segunda-feira, 21 de outubro de 2013

MUITO ALÉM DO CORPO

de Luzilá Gonçalves







Por Guido Azevedo

Primeiramente deixem-nos agradecer a presença de todos.
Ficamos honrados e felizes com vocês aqui no Recife que tanto amamos.
Que essa estada seja plena de felicidade e paz.

Quero externar o orgulho de ter um livro de Luzilá sendo lido e discutido por vocês. 
Acho que Pernambuco tem valores literários incontestes e apena alguns ganham projeção nacional, outros labutam em terreno árido e regional e passam muito tempo para serem descobertos e saírem de uma espécie de gueto que as circunstâncias nacionais impõem, embora não seja o caso desta amiga querida que tem seu reconhecimento nacional, em termos de prêmios, cadeira na academias e currículo invejável.
Outra alegria maior com a escolha de Luzilá é de caráter pessoal, Já não aguenta a temática de seca e de miséria como fundamento de apresentação da região.
Luzilá não centraliza sua obra nessa velha e cansada saga nordestina, que parece nos aprisionar como realidade e temática obrigatória, embora sejamos tão rica em outras coisas.
Por outro lado, sua temática predileta, quase ideia fixa, é a luta feminina, a realização do gênero no mundo contemporâneo e nos idos do século XIX.
Este é o tema que lhe é caro é o que mais aproxima vocês amigas dela.
Até parecem missão de vida: A valorização da mulher, a descrição das suas lutas pela liberdade de ser e de expressar sentimentos, de ocupar seu lugar no mundo; Biografia das heroínas nacionais, reconhecidas ou não, mulheres que construíram a ferro e fogo sua saga para a liberdade, nem sempre conquistada em vida.
Assim, Luzilá esta mulher do século XXI, tem mesmo a cabeça no século XIX, o século das grandes definições da humanidade. Doutora em literatura feminina do século XIX, pela Universidade de Paris VII.
Ativa e soberana faz da vida uma experiência única, com um desembaraço, uma delicadeza, uma entrega para a arte e para as causas da justiça que me deixam apaixonado.
Claro, alguma hora isso seria revelado, vez que se trata da minha professora de francês, uma típica francesa como eu sempre a imaginei.
Em sua casa, até o jardineiro fala francês. Outra de suas paixões, como a literatura e a sala de aula. 


Finalmente, chegando ao tema da análise pessoal sobre o livro – Muito Além do Corpo - 

O livro tem como temática: o amor.
Como premissa: Será o amor pelo outro, capaz de dominar o próprio ser e dispensar o ser amado, por carregar em si todas as suas nuances?
Desenvolvimento: A autora tem uma relação profunda com uma pessoa amada...nome? para que? Basta Ele, Eu, Nós .
Ele tem um comportamento muito estranho, desaparece por uns tempos e não gosta de dizer o que andava fazendo. (Coisa típica dos tempos de chumbo, quando não se falava para não comprometer a amada) 
Em um São João, tendo prometido que passariam juntos, Ela recebe uma telefonema onde sabe que ele não vem, não pode ou não quer vir. Sentindo-se só, vai ao cinema, que aparentemente tinha apenas mais um expectador o que acaba aproximando-os. 
Ao se conhecerem notaram uma grande identidade de sentimentos e afinidades, além da coincidência comum de rejeição. Naturalmente acabam se relacionando um daí nascendo um amor, malgrado a diferença de idade entre eles. No entanto, ela se renova. Até perceber que a entrega do amado tinha a ver com sua luta para sobreviver a doença terminal e viver intensamente este período que se demonstra breve.
Em estado de desespero com a perda recebe o abraço do seu amado que vem para consolá-la e retoma o seu lugar na história pessoal dela.

Para o romance como um todo, tenho duas palavras que sintetizaram para mim ao concluir sua leitura: Delicadeza e Sensibilidade.
Delicadeza pela forma como foi tratada a história de amor. Sensibilidade pela descrição de sentimentos e emoções como se fora os cenários de um romance de exterior.
À moda Proust, Luzilá desenvolve seu romance com sentimentos como cenas. São eles que articulam a trama do romance, em particularmente os sentimentos da narradora. Ela não precisou de ambientação de época, de ambiente externo, de tempo ou lugar.
Não precisou caracterização de personagens, figuras, perfis e personalidades. Suas características foram pinceladas através de fragmentos indicativos e necessários à própria trama.
O livro é leve, sutil como um sentimento feminino. (não sei da onde tirei isso.) Mas, entrar nessa emoção, para nós homens, requer uma sensibilidade a mais, abertura para o diferente. 
Minha sensação é que só conseguia ler e sentir o livro, em estado de graça, ou seja, quando conseguia me concentra na leitura, sem qualquer preocupação exterior.
Mais uma vez no caso pessoal esta semelhança emocional com Proust, autor que jamais consegui ler sem estar ligado na obra e nos sentimentos dos personagens.
Mais que uma leitura ligeira e acrítica  este romance exige uma reflexão a cada folha.
Lia parava e pensava na singeleza de cada fato.
Como fazer um livro de amor, sem melodrama, sem paixão desenfreada, sem palavras soltas, com um enredo tão amarrado e tão introspectivo?
Como contar o velho triângulo amoroso com tanta delicadeza que mais parece uma necessidade?
Confesso que anos atrás. Quando tentei ler este livro, logo o abandonei por achar que era delírio de mulher. Acho que na época não estava aberto para um roteiro sem aventura, pouquíssimos diálogos e ainda menos personagens. Na verdade não estava interessado na temática e não conseguia me concentrar, por preconceito ou imaturidade.
No contexto, dois momentos interessantes, mas que destoam do roteiro e da temática e parecem como crônicas apostas ao texto. O primeiro conta o relacionamento dela criança com um bodinho de estimação e sua percepção antecipada da morte como separação do bem amado. 
O segundo fala de uma travessura com o sino da capela do Engenho que ela açodadamente toca e acaba por criar uma grande confusão como se fora o anúncio da morte do coronel do lugar e que acaba sendo quase a sua ressureição ou retorno ao estado de saúde, que tem como desfecho a sua percepção de que pode ser capaz de milagres.

Sabe aquela sensação que nos assalta algumas vezes: “eu poderia ter escrito isso, porque é exatamente o que penso.” Muitas vezes, tive essa sensação ao ler esse livro. 
Naquelas reflexões que dizem respeito ao ato de escrever. Naquelas ânsias de compreender o mundo, de idealizá-lo e, nunca se decepcionar com a realidade, apenas adiar a expectativa.
A crenças inabalável no outro. A certeza de que o amor sempre triunfa. De que não há realização em si mesmo, mas tão somente no outro e de preferencia no ente amado.
O amor doido que acha que se basta. Que tenta dispensar o amor do outro, que todo adolescente pensa encher o mundo com o seu próprio amor, que no fundo é amor próprio.
A própria reflexão sobre o mistério de escrever, o espanto com a construção das palavras criando vidas e tronando-se objeto que adquiriam independência, vida própria.  
Como escrever livros que não sejam de amor? Que não falem de amor, que não busquem o amor, no mínimo de quem o lerá?
Eu Recomendo.
    Muito Além do Corpo (1988)
    A Anti-Poesia de Alberto Caeiro (1990)
    Os Rios Turvos (1993)
    A Garça Malferida (1995)
    Em Busca de Thargélia (1996)
    Humana, Demasiado Humana (2000)
    Voltar a Palermo (2002)
    No Tempo Frágil das Horas (2004)

Como autora e co-autora, publicou mais de 30 livros, entre contos, romances, ensaios, biografias. Em 2000, lançou um ensaio - Humana, Demasiado Humana - sobre a psicanalista Lou Andréas - Salomé, identificada como vivendo " à frente do próprio tempo". Já no seu livro Voltar a Palermo, descreve Buenos Aires, à medida que apresenta uma intensa história de amor, entre uma brasileira e um argentino, nas épocas de repressão política.
Na área do Jornalismo publicou Um Discurso Possível, ensaio sobre a Imprensa Feminina em Pernambuco,1991-1997,apresentando as mulheres pernambucanas que atuaram como jornalistas, no século XIX. A respeito da poesia feminina, Luzilá escreveu Em Busca de Thargelia, antologia em 2 volumes publicada em 1996.
Em 2002, publicou o livro Presença Feminina, por solicitação da Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco, onde ela faz o perfil de nove deputadas estaduais. É detentora de vários prêmios.
Seus romances Muito Além do Corpo, A Garça Mal Ferida e Os Rios Turvos receberam respectivamente os Prêmios Cidade do Recife, O Nestlé e o Prêmio de Biografia da Academia Brasileira de Letras.

GUIDO AZEVEDO

Um comentário:

  1. Depois de ler “Muito Além do Corpo” e preparar algumas anotações, assisti uma entrevista de Luzilá no You Tube para o blog “Estudos Lusófonos.” Luzilá dizia que por ter facilidade para escrever, o primeiro texto sai “como todo mundo, não é você ainda.” Para ela, “você é algo que vem pensado, trabalhado."

    Foi exatamente o sentimento que me veio ao ler esse livro econômico em páginas mas denso em emoções: o de que foi escrito de uma sentada. Num roldão. Burilado, depois, mas escrito de uma vez.

    O formato lembra o de um diário. Um diário transbordante de sentimentos, que vêm numa avalanche. A impressão que fica é de que nomes, descrições físicas, são dispensáveis- o que importa não é a forma, mas o conteúdo dessas pessoas/personagens. A alma, o sentir.

    Numa entrevista concedida a Raimundo de Moraes, Luzilá diz que existe uma literatura de mulheres, sim: “A gente escreve para se dizer, para se conhecer, para se dar a conhecer, para repartir uma visão de mundo, para se construir enquanto sujeito, um eu que quer se construir. E esse sujeito só pode ser um sujeito mulher, não há como não ser, quando se pensa que escrever literatura é um momento de verdade.” Concordo.

    Um romance como Muito Além do Corpo só poderia ter sido escrito por uma mulher.
    Transborda mulher, nele. Recomendo.

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