terça-feira, 19 de agosto de 2025

CADERNO PROIBIDO

 de Alba de Céspedes





por Claudine M. D. Duarte

 

 

 

Filha de uma italiana com um embaixador cubano, Alba Carla Lauritai de Céspedes y Bertini nasceu em Roma em 1911 e é considerada uma das principais romancistas europeias do século 20. Entre seus livros, são citados os romances “Ninguém volta atrás” (1935), “Dalla parte di lei” (1949) – editado aqui como “Na voz dela”-  e “A rebolona” (1967). No livro “Frantumaglia: os caminhos de uma escritora”, Elena Ferrante comenta “Caderno proibido” e atribui a influência de Alba de Céspedes em suas obras. Annie Ernaux, autora francesa vencedora do Nobel de Literatura de 2022, também colaborou para a popularidade de Céspedes, com a forte afirmação que ter acesso à sua obra "mudou a sua vida". Vale destacar que, Alba, envolvida com a pauta antifascista, fundou a revista Mercúrio, em 1944, e no pós-guerra dedicou-se a escrever para o cinema, o teatro, o rádio e a televisão. Morreu em Paris, em 1997.

 

Devemos à Camila Berta, editora da Companhia das Letras, a nova edição do Caderno Proibido aqui no Brasil. Em recente entrevista à Folha de São Paulo, Camila disse que sua relação com Alba começou na pandemia, quando ouviu uma editora alemã falar sobre a autora. Daí até encontrar uma primeira edição da obra em um sebo foram vários movimentos que pavimentaram o caminho de sua paixão pela escrita de Céspedes. Muitos países já publicaram os livros da italiana e a decisão da Companhia das Letras foi por fazer a tradução com linguagem atualizada, escolhendo manter os nomes originais dos personagens – na primeira edição brasileira, por exemplo, o marido da personagem principal e narradora, Valeria, teve seu nome, Michele, traduzido para Miguel... Para ela, o livro "furou a bolha" ao ser indicado por clubes de leitura, em 2024: "Se você pensa que o livro foi escrito há tantos anos, Alba estava muito à frente de seu tempo", afirmou Camila sobre Caderno Proibido, publicado pela primeira vez em episódios no periódico italiano La Settimana Incom Illustrata, de 1950 a 1951, após a Segunda Guerra Mundial.


Essa Itália pós-guerra se faz presente na trama criada por Céspedes: acompanhamos seis meses da vida de uma mulher de 43 anos que vive a vida que a ela foi destinada. A ela e a tantas outras. Cuida de sua casa, de seu marido, de seu filho, de sua filha, todos adultos. Valeria arruma a casa, faz a comida e, para colaborar com a vida financeira da família, ainda trabalha como auxiliar administrativa num escritório. Um dia após o outro, sem refletir, sem pensar nos tantos detalhes e por quês que impactam seu cotidiano até que, num domingo, comete a ousadia de comprar o tal caderno:


Eram cadernos pretos, luzidios, grossos, daqueles que eu levava para a escola e nos quais – antes de iniciá-los – eu logo escrevia, na primeira página, com entusiasmo, o meu nome: Valeria. “Me dê também um caderno”, eu disse, remexendo na bolsa para pegar mais dinheiro. Mas, quando ergui os olhos, percebi que o moço da tabacaria havia assumido uma expressão severa para me dizer: “Não pode, é proibido”. Ele me explicou que o fiscal ficava de guarda na porta, todo domingo, para que ali só se vendesse tabaco, nada mais. Eu era a única cliente. "Mas eu preciso", pedi novamente, “preciso mesmo.” Falei baixinho, agitada, estava disposta a insistir, a suplicar. Então ele olhou ao redor e depois, rapidamente, pegou um caderno e o deslizou sobre o balcão, dizendo: “Esconda embaixo do casaco”.

 

E como em toda caminhada de auto-conhecimento, o processo da escrita vai desafiando a personagem e aos leitores que respiram no ritmo de sua coragem e de seus ‘desatinos’. O “falar para dentro” ou o “falar de si” é um exercício solitário de construção de sua identidade, passando a criar outras visões sobre ela mesmo e de seus familiares. O registro de seu cotidiano em palavras traz questionamentos, angústias e, principalmente, luzes antes inexistentes ou inimagináveis.

 

Outra coisa me impede de confessar que escrevo, e é o remorso de perder muito tempo escrevendo. Com que frequência reclamo que faço muita coisa, que sou escrava da família, da casa; que nunca tenho a oportunidade de ler um livro, por exemplo. Tudo isso é verdade, mas em certo sentido essa escravidão se tornou também a minha força, a auréola do meu martírio (...). Devo reconhecer que a determinação com a qual me defendo de qualquer possibilidade de repousar talvez não passe de medo de perder essa única fonte de felicidade que é o cansaço.

 

Algo que chama a atenção é quando Valeria passa a questionar seu relacionamento com o marido, Michele, um homem frustrado com a própria vida e fechado em si, sem tempo ou cuidado para escutá-la e aos filhos e que a chama de “mamãe”! (?)

 

Ao reler o que escrevi ontem, acabo me perguntando se não comecei a mudar de índole a partir do dia em que meu marido, de brincadeira, passou a me chamar de ‘mamãe’. No início gostei muito, porque assim me sentia a única adulta em casa, a única que já soubesse tudo da vida. (...) Mas agora compreendo que foi um erro: ele era a única pessoa para a qual eu era Valeria.

 

O caderno, com status de personagem, proibido e desejado, como um amante na vida de Valeria que anseia os momentos em que poderá estar a sós com ele, longe da vista de todos. Como a casa é habitada pelo casal e pelos dois filhos, Mirella e Riccardo, a escrita no diário precisa ser realizada nas madrugadas ou quando Valeria fica em casa sozinha. Isso nos remete ao ensaio de Virginia Woolf (1882-1941) – Um teto todo seu (1929), em que a escritora inglesa chama a atenção para os obstáculos que impedem as mulheres de conquistarem seu espaço, literal e metaforicamente.

 

Às vezes eu precisaria ficar sozinha; nunca ousaria confessar a Michele, temendo desgostá-lo, mas sonho ter um quarto só para mim.

 

Valeria faz do caderno, um quarto somente seu. Com pensamentos francos e extremamente lúcidos, se descobre complexa e encara todos os nuances dos relacionamentos com os personagens mais próximos: a mãe, a filha, o filho, a nora, o marido, um rol de amigas indesejáveis e o chefe do escritório com quem se permite viver uma breve história de amor. Acompanha, inerte, um provável caso de seu marido com uma de suas amigas. Assiste, intranquila, as ambições da filha. Acata, impotente, a escolha do filho, recebe a nora e se prepara para a chegada de um neto. Sem acesso a soluções ingênuas, Valeria (re) vive o seu próprio momento pós-guerra:

 

Ou talvez porque qualquer um podia morrer de um momento para outro, e as coisas não tinham importância diante da vida das pessoas de carne e osso, todas iguais, todas ameaçadas: o passado não servia mais para nos defender, e não tínhamos nenhuma certeza do futuro. Sinto tudo em mim confusamente e não posso falar disso com minha mãe nem com minha filha porque nenhuma delas compreenderia. Pertencem a dois mundos diferentes: um que acabou, junto com aquele tempo, e o outro nasceu dele. E em mim esses dois mundos colidem, fazendo-me gemer. Talvez por isso que muitas vezes me sinto desprovida de consistência. Talvez eu seja somente essa passagem, essa colisão.

 

E assim, setenta anos depois, nós agradecemos por nos sentirmos essa mínima e insondável possibilidade de escuta. As palavras do Caderno Proibido reverberam dentro de cada leitor, leitora, tão fortes quanto em seu próprio tempo. Ainda há muitas Valerias no mundo, incontáveis são as necessidades de jornadas, temidas mais que proibidas... E, concordemos ou não com as decisões que Alba lhe reservou, Valeria Cossati é uma mulher de seu tempo e a força de seu diário reside no poder avassalador da escrita.

 

Agora, por trás de qualquer coisa que eu faça ou diga, existe a sombra deste caderno. Nunca poderia acreditar que tudo o que me acontece ao longo do dia merecesse ser anotado. Minha vida sempre me pareceu meio insignificante, sem acontecimentos notáveis além do casamento e do nascimento das crianças. Mas, desde que, por acaso, comecei a manter um diário, percebo que uma palavra, um tom, podem ser tão importantes, ou até mais, quanto os fatos que estamos acostumados a considerar como tais.

(...)

Mas toda experiência minha – inclusive aquela que me vem deste longo interrogar-me no caderno – me ensina que a vida inteira passa na angustiante tentativa de tirar conclusões e não conseguir. Ao menos para mim é assim: tudo me parece, ao mesmo tempo, bom e mau, justo e injusto, até mesmo caduco e eterno.

 

Recomento fortemente a leitura deste Caderno Proibido que faz da literatura um de nossos caminhos de exploração, memórias e descobertas. Fecho esse texto com as palavras de sua abertura: “Fiz mal em comprar este caderno, muito mal. Mas agora é tarde demais para lamentar, o estrago está feito.” Que bom. Sorte nossa, leitores.

 

***



segunda-feira, 18 de agosto de 2025

"Afirma Pereira" de Antonio Tabucchi

 Antonio Tabucchi (1943-2012) foi um renomado escritor, tradutor, crítico literário e acadêmico italiano, conhecido por sua vasta obra literária que explora temas como a reconstrução da identidade, a memória e a realidade. Tabucchi foi um apaixonado estudioso da literatura portuguesa, traduzindo para o italiano diversas obras de Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e outros autores lusófonos. Sua paixão por Portugal levou-o a viver em Lisboa por longos períodos, casado com uma portuguesa.

"Afirma Pereira – um testemunho" (Sostiene Pereira: uma testimonianza, no original; Pereira Maintains/Declares, em inglês), publicado originalmente em 1994, é uma de suas obras mais aclamadas, vencedor dos Prêmios Super Campiello, Scanno e Jean Monnet de Literatura Europeia. A obra foi transformada em filme em 1995, apresentando Marcello Mastroianni em uma das suas últimas grandes interpretações. Mastroianni disse ter se apaixonado pelo personagem[1]. "Principalmente por sua transformação e pela forma quase poética como ela acontece. Ele começa a conhecer pessoas e vai descobrindo que vivia de uma forma que não era normal, à parte. Toma consciência de que vive em um mundo perigoso, mas ao descobrir o mundo ele renasce".

Há ainda uma adaptação da obra para HQ, feita pelo francês Pierre-Henry Gomont em 2016.

O jornalista Pereira é viúvo, vive sozinho e é diretor da página de cultura de um pequeno jornal, no centro velho da Lisboa de 1938. No verão quente de Lisboa, transitando entre a Rua das Saudades, a Praça da Alegria e a Rua da Liberdade, Pereira reflete sobre a morte enquanto consome limonadas e omeletes com ervas no Café Orquídea, e à noite conversa com o retrato da falecida e pensa como seria a vida se tivessem tido um filho.

Percebe que o autoritarismo do regime salazarista vai se infiltrando devagar na vida portuguesa, ouve notícias sobre a guerra civil espanhola e outros movimentos na Itália e Alemanha, mas procura não se envolver e ocupar-se da tradução de contos de seus escritores franceses preferidos.

Pereira não sabe explicar direito o motivo que o levou a contratar e sustentar um estagiário com nome italiano e uma bela namorada, que só produzia necrológios impublicáveis e sumia por longos períodos, metido com sabe-se-lá-o-quê, e que trouxeram conflitos para a sua consciência. Em encontros e conversas com Monteiro Rossi e Marta, padre Antônio, o garçom Manoel, o diretor do jornal, uma senhora judia no trem, a zeladora do prédio e o médico Dr Cardoso, Pereira vai se dando conta que há mudanças em seu mundo interior, assim como o mundo exterior muda e fica mais perigoso.

Entre irônica e melancólica, a trajetória de Pereira para abraçar seu novo ‘eu hegemônico’ é uma história de autoafirmação, que surge de um embate (ou seria uma fusão?) entre o íntimo e o político[2]. Pereira faz (ou é instado a fazer) um movimento de deixar a sua pálida zona de conforto para descobrir ou exercitar uma coragem que nem sabia que existia em si e que mobiliza uma energia vital.

O ponto de vista narrativo é uma questão central na obra: é uma narração em terceira pessoa e o narrador está registrando um depoimento do personagem. Uma alternativa de interpretação, como desdobramento do universo ficcional da história, é que Pereira está prestando esclarecimentos a alguma autoridade no exílio ou mesmo que foi capturado pelo regime salazarista e está tendo que se explicar. A alternativa que me agrada mais é a que nos induz a nota do autor no início do livro: ele, Tabucchi, está emprestando o seu ouvido e sua pena ao personagem que pediu para ser contado, solicitou que seus atos, suas motivações, suas dúvidas, sua transformação fossem registrados para que outros fiquem sabendo.

Naquela época, ele ainda não se chamava Pereira, ainda não tinha traços definidos, era algo vago, fugidio e indistinto, mas já tinha vontade de ser protagonista de um livro. Era apenas um personagem à procura de autor. [...]. Naquela noite de setembro, compreendi vagamente que uma alma, que vagava no espaço do éter, precisava de mim para se narrar, para descrever uma escolha, um tormento, uma vida.(Tabucchi)

Esse recurso narrativo produz várias passagens interessantes no texto. O narrador não sabe tudo de Pereira, só o que ele decide contar. Pereira não considera que sua infância, seus sonhos ou algumas lembranças da juventude precisem ser comentadas com o narrador, já que não guardam interesse para a história que ele quer contar. É o personagem que conduz a narrativa.

A escolha do verbo afirmar traz ambiguidades de sentido para a obra. Primeiro, além de asseverar algo, exime o narrador da responsabilidade sobre o que está sendo narrado, simulando um distanciamento entre narrador e personagem, dando objetividade à narrativa. Segundo, num sentido mais metafórico, diz respeito à tomada de posição, à necessidade de Pereira se afirmar quanto ao contexto político que vivenciava. (Vargas, S.L., 2018[3])

Outro recurso interessante que o autor emprega é a gradual construção do personagem e de seu ambiente emocional a partir de detalhes do ambiente físico: seus incômodos físicos com o calor e com seu corpo e suas obsessões alimentares (limonadas e omeletes) e atenção aos cheiros (fedor de fritura da zeladora) são bastante reiteradas no início do texto, e ao longo de suas transformações internas, vão aparecendo também de outras formas com novos elementos (limonada sem açúcar, salada de peixe,...).

Tabucchi escreveu esse livro no início do período Berlusconi. Estaria o autor também em um processo de reconstrução de identidade e o fez através do Pereira? Na Itália, durante a campanha eleitoral, a oposição contra o polêmico magnata da comunicação (??!!) agregou-se em torno deste livro. O protagonista desse romance tornou-se um símbolo da defesa da liberdade de informação para os adversários políticos de todos os regimes antidemocráticos. Memórias, testemunho de um ser ficcional, mas que é também canal de expressão de uma confederação de almas que lidaram e ainda vão lidar com sociedades autoritárias. A atualidade da obra é incontestável, afirmamos nós.

 "As dúvidas são como manchas na camisa lavadas branco. A tarefa de cada escritor e de cada homem de letras é instalar dúvidas para a perfeição, porque perfeição gera ideologias, ditadores e ideias totalitárias. Democracia não é um estado de perfeição". (Tabucchi, 1999)

 

Entrevista 2002

https://anabelamotaribeiro.pt/antonio-tabucchi-57601

"Há uma coisa que aparece sublinearmente em todos os livros, e no «Afirma Pereira» chama-se «Confederação das Almas», que vai ao encontro desse ser plural. A «Confederação das Almas», elaborada pelos chamados Médicos Filósofos, implica vários eus e um eu hegemónico numa determinada altura da vida. Esta descoberta, que encaixa também no arquétipo do Pessoa, é anterior a Pessoa para si?

·       Essa sugestão vem antes do conhecimento do Pessoa. Vem, sobretudo, com o Pirandello. Quando descobri o Pirandello, vírgula, sem o descobrir, vírgula, foi no liceu. Era uma leitura obrigatória. Mas logo a seguir, no intervalo que tive entre o liceu e a universidade, senti o desejo e a curiosidade de descobrir certas coisas e de reler certos autores, entre os quais o Pirandello. A partir daí as descobertas foram por analogias. Foram as leituras de uma analogia que me parece muito importante no século XX na literatura, na filosofia, na psicologia: a psicanálise. A descoberta que a alma cristã, que é o arquétipo, não é una e indivisível, mas que o homem tem dentro de si quase um exército que constitui nesta multiplicidade uma especificidade e unidade que é aquela pessoa. Isto passa-se com o Pirandello, com o Pessoa, com o Unamuno, com o Freud, enfim, com uma grande parte da grande literatura do século XX."

 

Entrevista 2006:

http://www.publico.pt/Cultura/este-foi-o-livro-que-me-custou-mais-escrever---1539336?all=1

Andei sobretudo a pensar numa coisa que me interessava e interessa muitíssimo: a voz. A voz humana. O conflito, simbólico, entre a voz e a escrita.

No livro, contraria a ideia feita de que às palavras, leva-as o vento. Pelo contrário, diz: “verba manent”, as palavras ficam…

 "Eu queria escrever um livro em que o estatuto da voz fosse maior do que o estatuto da escrita. A voz é um fundamento da nossa civilização ocidental. Ela gozou sempre de um estatuto mais importante do que a escrita. A civilização ocidental nasce com essa visão da voz fecundante, criadora. “Ao princípio era o verbo.” O mais antigo dos mitos gregos, o mito órfico, atribui um poder à voz que nunca foi atribuído à escrita. Orfeu canta. E quando ele canta, diz o mito, as árvores inclinam-se e as feras amansam. Graças à potência da voz, ele pode sossegar, tranquilizar, convencer os monstros dos infernos e recuperar o cadáver. A ideia da ressurreição é atribuída ao poder da voz, nunca ao da escrita. Os que escrevem, são os escribas. Cristo não tinha bibliotecas, dizia Fernando Pessoa…Cristo não escreve. Cristo fala, são os outros que escrevem. E aí há esta pequena arrogância de Tristano, que diz ao escritor: tu és o escriba, eu sou a voz. Por que é que a voz é mais importante? Porque é orgânica, biológica. A escrita não é biológica, é mineral.

Mas é através da escrita que a voz permanece. Diz-se que, mais do que as palavras, contam os nossos actos. Ao privilegiar a voz do protagonista, dá-se-lhe a possibilidade de ele compor a vida à maneira que mais lhe convém, reescrevendo a história. Qual será a versão mais verdadeira?

Eu pus em exórdio o verso de Paulo Celan: “Quem testemunha pela testemunha?” O jogo poderia ser este: há uma voz que fala; um ouvido e um escritor que transcreve, à sua maneira, com as suas palavras (e escrever com as suas palavras já significa modificar); o qual passa a um terceiro, que sou eu, com o meu nome escrito aqui [no frontispício do livro], que escrevo verdadeiramente. Neste trânsito da verdade, há o facto de que, se calhar, a verdade é múltipla."

 



[1] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/11/23/ilustrada/18.html

[2]  Camassa, J. B. de O. (2017). Romance de uma (auto)afirmação: o íntimo e o político em Afirma Pereira, de Antonio Tabucchi. Primeiros Escritos8(1), 217-227. https://doi.org/10.11606/issn.2594-5920.primeirosestudos.2017.136817

[3] VARGAS, S. L. . Pós-modernismo e identidade em Afirma Pereira, de Antônio Tabucchi. Revista Letras Raras, Campina Grande, v. 7, n. 1, p. 58–74, 2023. Disponível em: https://revistas.editora.ufcg.edu.br/index.php/RLR/article/view/1561. Acesso em: 16 fev. 2025.

terça-feira, 15 de abril de 2025

Tese sobre uma domesticação de Camila Sosa Villada - “todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, Anna Karenina, Tolstói.


"Agonia, agonia, sonho, fermento e sonho. Este é o mundo, amigo, agonia, agonia" Federico Garcia Lorca



Camila Sosa Villada, nasceu em La Falda, Argentina é uma atriz, escritora e dramaturga argentina. Sua primeira novela, Las malas foi traduzida para o português como O parque das irmãs magníficas em 2019. Esta obra tornou-se um sucesso de crítica e de público e a estabeleceu como uma das escritoras mais originais da literatura argentina contemporânea e da literatura LGBT da Argentina. 

Além disso, o texto obteve numerosos prêmios, entre eles, o Sor Juana Inés da Cruz e foi traduzido para diversos idiomas.

Formação

Villada estudou Comunicação Social e Teatro na Universidade Nacional de Córdoba durante quatro anos. Nesse período, ela se encontrava em situação de prostituição, era empregada doméstica e vendedora ambulante. 

Em 2009 estreou a peça Carnes tolendas, retrato escenico de una travesti, onde “encontrou a síntese entre a atuação, a poesia de Frederico Garcia Lorca, sua condição de travesti e os textos de seu blog La novia de Sandro”, e contou sua vida em formato de biodrama. 

A peça foi dirigida por María Palacios, recebeu assessoria de Paco Giménez e, em 2010, foi selecionada para o Festival Nacional de Teatro da cidade de La Plata.

Durante sua infância viveu em vários povoados da mesma província: Los Sauces, Mina Clavero e Córdoba.

Sobre a infância, lembrou ter imaginado que “ia atuar, que faria teatro, cinema”, e que começou a se travestir “aos 13 anos, numa cidade de 5 mil habitantes”.


Em 2015, Villada publicou seu primeiro livro, a coletânea de poemas La Novia de Sandro traduzido para o português como A namorada de Sandro). Em 2018, publicou o ensaio autobiográfico El viaje inutil . Em 2019 publicou seus dois primeiros romances, Las malas e Tesis sobre una domesticación .

Em 2022, publicou seu primeiro livro de contos, Soy uma tonta por quererte. Em 2023, reeditou Tesis sobre una domesticación, tendo reescrito parte da novela. ( Fonte Wikipedia)


Sobre a reedição de suas obras em entrevista a regista Quatro Cinco Um reflete :


"Quando foi reeditado, em 2020, eu o retomei — assim como fiz com Tese sobre uma domesticação — e limpei o que poderia causar pena. O parque das irmãs magníficas provocou comiseração e uma espécie de piedade. Nessa arena de gladiadores em que estamos, brigando por vender livros, por ser publicados, quero ser considerada uma igual. Voltei a esses livros para tirar o sentimentalismo e a autopiedade"


Sobre a Obra


A obra Tese sobre uma domesticação, publicada em 2023,  aborda temas como identidade, marginalidade, amor, desejo, corpos rebeldes e novas configurações familiares contemporâneas , explorando os limites e possibilidades do amor e os desafios das convenções sociais e da moral burguesa. Quais são os desafios ao se constituir uma família `a sombra de uma sociedade cis -heteronormativa ? 


A narrativa, em terceira pessoa,  é marcada por uma prosa que não se adequa aos padrões e que conduz o leitor a um estudo da sociologia da família, questionando os papéis impostos e o peso que cada indivíduo carrega, para tanto não apresenta um divisão tradicional em capítulos numerados ou intitulados, há uma corrente contínua de pensamentos, memórias que nos permitem habitar os personagens, seus desconfortos, suas dores, misturando memória, reflexão e delírio. A narrativa flui de maneira contínua, com mudanças de cena e tempo marcadas por transições sutis, apresentando-nos uma narrativa poética e fragmentada, que nos transmite as emoções e experiências dos personagens de forma sutil e orgânica.   


Tese sobre a domesticação narra história de uma família burguesa fora dos padrões convencionais, constituída por personagens que são identificados como a atriz, seu marido advogado e o filho de seis anos do casal. A Atriz é uma mulher travesti, atriz de sucesso e reconhecimento em seu país. O advogado é um homem gay, também muito bem sucedido em sua profissão. A criança é o filho adotado do casal, uma criança soropositiva, de personalidade delicada e traumatizada por sua infância de abandono e tragédia. 

 

Importante destacar aqui que a autora valoriza a utilização do termo travesti em detrimento de trans, uma vez  que segunda ela o termo trans lhe parece "anti- literário, travesti, por outro lado, está dizendo muitas mais coisas, imagina-se a noite, as roupas, os decotes a violência, o sangue o sexo, a rebeldia, a solidão e um história comum".


A obra questiona todos os contornos do amor, da normatividade imposta e dos valores das instituições sociais, especialmente a família e o casamento. Este universo familiar desconstruído aborda temas como adoção, maternidade e amor desafiando o tradicional. A obra constantemente indaga os leitores sobre o significado de família ? Quem exerce o poder ? Quem manipula ? Quem está em perigo dentro da célula familiar? Qual o lugar mais perigoso para ser uma mulher ? Quem tem o monopólio da violência nessa célula? 


Acompanhamos a vida atriz travesti navegando pelo seu presente e seu pelo passado e também pela vida pregressa e presentes de seu companheiro, um advogado gay e de seu filho adotado, um menino soropositivo de seis anos transitando entre um narrador em terceira pessoal que nos permite visitar os pensamentos desse três personagem nos conduzindo no que  parece ser um caminho relativamente previsível de uma nova configuração familiar, mas aos poucos o caldo narrativo se aquece e percebe-se que a verdadeira intenção da autora é questionar a extensão da domesticação de uma pessoa, o que significa ser domesticado dentro de uma sociedade que exige previsibilidade e contenção?


A adoção da criança, que a primeira vista se apresenta como um gesto de amor e acolhimento, apresenta-se ao longo da narrativa como um campo de discussão das dinâmicas de poder relacionada ao ambiente familiar.


Aos poucos há uma desconstrução do ideal romântico de uma família acolhedora. A atriz, protagonista da história, vive a balança diária que pende constantemente entre o desejo de amar e cuidar e o anseio de se libertar das imposições e responsabilidades impostas por esse amor.


A maternidade no livro não reflete nenhuma redenção, nem no exercício da maternidade da atriz nem na sua experiência como filha: a mãe da atriz, ao mesmo tempo que parece ser seu primeiro modelo de feminilidade e encantamento, também infligiu a menina violência e dor. O afeto aqui é um campo de batalha que as vezes salva, outras destrói. Essa ambivalência da maternidade se destaca constantemente pela oposição entre os sentimentos de cuidado e o controle, entre a ternura e a imposição, o desejo e a culpa, entre o anseio por liberdade e as obrigações inerente ao exercício materno.  


A obra se distingue por sua grande intensidade sexual e narrativa crua.  Há um critica feroz à domesticação simbólica imposta aos pensamento e corpos dissidentes, não somente na esfera social mas principalmente na esfera intima. 

Em resposta aos tabus e controle da conformidade doméstica a protagonista responde com rebeldia sexual e submissão ao desejo, confrontando-nos constantemente sobre a violência do ambiente familiar. 


Os personagens 


A ATRIZ, UMA MULHER REBELDE

A atriz representa a rebeldia, a luta, a inconformidade em todas as suas instâncias. A partir do momento em que descobre sua sexualidade feminina e a assume na cidade do interior mesmo quando isso pode significar sua própria morte,  quando sai do interior e prospera na vida, na arte. É  transgressora na arte quando impõe e arrisca atuar na peça que lhe satisfaz artistica e intelectualmente. Também é rebelde quando acredita no amor e na familia e quando assume a maternidade. Toda essa potência, no entanto, em algum momento esmorece diante das pressões e dos valores burgueses, explodindo em uma poça de sangue real e metafórico  a um so tempo 

 

O TEATRO

Espaço de seu sucesso material e pessoal o teatro é a matéria prima da atriz. é nesse palco que encontra o homem que a deseja da maneira que ela quer se deseja e nele que concretiza seu projeto de vida : encenar a peça A voz humana de Jean Cocteau.



O MARIDO, UM HOMEM BURGUÊS

O marido gay da atriz encarna não somente a possibilidade do amor e dualidade entre esse sentimento e o desejo, mas também os valores burgueses. Seu apreço pelo bom gosto, pela postura, belo comedimento são notados como fraqueza e por vezes geram descontentamento por aqueles que nasceram na brutalidade, especialmente verbalizada na impaciência do filho com sua inclinação conciliatória bem como pela provocações de sua esposa quando opta pelo vulgar ou violento. 

O marido também é o agente de domesticação mais doméstico da trama. Dentro do seio familiar, ele exerce a liberdade sexual e o desejo com outros parceiros mas ao mesmo tempo exige comprometimento familiar e emocional da atriz para o que ele considera ser o importante.



O FILHO ADOTIVO UMA CRIANÇA COMO CONCRETIZAÇÃO DO IDEAL DE FAMÍLIA 


A criança representa tanto a culminação da vida burguesa como também um limite ao hedonismo e a liberdade da vida conjugal sem filhos. Cuidar é, também, em alguma medida  se abnegar do desejo. É ter responsabilidades, horários, limites e preocupações como no momento em que se atenta ao cheiro da urina da criança.

é também em virtude da criança que se tem a abertura de seu idílio de conforto e sucesso para a mediocridade social. Por meio da assistente social envolvida na adoção da criança,  somos confrontados com a pergunta : o que é um travesti? 

O menino também se apresenta como um rebelde é um artista, com inclinações para o desenho, e também um sobrevivente da doença que lhe afeta a imunidade transmitida por sua mãe bem como da doença da violência familiar. 


AS AMIZADES A ENERGIA E A CENSURA 


As amizades simbolizam ao mesmo tempo a consciência do sucesso da atriz bem como a censura por acreditar no amor. Há um misto de inveja e orgulho. 


A MÃE 

A mãe aqui é uma referência de emancipação, também é um refúgio de aceitação para atriz. Mas como todos os personagens, também abriga violência e ambiguidade.

O PAI

O pai simboliza uma certa incomunicabilidade masculina. Uma impossibilidade de expressar o amor. Também representa o masculino e a violência doméstica os controles e por fim a aniquilação das companheiras que tentam o acompanhar. Sobreviver é estar longe de sua virulência e brutalidade.

O IRMÃO

O irmão é o representante do erro doméstico que forja e passa como um elemento a violência e indiferença insidiosa dos homens contra as mulheres


A CIDADE DO INTERIOR COMO O RETORNO À DOR

Há cidade do interior representa o retorno não somente ao lar paterno e materno, mas também a um ambiente no qual não se reconhece mais ou no qual esforça-se por se relembrar. é nela que conhecemos a experiência de violëncia sofrida pela atriz quando jovem e a motor e a necesside vital de sua partida.

A CIDADE GRANDE COMO O LAR POSSÍVEL

A cidade embora seja vista pela atriz como um lugar sujo e sem árvores é o palco e lar torto dessa mulher que fez da sua vida um desafio às convenções. 


Recomendo a obra para àqueles que questionam ou estão dispostos a questionar as certezas impostas relacionadas aos paradigmas fundadores da sociedade e da família, da maternidade e da redenção através do amor. Sosa é, sem condescendências, uma força literária e política contemporânea.


“Meu primeiro ato de travestismo foi pela escrita”. Camila Sosa Villada