quinta-feira, 15 de março de 2012

Terra Sonâmbula


de Mia Couto

por Beth Eloy

O que é o realismo maravilhoso?

No início do século XX, surgiu, na Alemanha, um novo termo que visava designar a nova tendência pictural do período entre as duas Grandes Guerras, o realismo mágico.

Após devastação causada pela Primeira Guerra Mundial, os artistas deste país tentaram, através da pintura, manifestar-se contra a degradação e a miséria em que o país se encontrava. Esta tendência expandiu-se ao resto da Europa, e em alguns países, passou do domínio da pintura para o domínio literário.

Este termo foi posteriormente adaptado à realidade latino-americana, surgindo nas décadas de 30 e 40, um outro termo designado real maravilhoso.
Autores como Gabriel Garcia Marques e Isabel Allende, são qualificados como sendo mágico realistas, colaborando assim, com a presença do realismo mágico na América Latina.

Um dos temas predominantes do real maravilhoso é a afirmação cultural e identidária do continente. Neste sentido, este caráter reivindicativo e cultural, que visava a afirmação da identidade latino-americana, tornou-se não só um meio de distinção face às culturas mundiais, mas também num exemplo a ser seguido por outras culturas com a mesma ambição.

Tal como o continente latino-americano, também o continente africano é marcado pelo exotismo da sua cultura, pelo respeito da tradição aos antepassados e pela forte presença religiosa do cotidiano. Todos esses elementos estão presentes na produção literária africana de expressão portuguesa. Nesse contexto encontra-se Mia Couto.

Através da sua obra, este autor vem contribuindo, grandemente, para a busca da identidade de Moçambique, refletindo sobre a influência da cultura portuguêsa durante a ocupação dos colonizadores e o mísero estado em que o país ficou após a guerra colonial e a guerra interna que devastaram Moçambique.

1 – Qual o tema do livro?

Conta a história de personagens como Tuahir, Muidinga e Kindzu que fogem das atrocidades da guerra, tentando sobreviver e encontrar um rumo para as suas vidas. A fuga dos horrores só é possível através da evasão e do sonho dos personagens.

2 – Qual a premissa central do livro?

Pela voz do narrador é dado o conhecimento ao leitor da interação entre dois mundos aparentemente distintos: o mundo real e o mundo maravilhoso ( o sonho). O narrador relata os efeitos da guerra e da destruição do país, mas também foca a capacidade dos personagens de sonhar. E será por essa capacidade de evadir e sonhar que os personagens sobrevivem ao caos instalado no país e ao estado letárgico que se encontram.
Neste contexto, são apresentados dois personagens centrais no livro : um velho chamado Tuahir e um miúdo a quem o velho chamava de Muidinga.

Pela voz de Muidinga, surge Kindzu, autor dos cadernos, que narra sua vida, desde sua infância até o momento da sua morte.

Ao longo dos capítulos vão sendo narrados acontecimentos do contexto em que vivem, um cenário de pobreza, degradação e vazio em função da guerra e do imaginário africano. Essa é a forma que o autor utilizou para promover a consciência cultural, evidenciando temas da cultura africana.

É utilizada uma linguagem poética para fazer a narrativa da estória. Pelo que pesquisei sobre o Mia Couto essa é uma forma de linguagem que ele utiliza para contar suas estórias, talvez como recurso para amenizar o sofrimento causado pelas guerras.

3 – Existe alguma mensagem subjacente?

É a história do povo moçambicano, suas aventuras, sofrimentos e uma crítica à guerra civil, a dor e a devastação por ela causada.

Fala de Tuahir: “ Foi o que fez a esta guerra: agora todos estamos sozinhos, mortos e vivos. Agora já não há mais pais”.

4 - A estória é bem desenvolvida?

A estória é desenvolvida em dois planos: o primeiro, narra a história de Tuahir e Muidinga em sua luta diária pela sobrevivência; o segundo, é a história de Kindzu contada por ele mesmo em seus cadernos. A partir do momento que Muidinga começa a ler os cadernos, as narrativas vão se intercalando ( às vezes tive que voltar para recuperar alguns personagens) até se encontrarem no final do livro, onde fica explícito que Muidinga pode ser Gaspar, o filho desaparecido de Farida.

5 – O autor se mantém na trama?

Sim. Através do uso da prosa com forte base poética. Essa foi uma característica forte na narrativa do livro.

6 – Capacidade de prender o leitor?

O autor narrou de forma “mágica” os acontecimentos e experiências dos personagens e uso de uma linguagem própria e poética. Tive em algum momento a sensação de estar lendo contos soltos. Ao fechar cada conto achava que não mais me encontraria com os personagens. Eis que de repente, eles voltam, e tive que fazer um esforço para me lembrar do contexto onde estavam inseridos. Exemplo: Surendra, Assani e Antoninho.

7 – Cria identificação do leitor com os personagens?

Sim. Mais o que mais gostei foi o uso de provérbios e expressões de fundo filosófico que me levaram a refletir sobre sonhos, lendas e feridas. Não é um livro apenas de entretenimento. É um livro de reflexão, de curiosidades. A narrativa é muito diferente o que pode fazer com que alguns leitores possam parar no meio da leitura. O próprio uso do português falado em Moçambique, pode promover questionamentos do tipo: o que estou lendo. Vale à pena continuar.

“ O que andas a fazer com um caderno, escreves o que? Nem sei pai. Escrevo conforme vou sonhando. E alguém vai ler isso? Talvez. É bom assim: ensinar alguém a sonhar” Fala de kindzu

“ O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro” Fala de Tuhair

Esse é o desafio de desequilibrista – ter um pé em cada um dos mundos: o do texto e do verbo. Não se trata apenas de visitar o mundo da oralidade. É preciso deixar-se invadir e dissolver pelo universo das falas, das lendas, dos provérbios” - Mia Couto

Um comentário:

  1. Concordo com Beth, acho apenas que o autor exagerou na junção e criação de palavras.
    O livro é poesia que enfatiza a valor do sonho em meio ao cáos:
    "É que a vida não gosta de sofrer: a terra anda procurar dentro de cada pessoa. anda juntar os sonhos. Sim, faz conta que ela é uma costureira de sonhos". (Décimo caderno de Kindzu).
    Ana Studart

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