de Alba de Céspedes
por Claudine M. D. Duarte
Filha de uma italiana com um embaixador cubano, Alba Carla Lauritai de Céspedes y Bertini nasceu em Roma em 1911 e é considerada uma das principais romancistas europeias do século 20. Entre seus livros, são citados os romances “Ninguém volta atrás” (1935), “Dalla parte di lei” (1949) – editado aqui como “Na voz dela”- e “A rebolona” (1967). No livro “Frantumaglia: os caminhos de uma escritora”, Elena Ferrante comenta “Caderno proibido” e atribui a influência de Alba de Céspedes em suas obras. Annie Ernaux, autora francesa vencedora do Nobel de Literatura de 2022, também colaborou para a popularidade de Céspedes, com a forte afirmação que ter acesso à sua obra "mudou a sua vida". Vale destacar que, Alba, envolvida com a pauta antifascista, fundou a revista Mercúrio, em 1944, e no pós-guerra dedicou-se a escrever para o cinema, o teatro, o rádio e a televisão. Morreu em Paris, em 1997.
Devemos à Camila Berta, editora da Companhia das Letras, a nova edição do Caderno Proibido aqui no Brasil. Em recente entrevista à Folha de São Paulo, Camila disse que sua relação com Alba começou na pandemia, quando ouviu uma editora alemã falar sobre a autora. Daí até encontrar uma primeira edição da obra em um sebo foram vários movimentos que pavimentaram o caminho de sua paixão pela escrita de Céspedes. Muitos países já publicaram os livros da italiana e a decisão da Companhia das Letras foi por fazer a tradução com linguagem atualizada, escolhendo manter os nomes originais dos personagens – na primeira edição brasileira, por exemplo, o marido da personagem principal e narradora, Valeria, teve seu nome, Michele, traduzido para Miguel... Para ela, o livro "furou a bolha" ao ser indicado por clubes de leitura, em 2024: "Se você pensa que o livro foi escrito há tantos anos, Alba estava muito à frente de seu tempo", afirmou Camila sobre Caderno Proibido, publicado pela primeira vez em episódios no periódico italiano La Settimana Incom Illustrata, de 1950 a 1951, após a Segunda Guerra Mundial.
Essa Itália pós-guerra se faz presente na trama criada por Céspedes: acompanhamos seis meses da vida de uma mulher de 43 anos que vive a vida que a ela foi destinada. A ela e a tantas outras. Cuida de sua casa, de seu marido, de seu filho, de sua filha, todos adultos. Valeria arruma a casa, faz a comida e, para colaborar com a vida financeira da família, ainda trabalha como auxiliar administrativa num escritório. Um dia após o outro, sem refletir, sem pensar nos tantos detalhes e por quês que impactam seu cotidiano até que, num domingo, comete a ousadia de comprar o tal caderno:
Eram cadernos pretos, luzidios, grossos, daqueles que eu levava para a escola e nos quais – antes de iniciá-los – eu logo escrevia, na primeira página, com entusiasmo, o meu nome: Valeria. “Me dê também um caderno”, eu disse, remexendo na bolsa para pegar mais dinheiro. Mas, quando ergui os olhos, percebi que o moço da tabacaria havia assumido uma expressão severa para me dizer: “Não pode, é proibido”. Ele me explicou que o fiscal ficava de guarda na porta, todo domingo, para que ali só se vendesse tabaco, nada mais. Eu era a única cliente. "Mas eu preciso", pedi novamente, “preciso mesmo.” Falei baixinho, agitada, estava disposta a insistir, a suplicar. Então ele olhou ao redor e depois, rapidamente, pegou um caderno e o deslizou sobre o balcão, dizendo: “Esconda embaixo do casaco”.
E como em toda caminhada de auto-conhecimento, o processo da escrita vai desafiando a personagem e aos leitores que respiram no ritmo de sua coragem e de seus ‘desatinos’. O “falar para dentro” ou o “falar de si” é um exercício solitário de construção de sua identidade, passando a criar outras visões sobre ela mesmo e de seus familiares. O registro de seu cotidiano em palavras traz questionamentos, angústias e, principalmente, luzes antes inexistentes ou inimagináveis.
Outra coisa me impede de confessar que escrevo, e é o remorso de perder muito tempo escrevendo. Com que frequência reclamo que faço muita coisa, que sou escrava da família, da casa; que nunca tenho a oportunidade de ler um livro, por exemplo. Tudo isso é verdade, mas em certo sentido essa escravidão se tornou também a minha força, a auréola do meu martírio (...). Devo reconhecer que a determinação com a qual me defendo de qualquer possibilidade de repousar talvez não passe de medo de perder essa única fonte de felicidade que é o cansaço.
Algo que chama a atenção é quando Valeria passa a questionar seu relacionamento com o marido, Michele, um homem frustrado com a própria vida e fechado em si, sem tempo ou cuidado para escutá-la e aos filhos e que a chama de “mamãe”! (?)
Ao reler o que escrevi ontem, acabo me perguntando se não comecei a mudar de índole a partir do dia em que meu marido, de brincadeira, passou a me chamar de ‘mamãe’. No início gostei muito, porque assim me sentia a única adulta em casa, a única que já soubesse tudo da vida. (...) Mas agora compreendo que foi um erro: ele era a única pessoa para a qual eu era Valeria.
O caderno, com status de personagem, proibido e desejado, como um amante na vida de Valeria que anseia os momentos em que poderá estar a sós com ele, longe da vista de todos. Como a casa é habitada pelo casal e pelos dois filhos, Mirella e Riccardo, a escrita no diário precisa ser realizada nas madrugadas ou quando Valeria fica em casa sozinha. Isso nos remete ao ensaio de Virginia Woolf (1882-1941) – Um teto todo seu (1929), em que a escritora inglesa chama a atenção para os obstáculos que impedem as mulheres de conquistarem seu espaço, literal e metaforicamente.
Às vezes eu precisaria ficar sozinha; nunca ousaria confessar a Michele, temendo desgostá-lo, mas sonho ter um quarto só para mim.
Valeria faz do caderno, um quarto somente seu. Com pensamentos francos e extremamente lúcidos, se descobre complexa e encara todos os nuances dos relacionamentos com os personagens mais próximos: a mãe, a filha, o filho, a nora, o marido, um rol de amigas indesejáveis e o chefe do escritório com quem se permite viver uma breve história de amor. Acompanha, inerte, um provável caso de seu marido com uma de suas amigas. Assiste, intranquila, as ambições da filha. Acata, impotente, a escolha do filho, recebe a nora e se prepara para a chegada de um neto. Sem acesso a soluções ingênuas, Valeria (re) vive o seu próprio momento pós-guerra:
Ou talvez porque qualquer um podia morrer de um momento para outro, e as coisas não tinham importância diante da vida das pessoas de carne e osso, todas iguais, todas ameaçadas: o passado não servia mais para nos defender, e não tínhamos nenhuma certeza do futuro. Sinto tudo em mim confusamente e não posso falar disso com minha mãe nem com minha filha porque nenhuma delas compreenderia. Pertencem a dois mundos diferentes: um que acabou, junto com aquele tempo, e o outro nasceu dele. E em mim esses dois mundos colidem, fazendo-me gemer. Talvez por isso que muitas vezes me sinto desprovida de consistência. Talvez eu seja somente essa passagem, essa colisão.
E assim, setenta anos depois, nós agradecemos por nos sentirmos essa mínima e insondável possibilidade de escuta. As palavras do Caderno Proibido reverberam dentro de cada leitor, leitora, tão fortes quanto em seu próprio tempo. Ainda há muitas Valerias no mundo, incontáveis são as necessidades de jornadas, temidas mais que proibidas... E, concordemos ou não com as decisões que Alba lhe reservou, Valeria Cossati é uma mulher de seu tempo e a força de seu diário reside no poder avassalador da escrita.
Agora, por trás de qualquer coisa que eu faça ou diga, existe a sombra deste caderno. Nunca poderia acreditar que tudo o que me acontece ao longo do dia merecesse ser anotado. Minha vida sempre me pareceu meio insignificante, sem acontecimentos notáveis além do casamento e do nascimento das crianças. Mas, desde que, por acaso, comecei a manter um diário, percebo que uma palavra, um tom, podem ser tão importantes, ou até mais, quanto os fatos que estamos acostumados a considerar como tais.
(...)
Mas toda experiência minha – inclusive aquela que me vem deste longo interrogar-me no caderno – me ensina que a vida inteira passa na angustiante tentativa de tirar conclusões e não conseguir. Ao menos para mim é assim: tudo me parece, ao mesmo tempo, bom e mau, justo e injusto, até mesmo caduco e eterno.
Recomento fortemente a leitura deste Caderno Proibido que faz da literatura um de nossos caminhos de exploração, memórias e descobertas. Fecho esse texto com as palavras de sua abertura: “Fiz mal em comprar este caderno, muito mal. Mas agora é tarde demais para lamentar, o estrago está feito.” Que bom. Sorte nossa, leitores.
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