terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O TÚNEL


de Ernesto Sábato 
Comentários de Priscila Fernandes Costa

Nessa história de paixão mortífera, temos o personagem,  Juan Pablo Castel completamente siderado por Maria Iribarne, uma bela jovem que ele encontra casualmente numa exposição de pinturas.  Já no início do livro ficamos sabendo que Castel mata Maria, o grande amor de sua vida e a única pessoa que poderia entendê-lo, segundo ele. À medida que acompanhamos o desenrolar da relação entre os dois, mata-la parece ser a única saída para ele. 

Castel, um artista plástico de renome em seu país, tem personalidade esquizoide, é vaidoso, narcisista, intolerante com o seu semelhante, e em geral olha as pessoas com antipatia e até mesmo com nojo; procura levar uma vida metódica e sem sobressaltos porque as situações repentinas o fazem perder todo o tino, à força de atabalhoamento e timidez. Detesta reuniões, grupos e conglomerados de pessoas que, segundo ele, eram compostos por indivíduos que tinham em comum uma série de atributos grotescos: a repetição do tipo, o jargão, a vaidade de se julgarem superiores ao resto, etc.

A vergonha era um sentimento frequente nele, não somente em relação às suas próprias atitudes, reais ou imaginadas, mas também em relação às atitudes das pessoas em sua volta: sentia vergonha por si mesmo e pelos outros. Crítico ferrenho de humanidade e da sociedade, e algumas poucas vezes de si próprio, mantinha-se em constante vigilância diante do mundo. Vivia tomado pelos sentimentos de irritação e de raiva de tudo e de todos.

O inesperado encontro com Maria  teve um efeito avassalador no artista, que, não consegue parar de pensar nela e,  a partir daí, desenvolve uma desejo obsessivo de reencontrá-la. Tudo começa quando Castel vê Maria diante de um quadro seu, de nome Maternidade, exposto num salão de arte. Maria detém seu olhar num detalhe que, em geral, passava despercebido do público: uma pequena janela no alto da tela, à esquerda, na qual havia a cena de uma praia solitária e uma mulher fitando o mar. A cena sugeria uma solidão ansiosa e absoluta, na opinião do pintor. Ver Maria olhando fixamente para aquela pequena janela, deu a Castel a certeza de que aquela desconhecida era a única pessoa no mundo capaz de compreendê-lo.

A partir daí, durante meses, Castel,  se vê tomado de ansiedade, angústia e tristeza. Impõe para si a missão de reencontra-la custe o que custar, e quando finalmente vem a conhecê-la se vê cativo de uma paixão opressiva e devastadora. Inicia com ela um romance permeado de muito ciúme, dor e sofrimento. O ciúme patológico (delirante) de Castel se situa na linha divisória entre realidade, imaginação, fantasia, crença e certeza. Já não lhe é possível separar o real do imaginário. Tomado pelas ideias de ciúme, ele se vê compelido a verificar compulsoriamente a veracidade de suas idéias, mantendo uma vigilância constante sobre sua amada. Embora em alguns momentos reconheça o ridículo de seus pensamentos, isto não é suficiente para amenizar o mal-estar da dúvida e novamente volta a buscar evidências e confissões que confirmem suas suspeitas. Tortura a amada com seus interrogatórios onde nada que ela diga é suficiente para apaziguá-lo,  e ele sempre volta à massacrante inquisição.

O ciúme patológico compreende vários sentimentos perturbadores, desproporcionais e absurdos, os quais determinam comportamentos inaceitáveis, violentos ou bizarros. Esses sentimentos envolvem um medo incontrolável de perder a pessoa amada para um rival (real ou imaginário), bem como desconfiança excessiva e infundada, gerando significativo prejuízo no relacionamento amoroso.

Para Freud o ciúme delirante, característicos dos quadros de paranoia, tem como origem uma homossexualidade negada. Impossibilitado de reconhecer seu desejo por alguém do mesmo sexo, o sujeito projeta em sua amada o amor que recusa reconhecer em si mesmo: “Eu não o amo, é ela quem o ama”. O desenvolvimento do delírio, a partir desse deslocamento do desejo, é uma tentativa de reconstruir seu mundo subjetivo e de manter sua integridade estrutural. O ciúme, então, aparece como uma defesa contra um impulso homossexual ameaçador, rejeitado pelo sujeito, a ponto de Freud afirmar que o delírio é uma tentativa de cura que o sujeito tem à sua disposição.
A paranoia mostra o amor como uma relação de eu a eu, na tentativa de formar “um”. O objeto verdadeiro do amor paranoico porta os traços do próprio eu. No ciúme delirante de Castel, Maria, seu duplo, carrega os traços ignorados de seu próprio eu, numa posição idealizada. A paixão por Maria está calcada em uma identificação primeira, especular, característica dos primeiros anos de infância do sujeito. Na especularidade, o outro é o eu. Ela, ocupando o lugar de alter-ego de Castel, coloca em jogo a imagem ideal que ele tem de si mesmo.

O apaixonado ciumento não é mais o mesmo: ele é submetido a uma espécie de loucura que o exclui do senso comum. Mantém-se prisioneiro do desvio de sentidos que ele cria, do túnel no qual entra e que coloca seu ser à prova.

Preso numa lógica especular onde fica impossível afirmar sua própria identidade, e confundido com a imagem que o forma, só resta ao sujeito à passagem ao ato homicida (poucas vezes suicida). Ao matar Maria, Castel intervém com uma agressão contra a imagem do próprio corpo, com uma destruição da imagem do eu, que é uma imagem composta em sua relação com o outro e que o confronta com o insuportável da angústia diante da incompletude.

Do lado de Maria temos um excelente exemplo do que caracteriza a posição feminina. Para Freud, uma das formas que a mulher tem de expressar seu ser é pela via do masoquismo, que vem evidenciar um esforço de gozo na sua contingência da dar o que não tem. Dar o que não tem, segundo Lacan, é o que define o amor. É, então, por amor que a mulher se oferece, para o homem, como objeto do desejo. E reconhecer-se como objeto do desejo é sempre masoquista. A ênfase aqui é dada na palavra objeto: masoquista, então, é qualquer um que se encarne como objeto na cena fantasmática e no contato com o seu parceiro.  Então, se o masoquista goza ou não com os seus sofrimentos é menos relevante do que localizar a posição que ele ocupa na relação com o outro.

Em alguns casos, essa constituição substitui uma forma de gozo por outra: “ser espancada/maltratada” substitui “ser amada” no sentido genital adulto. Então a alienação torna-se demasiado doce e a liberdade demasiado amarga, porque está muito próxima da solidão e da loucura.
O psiquismo feminino se constitui, portanto, sob a ameaça da perda de amor. O gozo que a mulher procura é o de saber que é amada por um homem que a nomeia enquanto mulher, e que lhe conduz ao lugar do “outro sexo”, o feminino. O gozo que a mulher procura é o de saber que é amada por aquilo que ela não é.
No desamparo de seu ser, Maria encontra na violência apaixonada de Castel uma expressão, às avessas, daquilo que deseja de um homem, a saber, uma mediação fálica que lhe traga alguma significação como sujeito feminino, que lhe diga o que é ser mulher.

Ao mesmo tempo, é no campo do amor que a violência se manifesta de forma mais cruel. Uma relação de amor, muitas vezes, esconde uma relação de ódio. Na ausência do amor existe, então, a devastação. O homem-devastação é aquele que ilude com o engodo de ser tudo aquilo que ela precisa (a janelinha no quadro – “Eu me recordo dela constantemente”) para existir como objeto causa do desejo dele, mesmo que seja um objeto rebotalho. Para algumas  mulheres, então, a violência assume um significado de amor,  e  disso decorre a maior dificuldade de se trabalhar com mulheres vítimas de violência. Segundo Lacan, a devastação é uma experiência subjetiva que aparece, primordialmente, na relação entre a mãe e a filha e, posteriormente, na relação amorosa da mulher com o homem e no modo que ela lida com seu próprio corpo.
Recomendo a leitura.
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