Editora: Companhia das Letras- 2010
Too much happiness: stories
Tradução de Alexandre
Barbosa de Souza
COMENTÁRIOS por Maria Virginia de Vasconcellos
Embora este livro não pertença à minha categoria predileta,
ou seja, não se trata de romance histórico, nem mesmo romance, são dez contos completos
que, de fato, valem por dez romances.
Porque completos? Simplesmente eles são lógicos, têm início,
meio e um fim normal, geralmente plausível num contexto de país desenvolvido. Cada
um deles daria suficiente motivação para conversas em grupo.
Fortes estórias, ou memórias ou o que quer que seja, são de
excelente prazer na leitura.
A garra da narrativa de Alice Munro nos coloca em suspense, à
espera dos acontecimentos, alegrias e infortúnios, que a vida e a morte podem
trazer.
Carrega muita informação sobre a vida contemporânea, sem, entretanto,
utilizar mecanismos de tecnologia. Por meio de enredos e estórias complexas
sobre o ser humano, descortinam-se os personagens, muitos deles femininos.
A autora tem a grande habilidade de desenhar, com rapidez e
concisão, os traços precisos das personalidades que cria, sem perder a
profundidade e o vigor. (“Faz com que
mereça a frequente comparação com o russo Anton Tchekov”[1])
Sempre dá vontade de re-iniciar a leitura do conto (com
exceção do “Madeira”, onde há uma
descrição detalhadas e demorada de árvores, lenhas e matas).
No primeiro relato, Dimensões,
Doree volta à prisão para visitar o marido que cometera o mais hediondo dos
crimes. É surpreendente não no fato em si, mas no que diz respeito a
sentimentos femininos. Impressiona e fascina.
Em Ficção, vemos a
delicadeza da transformação de um casamento, o correr da vida, novos enlaces, o
fortuito encontro da Joyce, a professora de música, com a ex-aluna e um conto
dentro do conto.
“o que ela tem a ver
com isso?” disse Joyce.
E o marido responde: “É
que ela se sente ameaçada pela bebida. Ela ainda está muito frágil. É uma coisa
que não dá pra a gente entender”.
Ameaçada. Bebida. Frágil. Que palavras eram
essas que meu marido estava usando? Eu devia ter percebido. Ele estava ficando
apaixonado..... (pag. 49).
Bastam dois parágrafos para explicar “o golpe fatal que aleija um homem, a brincadeira maldita que transforma
olhos claros em pedras cegas”.
Na estória Wenlock
Edge uma universitária conta a experiência do relacionamento com a Nina que
aparece para morar com ela no quarto alugado. Vai além do esperado a descrição
da aventura perversa e das personalidades sórdidas que povoam a existência
comum e se utilizam da fragilidade humana. “Pessoas - Em busca de proezas que elas não sabiam trazer dentro de si”. (pag.
108)
Buracos-profundos
deixa o leitor perplexo com consequências/impactos que acidentes podem
provocar; ou não foi o acidente do Buraco-profundo que trouxe a alteração na
vida de um filho? Novamente um casal, agora com filhos, novamente a normalidade
transformada drasticamente. Acidentes da vida. Impressionante caracterização
dos personagens.
No quinto conto deste volume, Radicais Livres, há relato de depressão, morte, mas o roteiro se
transforma numa tensão quase policialesca com a invasão de um inesperado
personagem.
Aqui vale um parêntesis para o comentário da Revista Veja –
Jerônimo Teixeira – que diz que a autora “exagera
no recurso a encontros casuais como motor da ação”, apesar dele reconhecer
que ela sabe conduzir a narrativa até momentos tensos.
O fato é que, embora este recurso a encontros casuais seja
realmente utilizado de várias formas, discordo inteiramente da conclusão da
resenha do Teixeira quando afirma que o mais recente livro da Alice Munro, Vida querida, que parece ter o mesmo
estilo deste, “é ficção para ser adotada
em cursos de “Estudos Femininos” nas universidades americanas”. Discordo do
Teixeira, repito. A temática não é
apenas feminina, mas sim universal.Vale a pena conferir mais este livro.
O sexto conto, Rosto,
é um relato marcante sobre relação pais x filho, filho este que tem um defeito
físico, uma estranha mancha no rosto que “Parece
um pedaço de fígado”. Chega-se ao lirismo ao final, com poesias e
sentimentos ternos.
Algumas mulheres, apresenta
uma competição sutil e fortíssima entre mulheres, e a consequente solidariedade
de uma terceira, digamos, partidária. Tudo na visão de uma menina de 13 anos...
E o Brincadeira de
criança? Esta estória, achei até previsível de certa forma, mas de extrema crueldade. Que crueza na
explicitação do mal que pode existir em cada um. Vale uma reflexão, mas não
exige julgamentos dos personagens. Será que eles se auto-punem? Qual o grau de
consciência de uma criança? É uma confissão? Duas amigas se re-encontram, estando
uma no leito de morte.
Mas, o ponto culminante é a estória que dá nome ao livro, ou
seja, Felicidade demais.
Aqui sim, há períodos históricos bem delineados: uma russa,
brilhante matemática e literata, um ou dois russos exilados, pela Europa, na
última década do século XIX.
É a recriação de parte da vida de Sophia Kovalevsky, uma das
primeiras mulheres a se tornar professora universitária de matemática, na
Suécia. “Ela se consagrou na Alemanha,
atuou como jornalista em Petersburgo... e travou contato com grandes
personalidades da época”. (contracapa)
Vale a pena mergulhar nesta época com suas contradições e
mudanças comportamentais fortes, e quando “feminismo
não era nem uma palavra que as pessoas usavam”).
De fato, “tudo podia
ter acontecido antes da expulsão de Adão e Eva dos jardins do paraíso”.
(pag. 289). E não se deve “provocar o
destino a enviar outro golpe”. (pag. 319)
Afinal:
“Quando um homem sai de um quarto, ele deixa tudo pra trás”
E “quando uma mulher vai embora, ela leva
consigo tudo o que aconteceu naquele quarto”.
Recomendo o livro sem restrições e com
enorme entusiasmo.
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