Por Claudine Duarte
“
É um erro, um ato insano de violência, concentrarmo-nos aqui e agora na
convicção de estarmos captando aquilo que é essencial. O que interessa seria
conseguirmos nos mover, seguros, tranquilos, com humor adequado e a melancolia
adequada, na ampla paisagem interior estendida no tempo e no espaço que somos
nós.
Por que temos pena de pessoas que não podem viajar? Porque elas, como não
podem se expandir exteriormente, também não conseguem se ampliar interiormente,
não podem se multiplicar e, assim, não têm a possibilidade de empreender amplas
excursões para dentro de si mesmas e descobrir quem ou o que de outro poderiam
ter sido.”
Página
253, do livro do Prado em Trem Noturno para Lisboa
A vida pede `temas´. Todos
os (sobre)viventes necessitam e cultivam temas que garantem cadência, ritmo,
conforto e lastro às suas vidas.
Alguns mudam de temas, de
casas, de cidades, de companheiros, de amigos, de livros, de praças, de
restaurantes... Outros precisam de rostos e lugares conhecidos para, como num
num espelho, se reconhecerem e se acalmarem, num sofá ou debaixo de uma
marquise amiga enquanto uma chuva passa. Enquanto uns dias passam.
Às vezes, se muda de ares e
lugares, apenas em busca de si mesmo. Outros fazem reformas em suas casas,
trocam as cortinas, pintam de outras cores as paredes e até mesmo trocam as
poltronas de norte para sul. O tapete virado para Meca não faz mais sentido e
talvez fique melhor com umas malas em cima dele lembrando que é preciso
viajar...
E assim, o livro Trem Noturno para Lisboa constrói uma busca para o Professor Raimundus Gregorius.
Aqui uma pausa para o
significado dos nomes escolhidos por Pascal Mercier para o personagem principal
de seu livro:
Raimundo
é um prenome derivado do germânico Raginmund e latinizado Ragimundus e
Raimundus composto de ragin- (“conselho”) e –mund (“proteção”). Ou seja,
protetor ou sábio protetor, aquele que dará conselho em prol da segurança dos
demais.
Gregório
significa cuidadoso, vigilante e indica uma pessoa prudente, que evita ao
máximo os conflitos e não emite uma opinião sem antes refletir sobre o assunto.
Graças a essa atitude cautelosa, conquista o respeito de todos.
Assim, compreendemos a busca cuidadosa e prudente que Gregorius escolheu. Primeiro, quase um latim moderno, escuta uma língua que o atrai, depois de sabiamente, salvar a moça que - em português - queria dar fim à própria vida. Como cenário, uma ponte. Metáfora para uma transformação, uma passagem. Em segundo lugar, um escritor português e seu livro - também em português. Está colocado um "tema" para se distrair do tédio de seus dias quase sempre iguais: "às quinze para as oito atravessa a (...)".
E aí, "toma o trem noturno para Lisboa"... para conhecer como viveu e morreu o autor do livro, Prado. Encontra pessoas, visita lugares, conhece fatos e a própria história de Portugal, sem esquecer de sua Suiça natal, de seus alunos e de sua cadeira de Línguas Clássicas na escola de Berna. Partir sem partir.
Mercier, na verdade o suíço Peter Bieri, ensina filosofia na Suiça e talvez Mundus Gregorius seja um alter ego. Ele constrói o livro em 4 partes. Na primeira parte, com o episódio da ponte como ponto de ruptura ou de ligação com Portugal, trata a partida do professor: trem para Lisboa
Na
segunda parte, Gregorius descobre a vida e a morte de Amadeu Prado e na
terceira e maior parte do livro, tenta compreender as razões, atitudes e até as
emoções do médico e escritor. Na última, breve e resumida parte, a comprovação
de que não deixou Berna: para ela retorna e conclui sua transformação interior
depois desta volta pelo tema composto por Prado, Portugal e o Português.
Poderia ser uma Odisséia, mas Mundus não é o herói.
“(...)
E mais louco. Quando o tempo de uma vida se torna raro, as regras passam a não
valer mais. Então parece que você perdeu o rumo e está maduro para o manicômio.
Mas no fundo é precisamente o contrário: para o manicômio deveriam ir aquelas
pessoas que não querem se dar conta de que o tempo ficou raro. Aqueles que continuam como se nada
tivesse acontecido. O senhor entende?”
A
leitura, às vezes, nos leva gentilmente a caminhar por Lisboa nos dias de hoje
e pelos relatos dos amigos de Prado, revistamos a Lisboa de Salazar com os
conflitos humanos que brotam no correr da vida e das relações. Amadeu Prado ganha o desprezo de seus
pacientes por ter salvado a vida de um
oficial da polícia salazarista e, na tentativa de se redimir, torna-se um
membro importante da resistência.
Vale
destacar a profusão dos textos escritos por Prado – que tornam a leitura morosa
e cansativa – recheados de questões filosóficas pontuando seu ateísmo e as
eternas perguntas em que os seres humanos debatem fé versus razão.
Raimundus
Gregorius dedica a estes textos, o tempo de sua viagem de descoberta rumo a si
mesmo. Como se cada linha tivesse sido escrita pelo seu eu desconhecido e que
se apresenta a ele até mesmo com cartas trocadas (mas jamais entregues?!) entre
Amadeu e seus pais.
Em
resumo, Trem Noturno para Lisboa é um livro sobre um tema para salvar Raimundus
Gregorius, que por sua vez descobriu o tema que salvou Amadeu Prado, que talvez
tenha salvado Pascal Mercier que por sua vez, e agora com certeza, salvou Peter
Bieri.
E aqui estamos nós, salvando a nós mesmos, com livros, resenhas e
encontros. Salve 2013!
Claudine que legal. Como você está poética. Este livro foi minha indicação. Também peguei o trem para Lisboa. Aliás, quase sempre pego um trem desses. Vou viver a vida sob outra perspectiva. Este livro foi importante para mim. Ele nos deixou mais coisas que o prazer da leitura. Estes outros eu que nós poderíamos / poderemos ser são sempre instigantes. Nossas trocas, as saudades, o que levamos na bagagem quando continuamos a viagem. Isso, sempre me fascinou. Parabéns pela resenha. Só a essência com sabor poético. Forte abraço.
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