terça-feira, 10 de dezembro de 2013

FELICIDADE DEMAIS

de Alice Munro 

Editora: Companhia das Letras- 2010

Too much happiness: stories
Tradução de Alexandre Barbosa de Souza

COMENTÁRIOS por Maria Virginia de Vasconcellos


Embora este livro não pertença à minha categoria predileta, ou seja, não se trata de romance histórico, nem mesmo romance, são dez contos completos que, de fato, valem por dez romances.
Porque completos? Simplesmente eles são lógicos, têm início, meio e um fim normal, geralmente plausível num contexto de país desenvolvido. Cada um deles daria suficiente motivação para conversas em grupo.

Fortes estórias, ou memórias ou o que quer que seja, são de excelente prazer na leitura.
A garra da narrativa de Alice Munro nos coloca em suspense, à espera dos acontecimentos, alegrias e infortúnios, que a vida e a morte podem trazer.

Carrega muita informação sobre a vida contemporânea, sem, entretanto, utilizar mecanismos de tecnologia. Por meio de enredos e estórias complexas sobre o ser humano, descortinam-se os personagens, muitos deles femininos. 
A autora tem a grande habilidade de desenhar, com rapidez e concisão, os traços precisos das personalidades que cria, sem perder a profundidade e o vigor. (“Faz com que mereça a frequente comparação com o russo Anton Tchekov[1])

Sempre dá vontade de re-iniciar a leitura do conto (com exceção do “Madeira”, onde há uma descrição detalhadas e demorada de árvores, lenhas e matas).

No primeiro relato, Dimensões, Doree volta à prisão para visitar o marido que cometera o mais hediondo dos crimes. É surpreendente não no fato em si, mas no que diz respeito a sentimentos femininos. Impressiona e fascina.

Em Ficção, vemos a delicadeza da transformação de um casamento, o correr da vida, novos enlaces, o fortuito encontro da Joyce, a professora de música, com a ex-aluna e um conto dentro do conto. 
“o que ela tem a ver com isso?” disse Joyce.
E o marido responde: “É que ela se sente ameaçada pela bebida. Ela ainda está muito frágil. É uma coisa que não dá pra a gente entender”.
 Ameaçada. Bebida. Frágil. Que palavras eram essas que meu marido estava usando? Eu devia ter percebido. Ele estava ficando apaixonado..... (pag. 49).
Bastam dois parágrafos para explicar “o golpe fatal que aleija um homem, a brincadeira maldita que transforma olhos claros em pedras cegas”.

Na estória Wenlock Edge uma universitária conta a experiência do relacionamento com a Nina que aparece para morar com ela no quarto alugado. Vai além do esperado a descrição da aventura perversa e das personalidades sórdidas que povoam a existência comum e se utilizam da fragilidade humana. “Pessoas - Em busca de proezas que elas não sabiam trazer dentro de si”. (pag. 108)

Buracos-profundos deixa o leitor perplexo com consequências/impactos que acidentes podem provocar; ou não foi o acidente do Buraco-profundo que trouxe a alteração na vida de um filho? Novamente um casal, agora com filhos, novamente a normalidade transformada drasticamente. Acidentes da vida. Impressionante caracterização dos personagens.

No quinto conto deste volume, Radicais Livres, há relato de depressão, morte, mas o roteiro se transforma numa tensão quase policialesca com a invasão de um inesperado personagem.

Aqui vale um parêntesis para o comentário da Revista Veja – Jerônimo Teixeira – que diz que a autora “exagera no recurso a encontros casuais como motor da ação”, apesar dele reconhecer que ela sabe conduzir a narrativa até momentos tensos.
O fato é que, embora este recurso a encontros casuais seja realmente utilizado de várias formas, discordo inteiramente da conclusão da resenha do Teixeira quando afirma que o mais recente livro da Alice Munro, Vida querida, que parece ter o mesmo estilo deste, “é ficção para ser adotada em cursos de “Estudos Femininos” nas universidades americanas”. Discordo do Teixeira, repito.  A temática não é apenas feminina, mas sim universal.Vale a pena conferir mais este livro.

O sexto conto, Rosto, é um relato marcante sobre relação pais x filho, filho este que tem um defeito físico, uma estranha mancha no rosto que “Parece um pedaço de fígado”. Chega-se ao lirismo ao final, com poesias e sentimentos ternos.

Algumas mulheres, apresenta uma competição sutil e fortíssima entre mulheres, e a consequente solidariedade de uma terceira, digamos, partidária. Tudo na visão de uma menina de 13 anos...

E o Brincadeira de criança? Esta estória, achei até previsível de certa forma, mas  de extrema crueldade. Que crueza na explicitação do mal que pode existir em cada um. Vale uma reflexão, mas não exige julgamentos dos personagens. Será que eles se auto-punem? Qual o grau de consciência de uma criança? É uma confissão? Duas amigas se re-encontram, estando uma no leito de morte.

Mas, o ponto culminante é a estória que dá nome ao livro, ou seja, Felicidade demais.
Aqui sim, há períodos históricos bem delineados: uma russa, brilhante matemática e literata, um ou dois russos exilados, pela Europa, na última década do século XIX.
É a recriação de parte da vida de Sophia Kovalevsky, uma das primeiras mulheres a se tornar professora universitária de matemática, na Suécia. “Ela se consagrou na Alemanha, atuou como jornalista em Petersburgo... e travou contato com grandes personalidades da época”. (contracapa)
Vale a pena mergulhar nesta época com suas contradições e mudanças comportamentais fortes, e quando “feminismo não era nem uma palavra que as pessoas usavam”).

De fato, “tudo podia ter acontecido antes da expulsão de Adão e Eva dos jardins do paraíso”. (pag. 289). E não se deve “provocar o destino a enviar outro golpe”. (pag. 319)

Afinal:
Quando um homem sai de um quarto, ele deixa tudo pra trás
E “quando uma mulher vai embora, ela leva consigo tudo o que aconteceu naquele quarto”.

 Recomendo o livro sem restrições e com enorme entusiasmo.



[1] REVISTA Veja – 11 de dezembro, ALÍVIOS PROGRESSISTAS, Jerônimo Teixeira

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