sábado, 23 de março de 2024

Oração para desaparecer (Socorro Acioli, 2023)

 

por Daniela

Oração para desaparecer é o segundo romance da escritora cearense Socorro Acioli. A autora é jornalista e doutora em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), é professora e coordenadora da especialização em escrita e criação da Universidade de Fortaleza (Unifor). Tem mais de vinte livros publicados, entre eles ‘Ela tem olhos de céu’, que recebeu o prêmio Jabuti de literatura infantil; a coletânea de poemas Takimadalar, as ilhas invisíveis; e os romances A cabeça do santo (que ganhou edições na Inglaterra, Estados Unidos, França, México e Itália) e Oração para Desaparecer.

 Socorro soube da história da igreja soterrada em Almofala, Ceará, por uma amiga, em 2015, e começou a procurar mais informações.

“Foi quando achei uma crônica de Carlos Drummond de Andrade no Correio da Manhã de 17 de novembro de 1946. Ele pedia que sábios, poetas, artistas prestassem atenção à igrejinha de Almofala. E contava a história da Labareda, dos Tremembés, da disputa pela santa. E me deu de presente Joana Camelo, a prostituta que jogou um tamanco na cabeça do padre. Depois disso, eu decidi atender ao pedido do Drummond, tantos anos depois. Recebi Joana Camelo de suas mãos. Há uma Almofala no Brasil, sete Almofalas em Portugal. Comecei uma pesquisa intensa, com várias visitas à igreja, às casas de cura dos pajés Tremembés, ganhei um colar de proteção, fui ao rio ver cavalos marinhos, conheci uma das Almofalas portuguesas e dediquei sete anos muito felizes ao ‘Oração para desaparecer’. Escrevi três versões, joguei duas no lixo. A terceira é essa, que agora chega aos leitores, resultado da imensa paz de viver dentro deste livro de 2015 a 2023.” (Estado de Minas, out 2023)

A igreja de Almofala completou 300 anos de história em 2012.  Durante o século XVIII, com os primeiros desbravadores, a Igreja se fixou no território cearense para o trabalho de catequese, antecedendo o poder civil. Vários religiosos foram proprietários de sesmarias e  o território cearense foi pontuado por ermidas, capelas, aldeamentos pequenos e efêmeros como no caso de Almofala. A província de Almofala (Almo hala, do árabe, lugar de permanência temporária), segundo registros do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IPHAN, 2013), tem sua origem ligada à Carta Régia de 8 de janeiro de 1697, que determinava ao governador do Maranhão a doação por Sesmarias, de todas as terras necessárias aos índios Tremembés. Até 1696 o clima era de grande tensão entre os Tremembés, índios que habitavam a região, e os portugueses. O Pe. Assenso Gago, da Companhia de Jesus, mediou essa situação de tensão ao escrever ao Rei de Portugal mostrando-lhe a conveniência de aldear os Tremembés, entregando-lhes sesmarias de terras entre o rio Aracatymirim e do Timonha, atual Almofala. Sua majestade, por meio da Carta Régia 1697 respondeu à solicitação do jesuíta, concedendo uma légua de terra aos Tremembé, bem como aos índios do Ceará Grande, Pernambuco, Paraíba. Ordenou ao governador do Maranhão que não importunasse esses índios e nem os apartassem dos lugares por eles escolhidos para viverem. Inicialmente, bem próxima ao mar e ao rio Aracati-mirim, uma capela de taipa e coberta de palha foram erguidas para que fosse colocado início às atividades de educação religiosa. No início do século XVIII, nos anos de 1712 a 1758, no mesmo local da igreja provisória, houve a construção da igreja já em alvenaria com uma mescla de técnicas eruditas e populares. A presença da igreja no centro mostra como o distrito de Almofala cresceu ao seu redor (IPHAN, 2013). Em 1897, uma duna começou a se deslocar e foi engolindo a igreja e o aldeamento, inclusive as terras dos tremembés. A igreja ficou soterrada até 1943, quando a duna começou a se mover e a população local começou a voltar e desenterrar a igreja.

Nas palavras do Drummond, em 1946:

“Diante de algumas fotografias pertencentes ao arquivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, assalta-me o desejo de convocar os poetas, os sociólogos, os pintores, os romancistas e os músicos do Brasil e pedir-lhes que vejam, mas vejam longamente a igreja de Almofala.

Almofala, como Tróia, não é:foi. Foi um aldeamento de índios tremembés, a mais de cem quilômetros a oeste de Fortaleza. Em 1608 estabeleciam-se os jesuítas nas praias cearenses, começando a catequizar os silvícolas chefiados por Juripariguaçu, ou seja, o grande Diabo. Esse nome talvez influísse na fama que vieram a ter os tremembés: índios feros e turbulentos, afirma Berredo; mas o padre Antonio Vieira e, modernamente, Paulino Nogueira consideram-nos pacíficos e morigerados. O certo é que foram atraídos, evangelizados, atacados, expoliados e exterminados, segundo a sorte habitual do nosso gentio, e como calhava nessa ou naquela conjuntura. Hoje restam poucos e melancólicos tremembés que como a maioria de seus irmãos brasileiros, de sangue puro ou mestiço, não tem terras. Nem igreja porque a deles, Nossa Senhora da Conceição de Almofala, a areia comeu.

(...) Aqui está uma fotografia da DPHAN: meia dúzia de ‘cabras’ a cavalo, dez ou doze mulheres de saia arrastando o chão, guarda-sóis abertos, em torno de um monte de areia que obstrui a entrada da igreja e lhe devorou parte dos fundos; por um óculo aberto sobre a porta principal, a fotografia é branca: o céu do Ceará, num dia remoto. Outra fotografia, esta de há poucos anos tirada por um representante da repartição, o pinto Rescala, mostra a fachada inteira, liberta do areial, e o mesmo óculo deixa passar o mesmo céu, prolongando a visão através de regiões desoladas. Os caboclos conseguiram, após  37 anos, remover a duna imensa, mas o templo está ermo e inútil, presidindo a solidão do lugar. E bem em frente da igreja, a uns trezentos metros (onde outrora foi uma colina) outras fotografias mostram o espantoso, o trágico cemitério, que se diria um desses quadro de Yves Tanguy onde estão dispersas formas incoerentes numa perspectiva rasa e infinita. Ou certas composições angustiosas dos surrealistas. Ou uma cidade que o terremoto varresse. Ou os vestígios, que não sabemos interpretar, de alguma civilização sepultada há muito tempo, e que antecipa em nós o frio de nossa própria destruição. Mas não estamos no Egito: estamos ali no Ceará, e em 1898 o padre Antonio Tomás, autor de um soneto bastante conhecido, celebrava a derradeira missa na igreja atacada pelo vento.

Ele nos conta o episódio. Saíra de Acaraú para salvar as imagens que cumpria remover com urgência: o morro de areia crescia atrás da igreja e várias casas tinham sido engulidas. Os moradores demoliam suas moradias e iam reedificá-las em paragens mais abrigadas. Rui o teto da capela. O padre resolve oficiar uma última vez, aproveitando a madrugada, que é quando o vento sopra mais brando. Reúne toda a população pobre da vila e dos arredores. Cerca de três mil pessoas, tomadas de assombro, penetram a custo na igreja ou enchem o adro. Padre Antonio Tomás, ao Evangelho, explica ao povo que é preciso levar as imagens até a capela do Tanque do Meio a dez quilômetros de Almofala: a igreja está perdida. Vamos em procissão, diz ele. E continua a missa, mas ninguém a ouve. Os fiéis voltam-se para as imagens de que irão ficar privados, e um côro de gemidos, de suspiros, de soluços cobre a voz do padre. As mulheres entoam um bendito a Senhora da Conceição, em quadras improvisadas e os homens, batendo no peito, secundam. O eco vai perder-se ao mato longe.

A situação torna-se grave quando chega a notícia de que, por trás do morro de areia, uns ‘cabras’ armados se dispõem a obstar a retirada das imagens. O padre manda chamar os chefes do movimento, explica-lhes com doçura que ou as imagens são removidas ou tudo afunda na areia; eles continuam obstinados. Nisso Joana Camelo, uma mulher do povo, arrebata a imagem de Nossa Senhora do Rosário e saiu triunfante com ela. Padre Tomás grita aos mais próximos que a detenham. Ninguém o ouve. Então o padre corre no encalço da fugitiva, lutam os dois, toma-lhe das mãos a imagem. Os chefes da insurreição procuram defender Joana, dois homens ajudam o vigário, estabelece-se a confusão; ‘fechou-se o tempo’, escreve o padre Tomás; e triunfou o partido deste, depois de muita cabeça quebrada. O padre manda o subdelegado soltar os presos, como convêm, e todos arrependidos e confortados, iniciam a marcha para o Tanque do Meio, onde o vento não castigará mais os santos.

E a igreja desapareceu na areia, como desapareceram as casas, o cajueiral, a aldeia inteira dos tremembés. De 1905 é a sede do novo distrito, com duas casinhas para começar Itarena. Almofala ficou sendo uma lembrança.”

O livro Oração para Desaparecer é dividido em 3 partes. Na primeira delas, ‘Você trouxe todas as palavras’, uma jovem mulher narra, em primeira pessoa, como apareceu e foi resgatada por um casal de idosos em uma aldeia portuguesa chamada Almofala, perto de Caldas de Rainha. Chamada pelo casal e seus parentes de ‘ressurrecta’, saiu do buraco sem memória, sem cabelo, pelada, vendo pessoas mortas e falando português do Brasil. Está contando os fatos de alguns meses antes a um homem, Félix Ventura, vendedor de passados, para que ele crie documentos e invente uma história de vida evidenciada, já que ela nunca se lembrou de seu passado. Cida, o nome com que foi batizada por sua família portuguesa, precisa  de um passado produzido para poder viver seu futuro em Moçambique com Jorge Momade,  por quem se apaixonou. Anos depois, ao encontrar uma imagem quebrada de Nossa Senhora da Conceição na casa da família que a abrigara, ela tem um sonho e se lembra de onde veio e seu nome verdadeiro: Joana, de Almofala.

“ A vida é feita de palavras, elas explicam e fazem nascer e morrer. Se ninguém pronucia  um nome este ser está morto, mesmo que respire e leve um coração batendo no peito. Estar vivo é ser palavra na boca de alguém. Não lembrar delas me condenou ao abismo, não saber o nome das pessoas, do meu lugar, a narrativa da minha vida, tudo o que somos é história e história se conta com palavras. Por isso, bastou um bilhete. Lembrei-me da missa: “Mas dizei uma só palavra e serei salvo.” Fui salva por apenas duas, o nome da cidade de onde vim e meu nome.” (p.111)

Na parte dois, “Os ossos dela não estão lá”, quem narra é o biólogo Miguel, contando a Jorge sua história em Almofala, Ceará, sua pesquisa com cavalos marinhos, seu contato com os tremembés e seu sofrimento de 49 anos sem saber o que foi feito da mulher que amava, Joana Camelo. Que desapareceu na areia da igreja soterrada.

Na parte três, “A língua de fogo avisou”, é novamente Joana que  narra, em primeira pessoa, sua volta à Almofala brasileira e a sua família  tremembés, que a acolheram quando foi abandonada pela mãe na igreja de Almofala. Traz a santa quebrada de volta aos seus donos, reencontra Miguel e suas memórias.

“Só posso fazer uma coisa agora: renascer mais uma vez. Não vou parar de renascer nunca e acho que é assim com todos nós.”

O romance é bastante envolvente, com texto limpo, fluente e com boas frases e citações. A autora homenageia a língua portuguesa, que é fio conector de todos os personagens. Faz homenagens também a outros autores, como ao José Eduardo Agualusa, emprestando seu personagem do “Vendedor de Passados”, o angolano Félix Ventura. E também ao José Saramago, com a menção ao Livro dos Itinerários e à epígrafe do último livro do autor,  ‘A Viagem do Elefante” (“Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”). Ainda, é clara a influência do realismo mágico sul-americano, como Garcia-Márquez, no tom do romance e escolhas do enredo.

No entanto, fiquei um pouco incomodada com alguns recursos narrativos que a autora empregou, que a meu ver, empobreceram um pouco o resultado. Gostei muito do início do livro, da descrição inicial do ‘parto’ da terra, da confusão mental e desespero de não se saber quem é, porque está ali, o que aconteceu. Mas a entrada do personagem do Félix Ventura já me causou estranheza. Qual o sentido daquele personagem? Mesmo Jorge e Miguel me pareceram acessórios à trama, o livro poderia ter sido construído sem a presença deles.  Também não convence, mesmo dentro de uma história de realismo anímico, o gap de 49 anos, que para Joana foram sete. Ela teria ficado 42 anos com a vida suspensa, antes de aparecer na outra Almofala? A diferença da passagem do tempo de foram diferente da realidade pareceu apenas um artifício para que ela não pudesse resgatar a relação amorosa com Miguel.  O resgate da história da igreja de Almofala e da religiosidade dos tremembés me pareceu a verdadeira riqueza do livro.