve-se como uma pessoa curiosa com faro detetivesco. Mas seu lugar no grupo a deixa imensamente frustrada, pois continua tendo que escrever fofocas sentimentais e se responsabilizar pela sessão de horóscopos. Braggadocio a considera uma autista e entre os dois prontamente se estabelece uma antipatia mútua. Por ser mulher, é constantemente desacreditada pelos colegas da redação, à excessão de Colonna que se envolve emocionalmente com ela,  colocando-se como seu defensor e protetor.  
            Romano Braggadocio, o paranoico do grupo, trabalhou anteriormente numa revista juntamente com Simei, e se diz especializado em revelações escandalosas. A experiência de Cambria se restringiu em correr atrás de notícias de acidentes, mortes, prisões e passava as noites em delegacias e prontos-socorros. Lucidi dizia ter trabalhado em publicações de que ninguém tinha ouvido falar e por isso era olhado com desconfiança pelo grupo. Todos achavam que ele era um espião ali dentro.  Palatino tinha uma vasta experiência em semanários de jogos e passatempos. E finalmente Constanza, que trabalhou como chefe de composição em alguns jornais, mas sua especialidade caiu em desuso à medida que os jornais foram crescendo e passaram a ter muitas páginas.
            Enquanto o jornal vai sendo discutido e preparado,
Braggadocio começa a trabalhar paralelamente numa história que, espera,  poderia até se transformar em um livro. Inicia uma investigação sobre acontecimentos importantes na história política da Itália desde o final da Segunda Guerra Mundial, mais especificamente desde o assassinato de Benito Mussolini e sua amante Clara Petacci. Imaginando incríveis teorias da conspiração, defende a tese de que Mussolini teria um sósia que foi morto por partisans em abril de 1945, enquanto o Duce se mantinha escondido entre os muros do Vaticano para, em seguida, fugir para a Argentina, onde estaria aguardando o melhor momento de retornar a seu país a fim de instalar um novo poder. A pesquisa de Braggadocio reconstitui cinquenta anos de história que envolve organizações clandestinas tais como a Gladio, a Stay-behind, a loja maçônica P2, os partidos políticos intalianos, o assassinato do papa João Paulo I, a CIA, a OTAN, o Pacto de Varsóvia, os terroristas vermelhos manobrados pelos serviços secretos, a máfia, etc, com o intuito de impedir que uma revolução comunista se espalhe pela Europa e de coibir um possível ataque soviético. Tudo parece um grande delírio de uma mente paranoica até que, um dia, Braggadocio é encontrado morto, assassinado, numa estreita e perigosa rua de Milão. Colonna que tinha pleno conhecimento das pesquisas do colega, fica extremamente assustado e teme por sua vida. Dentre os fatos reunidos por Braggadocio quais poderiam deixar alguém preocupado?, se pergunta. Com certeza o colega havia tocado em pessoas poderosas e perigosas, e ele, de alguma forma, seria considerado figura indesejável por saber demais. Ao mesmo tempo, o comendador resolve cancelar o empreendimento Amanhã, considerando tratar-se de um negócio perigoso. Colonna esconde-se em seu apartamento, mas suspeita que alguém tenha entrado ali enquanto ele dormia, pois encontra, pela manhã, o registro de água fechado e ele nem sabia onde ficava o tal registro. Assustado, procura Maia, com quem vinha mantendo um relacionamento amoroso, e refugia-se em sua casa.  
            Alguns dias mais tarde Maia e ele ficam transtornados ao assistirem a um documentário da BBC sobre a Operação Gladio. Gladio foi o nome dado a uma organização clandestina constituída pelos serviços de informação italianos e pela OTAN durante a guerra fria, para contrapor-se a uma eventual invasão da Itália pela União Soviética. O documentário parecia um filme com o roteiro do Braggadocio. Muitas das revelações “fantasiadas” do colega estavam ali. Mas passado o impacto do programa de TV, Maia tranquiliza Colonna, mostrando como o documentário vem livrá-lo de qualquer possibilidade de ser considerado um perigo.
Ao final é Maia quem se mostra mais coerente e ligada na realidade da questão: “Nada mais pode nos perturbar neste país, diz ela. Desvio dos serviços de informação? Perto dos Borgia é coisa de fazer rir. Sempre fomos um povo de punhais e venenos. Estamos vacinados, seja qual for a história nova que nos contem, vamos dizer que já ouvimos coisa pior, e que talvez essa e as outras sejam falsas. O único problema sério para o bom cidadão é não pagar impostos ... afinal é sempre a mesma comilança. E amém.” (p.204)
            E ironiza: “Tesouro, vamos procurar um país onde não haja segredos e tudo ocorra à luz do dia. Entre a América Central e a do Sul existe um monte. Nada escondido, todos sabem quem pertence ao cartel das drogas, quem dirige as organizações revolucionárias, você se senta no restaurante, passa um grupo de amigos e eles apresentam um sujeito como o chefão do contrabando de armas, todo bonito, barbeado e cheiroso, com aquele tipo de camisa branca engomada que se usa por fora das calças... São países sem mistérios, tudo corre à luz do dia, a polícia afirma ser corrupta por regulamento, governo e delinquência coincidem por ditame institucional, os bancos vivem de lavagem de dinheiro...” (p.205/6) Tudo volta ao normal, Colonna recupera a paz, a auto confiança ou pelo menos a “calma desconfiança” no mundo que o rodeia. “A vida é suportável, basta contentar-se. Amanhã (...) é outro dia.”
            Humberto Eco nos brinda ainda, com um elenco de jargões jornalísticos, tais como, “Há uma queda de braço entre duas forças; O governo anuncia um pacote de sacrifícios; O tempo urge;  Estamos com água até o pescoço; Estamos no olho do furacão;  Fazer omelete sem quebrar os ovos; Centro de gravidade do poder”, entre outros..
Lança também algumas frases de efeito tipo: “A questão é que os jornais não são feitos para divulgar, mas para encobrir as notícias. Não são as notícias que fazem o jornal, e sim o jornal que faz as notícias. Saber pôr juntas quatro notícias diferentes significa propor ao leitor uma quinta notícia. Atenção: fazer notícia é uma boa expressão, notícia quem faz somos nós, e é preciso fazer a notícia brotar das entrelinhas. É sempre melhor limitar-se a insinuar. Insinuar não significa dizer algo preciso, serve só para lançar uma sombra de suspeita. Não devemos criar complexos de inferioridade no público. Se o assunto é irrelevante ou preocupante demais, derrubamos a matéria. As pessoas de bem vão continuar votando nos canalhas porque não acreditarão na BBC ou porque estarão grudados em algo mais trash”. 
Com certeza este não é dos melhores livros de Humberto Eco, mas permite uma leitura divertida. Em sua crítica cínica à imprensa sensacionalista e ao Estado corrupto e ineficiente, o autor faz um retrato da situação sócio-política da Itália na qual assistimos a um empobrecimento moral da sociedade que parece se mostrar passiva diante dos escândalos de corrupção.
            Em uma entrevista à revista L’Expresso o autor afirma que sua intenção não foi escrever um tratado  de jornalismo, “mas contar uma história sobre os limites da informação, e sobre como funciona uma máquina de difamação” apoiada num veículo de comunicação. Para ele,  1992 constitui um marco na história política italiana. Foi quando nasceu a operação “Mãos Limpas” que trouxe esperança aos italianos; parecia que tudo mudaria e haveria um combate geral à corrupção. Com a ascensão de Berlusconi ao poder as coisas ocorreram exatamente ao contrário.
            A meu ver, Número Zero coloca em evidência, sobretudo, a questão da corrupção no mundo contemporâneo. Para além da manipulação da opinião publica feita pelos meios de comunicação em geral, nos deparamos com a prática da corrupção no cotidiano dos cidadãos, seja na Itália, na Rússia, no Brasil ou em qualquer outro lugar deste vasto mundo.
            A corrupção sempre foi endêmica entre nós, mas nos últimos anos ela foi oficialmente institucionalizada. Corromper, diferentemente de subornar, significa quebrar em pedaços, desnaturar, tornar podre. O termo vem do latim corruptus, que significa quebrado em pedaços. Enquanto fenômeno social, a corrupção não diz respeito a uma somatória de manifestações individuais, mas tem sua lógica própria, inconsciente. Na prática, pode ser definida como a utilização do poder ou da autoridade para conseguir obter vantagens pessoais e fazer uso do dinheiro público para  interesses pessoais, de um integrante da família, ou amigo, etc. Uma vez institucionalizada, a corrupção torna natural um modo de vida no qual os valores ligados à democracia são desqualificados e se tornam marginais ao sistema. Para tanto, os detentores do poder lançam mão do que em psicanálise se denomina de discurso cínico.
            Cínico é um sujeito sem escrúpulos, sem vergonha, descarado, impudico, obsceno, hipócrita, oportunista atrevido no modo de ser e viver ou atrevido quando justifica “cinicamente” um ato imoral. O cinismo pode ser expresso em palavras e atos que indicam falta de vergonha, atos e falas que denotam desprezo por tudo o que é moral-ético ou que demonstra aversão pelas convenções sociais. O efeito do cinismo é sempre o constrangimento. O cínico é aquele que aposta sempre numa lógica do pior.
            Zizek (1992) nos fala de uma produção de uma “razão cínica” em nossas época. Para ele, o cinismo contemporâneo, em primeiro lugar, não é uma postura de imoralidade aberta e franca, mas é a justificativa pública de um ato imoral como se fosse moral. Em segundo lugar, o cinismo vive sempre em discordância com tudo e com todos, e toda sua “sabedoria” consiste em legitimar a distância entre o pensar e o agir. Em outras palavras, o cinismo erigido em forma de razão cínica usa a transgressão alçada como se fosse um princípio ético: “eles sabem perfeitamente o que fazem,  no entanto o fazem, justificando seu ato imoral como sendo moral”. Neste sentido, o livro de Humberto Eco é exemplar.
Recomendo a leitura.

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