terça-feira, 9 de outubro de 2012

SERENA

de Ian McEwan
Companhia das Letras, 2012


Por Maria Virginia de Vasconcellos em Outubro de 2012

A história se passa no início dos anos 70, numa Inglaterra em crise, com greves e atentados do IRA, numa Londres bagunçada, com ruas imundas e racionamento de energia.

É contada pela personagem principal, na primeira pessoa do singular, pela jovem Serena, que relata nos primeiros capítulos o início de sua vida, sua infância como filha de um religioso, até  ingressar no MI5-Serviço de Segurança Doméstica Britânico, sob a influência de um namorado maduro.
A narrativa prossegue com Serena recebendo a tarefa do MI5 de cooptar e financiar um escritor – sem que ele tome conhecimento – oferecendo generosos subsídios de uma fundação cultural que é uma mera farsa. A intenção é usar intelectuais  europeus na divulgação de idéias anticomunistas, prática do serviço secreto.
É fácil prever que Serena vai se apaixonar pelo simpático escritor e que esse segredo vai dificultar e envenenar a relação amorosa que surge entre os dois. O difícil é imaginar o que vem depois e o final surpreendente e sofisticado dessa obra.

Na sua maturidade, aos 64 anos, o Ian McEwan parece ter consciência de onde quer levar o leitor. Cada frase faz sentido e a estrutura do texto é lógica e coerente. Embora ele misture duas palestras enormes e entediantes realizadas no MI5, que ameaçam estragar a narrativa, não conseguem, porque ao fim das palestras ele nos surpreende ou com uma Shirley Shilling soltando um palavrão ou com uma reviravolta no contexto.
Ele também insere vários contos do escritor Haley – ocupando de 5 a 10 páginas cada um -  mostrando ter uma imaginação fértil na caracterização de personagens paralelos que, afinal, no último capítulo vão ser utilizados e integrados na história principal de forma ardilosa e brilhante. Portanto, apesar desses contornos ou desvios, o McEwan não perde a linha mestra da narrativa até chegar ao seu apogeu ao final do livro.  

Para quem já leu – Reparação (Atonement) – sua publicação mais conhecida - ou assistiu ao filme Desejo e Reparação – que é baseado nesta ficção, sabe que McEwan é capaz de viradas inspiradoras que envolvem e aliviam o leitor. Aliás, ele é fiel ao leitor. Utilizando suas palavras em Serena (pag. 234 dessa edição), parece haver “um contrato tácito com o leitor, que o escritor deve honrar. Nenhum elemento de um mundo imaginário e nenhum de seus personagens deveria poder se dissolver por causa de um capricho do autor. O inventado tem de ser tão sólido e consistente quanto o real.”

E o real é muito sólido neste livro. A ficção tem como entorno fatos reais.
O contexto da cultura do segredo - vivenciado pela Serena– em contraposição à cultura da transparência -  é assunto em voga na atualidade, ainda que apareça com a marca muito mais forte da ideologia antiterrorista do que anticomunista. O MI5 (Military Intelligence, Section 5) é um serviço britânico que existe até hoje e marcou seu centenário em 2009, embora tenha adquirido nomes diferentes no decorrer do século passado. Portanto, os burocratas  Serenas e Greatorex continuam existindo na atualidade.
Pela Wikipédia, sabe-se que a informação mantida pelo MI5 está imune à publicação e abertura (pela Seção 23 da Lei Freedom of Information Act/2000). No ano de 2006, houve acusações de que o MI5 estaria guardando 272.000 arquivos secretos individuais – equivalente a um em 160 adultos de UK –  sendo que algumas dessas fichas sigilosas, dizem respeito a cidadãos que não ameaçam o país, na visão de alguns políticos. [1]

Enquanto isso, é curioso lembrar que o mundo tem caminhado em direção oposta, para o lado da cultura da transparência: existem hoje 96 países com legislação garantindo o acesso à informação controlada pelos governos (dado de julho de 2012). Nos últimos cinco anos do século XX, formou-se uma onda de legislação de transparência, com 40 países seguindo o exemplo dos pioneiros Finlândia, Estados Unidos e Dinamarca.  O Brasil introduziu, recentemente, em novembro de 2011, uma lei vigorosa (LAI no. 12.527, de 18/11/12) e passou a pertencer a esse grupo da busca da transparência. Numa comparação internacional, o sistema brasileiro de acesso à informação situa-se numa posição mediana, dois graus abaixo de United Kingdom. (Global Right to Information Rating: rti-rating.org).

Voltando ao autor McEwan, segundo a resenha do Serena publicada na revista Veja[2], ele afirma que ”Todos os romances são de espionagem”. Ele expande o sentido do termo espionagem acrescentando: ”Romances investigam o que deixamos em segredo, o que resguardamos na intimidade. Em qualquer relacionamento, há coisas que escondemos, que não dizemos diretamente. Estamos todos envolvidos no controle de informação”.  E, há 20 anos, Ewan publicou um romance estritamente sobre espionagem – O Inocente – ambientado na Berlim dividida da Guerra Fria. Em Serena ele está, portanto, retomando o tema. Na verdade, no sentido amplo, parece que a investigação sempre está presente em seus romances.

Vale a pena estender ainda mais o sentido do termo investigação para abarcar a pesquisa da história real que o autor realiza para compor seus personagens. Quando McEwan coloca na boca do Pierre, o agente da CIA lotado em Londres, que vai ao MI5 fazer uma palestra sobre a guerra fria - a guerra das idéias como dizia, a descrição do evento da Conferência Cultural e Científica pela Paz Mundial (que nome singelo!) ele evoca um fato real. Dedica três páginas a descrever o episódio de confronto entre intelectuais, acadêmicos, escritores, músicos em torno das ideologias e, em especial, a atuação do compositor soviético Chostakóvitch, não dissidente: segundo McEwan, todo o ambiente foi financiado pelas agências  de ambos as lados.

Esse mesmo episódio, ocorrido no Waldorf Astoria, em Nova York, é esmiuçado pelo escritor Alex Ross,  no capítulo Admirável Mundo Novo: a guerra fria e a vanguarda dos anos 50 num livro[3] que trata da história da música contemporâneo-erudita no século XX e de suas relações com o mundo ao redor.
Os dois autores divergem em alguns detalhes, por ex. o Ross indica a data do acontecimento em março de 49, enquanto o McEwan o localiza nos anos cinquenta. Contudo, ambos destacam a participação dos intelectuais de diferentes correntes, “Artistas americanos de esquerda de todas as tendências e disciplinas se reuniram no Waldorf para saudar suas contrapartes soviéticas”. Segundo Ross, “A maioria dos que compareceram não sabia até que ponto o evento havia sido arquitetado pelos propagandistas soviéticos”. 
Enfim, a midia da época teria publicado interpretações diversas sobre “uma das primeiras grandes batalhas de propaganda da Guerra Fria cultural” e, em especial, sobre o discurso de Chostakóvitch, orientado/ordenado pelo Kremlin a criticar compositores dissidentes (em especial Stravinski e Schoenberg) como modernistas reacionários.
O fato é que McEwan utilizou um episódio real para caracterizar o seu personagem da CIA que, por sua vez, discursava para influenciar a amestrada burocrata Serena, figura principal da sua ficção. E apesar desse volteio, o autor se mantém na trama sem perder o fio condutor.

Por último, este livro abre a porta para reflexões de cunho pessoal, sobre opções de vida, sobre influências recebidas, sobre erros e acertos nas escolhas profissionais e sobre as sombras ideológicas que perseguem as idéias e a sociedade. Por tudo isso, recomendo o livro principalmente para os que gostam de romances que têm sustentação em acontecimentos verdadeiros, que misturam ficção à realidade.




[1] De acordo com a Open Society Justice Initiative o debate continua – nota de Out 2011.

[2] A burocracia do segredo, Revista Veja, 4 de julho de 2012
[3] Escutando o século XX – O resto é ruído, Ross, Alex, Companhia das Letras, 2009.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

COMER, REZAR, AMAR

de Elizabeth Gilbert
Editora Objetiva, 2006


Por  Virginia de Vasconcellos
Brasília, junho/julho de 2008

Elizabeth Gilbert, no seu livro COMER, REZAR, AMAR expõe sua mente suficientemente divertida para compor frases como “mosquito tão grande que pode currar uma vaca”, “praticar masturbação pensando na Mônica x Clinton”.
E, sem escorregar muito, consegue arrancar elogios até da Hillary Clinton. Também, diante dessa, o que poderia comentar a Sra. Clinton a não ser “Adorei Comer, Rezar, Amar”?

O fato é que o livro apresenta uma fusão de culturas ocidente x oriente, incorporando a Itália, a Índia e Bali, desde uma perspectiva atraente, ainda que definitivamente “americanizada”.  Pois, convenhamos,  aquele que  vivencia somente a cultura desenvolvida dificilmente vai “sacar” um “Xamã Balinês” na sua inteireza; menos ainda vai perceber o que significa e como atua um brasileiro sedutor; ou mesmo perceber uma tramóia de balinesa para tirar dinheiro de americana. Na história, foi o brasileiro que percebeu tudo isso rapidamente...

A ingenuidade da visão do americano é mostrada com honestidade. Aliás, o livro cativa por ser honesto. Apesar de persistir uma americana deslumbrada, a E. Gilbert tem uma mentalidade muito aberta e,  repito, uma cabeça muito divertida.

A experiência no ASRAM indiano é descrita com sinceridade e, embora longa, atrai pelo senso de humor constante da autora.

Também é valiosa a pesquisa cultural, tanto gastronômica, quanto mística e histórica, ainda que a obra não tenha pretensão de estudo sócio-antropológico.  Por exemplo, é curioso descobrir que em Bali, os filhos são chamados não pelo nome, mas pela ordem de chegada: UM, DOIS, TRÊS... e por aí vai.

Por último, e não menos importante, trata com critério as “perdas” impostas às pessoas no decorrer da vida. Esse parecer ser o leit motiv que orienta o personagem central. O livro explora as possibilidades terapêuticas, ocidentais e orientais, sem conceitos ou teorias, descrevendo a diversidade de valores, os vários métodos de superação do ser humano, até culminar no ressuscitar, numa nova paixão, utilizando a própria existência como motor de busca da alegria.

Enfim, o livro entretém, informa e educa. Vale a pena ser lido.