Por: Carlos Guido S Azevedo
A Autora
Micheliny Verunschk (Recife - PE, 1972) é uma escritora e
historiadora brasileira. Em 2004 foi indicada ao Prêmio Portugal Telecom de
Literatura, com o livro de poesia Geografia íntima do deserto, sendo a única
mulher estreante e, também, a mais jovem a ficar entre os dez finalistas. Com o
romance Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida venceu o Prêmio São
Paulo de Literatura, de 2015, na categoria de melhor romance escrito por autor
estreante no gênero acima de 40 anos. É autora também de O observador e O nada
(2003, poemas), A cartografia da noite (2010, poemas), B de Bruxa: Bonnus
bonnificarum (2014, poemas), Aqui no coração do inferno (2016, romance), O peso
do coração de um homem (2017, romance), Maravilhas banais (2017, poemas). Tem
trabalhos publicados na França, Portugal, Espanha, Canadá e Estados Unidos.
(Internet apresentação).
Seu livro mais recente é esse
romance: O som do rugido da onça, lançado em 2021 e vencedor do Prêmio Jabuti e
do Prêmio Oceanos no ano seguinte.
No meu entender Micheliny além de
ser mulher pernambucana, toma as lições das mulheres de Tejucupaco - PE que
ajudaram os brasileiros a expulsar os holandeses com uma guerra inusitada de
abóboras quentes e água fervente com pimenta, nas estreitas ruas do distrito de
e Tejucupapo, atual Goiania. Onde hoje opera a fábrica de automóveis Jeep.
A batalha de Tejucupapo, ou
batalha do Monte das Trincheiras, em 24 de abril de 1646 se deu no contexto da
segunda das Invasões holandesas do Brasil, graças ao empenho das mulheres da
povoação cerca de 600 holandeses foram derrotados e bateram em retirada. Nesta
que é considerada a primeira batalha em território brasileiro.
Essa é apenas um a introdução para ilustrar o sentimento de coragem
para a luta de Micheliny.
O Livro
Conta história de uma menina
indígena da tribo miranha que é levada para a Baviera por dois cientistas
alemães que vieram explorar e conhecer a flora e a fauna brasileira. Eram o Zoológo Johann Baptist Spix e o botânico Carl Friedrich Phillipp Martius
que vieram inspirados pelas viagens, no início do século, de Humboldt pela América do Sul, que gozava de amplo prestígio
no meio intelectual da época.
Martius, ficou mais conhecido porque
descreveu suas aventuras num livro Relato de Viagens ao Brasil – Expedição do
botânico alemão Martius 1817 - 1820, fazendo um inventário da natureza do
Brasil. Eles dividiram o território do Brasil em cinco biomas que usamos até
hoje (cerrado, caatinga, Mata Atlântica, Floresta Amazônica e Pampa).
O sequestro dos índios realmente
aconteceu e era comum que barcos europeus levassem muitos índios para
aculturação, comércio humano ou exibições públicas, desde Cabral, pouco contada
na história oficial, sempre que aportava uma nau em margens brasileiras, logo
apareciam tribos para oferecerem seus inimigos e até seus parentes, em troca de
bens de interesses.
A segunda parte do livro
incorpora o álter ego da escritora na personagem Josefa que a partir do
conhecimento das fotos dos dois índios levados para a Baviera e retratados por
artistas, esculpidos em bronze e enterrados em cemitério real, com a presença
da rainha, foi disseminado no mundo e estava disponível na exposição que
surpreende Josefa.
Trazendo para a amarga realidade
atual, a violência contra os índios e nossos problemas sociais. Eles são
introduzidos por um discurso de defesa das terras indígenas na época da
construção da barragem Belo Monte, do cacique Raoní Metuktire, muito conhecido
no mundo por sua luta em defesa dos povos originários e que atraiu a ira de bruto
governante do passado que chegou a mencioná-lo em discurso na ONU que: “A era
do Raoní, teria ficado para trás”.
A terceira parte do livro é de
muito bom gosto e descreve a vivência da autora no meio dos povos originários,
tentando compreender seus mundos e costumes, chegando a participar de
celebrações e experiências transcendentais que muito a influenciou na descrição
dos sentimentos e pensamentos da Iñe-e.
A quarta parte do livro tem como
fonte suas pesquisas na Alemanha sobre a vida da época dos acontecimentos, o
próprio livro do cientista Marcus e os registros cartoriais da época.
Parte considerável do romance é a
narrativa da história do ponto de vista de Iñe-e, a índia que que foi levada
pelos cientistas, juntamente com uma dezena de outras crianças e adultos e
documentados no livro de Martius. A autora, meio que ignora os demais
transpostos, para buscar na voz de Iñe-e uma forma de desacreditar os
cientistas, ou pelo menos tirar-lhes a pecha de heróis.
Frustrando minhas expectativas, Iñe-e
acabou sendo descrita como uma menina muito xucra, sem interação com a
realidade e com as pessoas, sem empatia, triste e apática, ao contrário do seu
companheiro e antigo inimigo o menino Juri, que conseguiu até se divertir e
interagir com os brancos, evidentemente dentro dos seus conceitos, muito embora
todos estivessem condenados à morte rápida pela ausência de defesa e
inabilidade corpórea para a convivência em ambiente tão contaminado como o das
cidades.
A construção do personagem onça e
sua formação no imaginário das tribos e na representação na vingadora, capaz de
proteger a quem consegue incorporá-la e obedecer a seus chamados, foi muito
criativa e, sem dúvida, é a parte do livro, mais bem fundamentada em pesquisas
literárias e de campo, sob exploração do imaginário do povo miranha e de outros
povos originários, além de ter sido escrito em uma prosa Roseana de muito bom
gosto.
O texto deixa pouco claro que os
miranha eram uma tribo de guerreiros que consideravam inimigos todos aqueles
que não falassem a língua Bora. Se eles não entendessem ou não fossem
entendidos era sinal de inimigo a ser capturado para ser vendido como escravo
ou se fosse um guerreiro famoso de outra tribo seria morto e devorado em um
ritual antropofágico, de muito significado para eles, que assim conseguiriam
assimilar qualidades desse herói e conviveriam com seu espírito daí em
diante.
De livros didáticos na Internet:
“Os miranha eram considerados brutos, antropófagos e seus chefes costumavam
vender seus prisioneiros e seus inimigos como escravos e até mesmo os seus
parentes”. “Os miranha em 2014 eram 21.459 no Amazonas e 445 na Colômbia, na
época do ocorrido, não se tem estatística de quantidade, mas deveriam ser
muitos e fortes na região. Tiveram suas terras demarcadas no século XX em 1929
TI Méria (Médio Solimões); em 1991 a Ti Miratu no município de Urini; 1998 Ti
Cuiú-Cuiú no município de Maraã,
homologada em 2003.”
Noutra frente, o livro é um
libelo muito interessante de reforço dos valores morais, sociais e religiosos
atuais com incorporação de todas as lutas baseadas no conceito atual do “politicamente
correto”, forma de pensar que abandona toda e qualquer contextualização das
eras passadas e de seus conhecimentos, costumes e valores, para fazer uma
análise de qualquer ação do passado sob os valores atuais e assim, exercer um
julgamento do passado segundo os padrões atuais, condenando e execrando todas
as justificativas, não científicas ou não igualitárias contemporâneas.
A arquitetura
A estrutura arquitetônica do livro
de Micheliny é explicada por ela como semelhante à construção de uma oca
indígena: Primeiro se fincam as troncas ou estroncas que segurarão o teto,
depois as varas que seguram as paredes e só então se trabalha galhos e folhas
que irão ser entrelaçadas para construírem paredes e teto.
Seu primeiro lance é a
apresentação da cosmovisão dos índios miranha. Na verdade, o alicerce da Oca
imaginária, porque sem esse contexto muitas partes da história não fariam
sentido.
“Quando Niimúe criou o mundo....o mundo é esse
gigante que mal distinguimos se estamos distraídos...” na verdade é um mundo em
constante peleja e se auto devorando. Mas, principalmente devorando aqueles que
não lhe ouvem e o destroem etc.
A segunda estaca é a apresentação
de Iñe-e no navio com todas as novidades do mar e da própria embarcação
atulhada de espécies de animais, vegetais e gente... já com o ponto de vista de
Iñe-e e começando a dar vida a sua personagem com uma versão descolonizadora,
apresentando o sentimento e a visão do mundo dos espíritos, na crença indígena, que
os cientistas tiravam seus espíritos quando os pintavam e fotografavam, tanto
das pessoas como dos animais e plantas e avança na percepção de que os animais
mumificados continuavam vivos só que congelados e para sempre em alerta
permanente.
A surpresa desse lance é a
entrega de que essa é a estória da morte de Iñe-e e de como ela perdeu seu nome,
sua casa e sua voz. A voz é colocada como a identidade de todo ser, animado ou
inanimado, “quando se perde a voz, se perde a vida”, fazendo jus à cosmovisão
maranha.
Em seguida, a autora, se coloca
no texto como a personagem Josefa que emprestará a Iñe-e a sua voz e sua língua
e mesmo as letras arrumadas como “colar de formigas no chão”.
Descreve muito poeticamente o
nascimento de Iñe-e e seu irmão gêmeo, seu crescimento no meio da comunidade, seu
desaparecimento temporário quando criança e seu encontro com uma onça que não
lhe feriu, fato que gerou desconfiança do seu pai de que ela seria uma inimiga
por ter convivido pacificamente com o animal mais perigoso e inimigo de todos.
O Trançado
Deste ponto em diante começa a
fazer o trançado já falado dos galhos e das árvores para a construção da oca,
ou seja, do texto.
Conta a chegada dos cientistas na
tribo, já acompanhado de índios de outras tribos trazendo missangas, chitas e
metais que agradavam aos chefes e foram recebidos com muita alegria e
reconhecimento e são alimentados e tratados em suas feridas pelas mulheres,
fazendo um dia de festa, danças e interessados em fazerem negócios lucrativos.
O pai de Iñe-e se embrenha na
mata para buscar escravos para o homem e na volta trouxe alguns poucos homens,
muitas mulheres e várias crianças.
Antes era costume que seu povo
trocasse com os brancos apenas os inimigos e os órfãos dos inimigos por
mercadorias variadas e ferramentas de trabalho.
Mas o pai de Iñe-e já estava se aculturando usando roupa comprida o
tempo todo e até dizia palavras da língua dos brancos e exigia ser chamado de
João Manoel, porque fora batizado em uma de suas viagens.
São muitos os momentos poéticos
de sua descrição: (22) “Uma manhã em que o sol se levanta do mesmo jeito que
sempre se levanta, e em que a mata fala sua língua de mesmo modo com que sempre
falava nada denunciava o que estava para acontecer”. Este fez parte da introdução do momento
chave do livro, aquele em que o pai de Iñe-e a dá de presente ao estrangeiro
Martius como agradecimento pelo acordo sobre a venda das sete crianças
inimigas.
Aí a história toma outro rumo.
Josefa o álter ego da escritora que já havia se identificado com um desenho da
índia Iñe-e numa exposição, vê Raoni com um sêr quase mítico, o que desperta
nela uma estranheza em relação à sua pessoa, ao mundo em que vive como se
tivesse uma ligação umbilical como aquela gente ou um sentimento de busca
pessoal por esse mundo da inocência perdida que precisaria ser resgatada para
voltar à sua inteireza no mundo.
Vai em busca do resgate da
história de Iñe-e e assume a missão de
reescrever a história retirando daqueles cientistas a imagem de bons e
competentes, porque na avaliação contemporânea de Josefa, Homens bons não
sequestram crianças.
Josefa busca no Google retratos
da menina e começa a se identificar com ela, “se sua tia pudesse em algum
momento representar a menina que ela fora, seria algo muito diferente daquele
retrato xambouqueiro da menina do povo miranha?... Ela olha a menina e é seu
próprio rosto que vê”.
Foi a Munique em busca de
elementos para sua história e recebe a informação do assassinato de Mariele
Franco, mais uma vez a história adquire novo colorido, mais atual e integrado à
luta social no Brasil e no mundo, que parece só continuar a luta antiga por um
reconhecimento mútuo da diversidade entre os homens.
Seguem-se as aventuras de Iñe-e
junto com os cientistas, a entrega dos outros índios a pessoas de confiança de
Marcus, a entrega de Iñe-e à rainha e a surpresa e tentativa de diálogo e seus
usos como brinquedos das filhas da rainha.
A morte do menino Juri é
detalhada e sua consternação é geral. Ele respondera com valentia tudo o que
passou, conseguindo alguma interação com as crianças e os adultos, até se
divertindo com os costumes estranhos dos brancos, mas poucos meses depois não
resiste à doença do inverno europeu e falece com problemas pulmonares.
É assistido com a medicina da
época, mas não tem sucesso, seu enterro é, de certa forma, solene com a
presença da Rainha. Que manda fazer um busto para lhe identificar o túmulo.
Esquecendo, acho propositalmente,
a visão ou cosmovisão da época do colonizador, mesmo a sua necessidade de
compreensão do mundo e de pesquisa científica. Afirma, sem rodeios, que tudo
começou com Iñe-e. Ou seja, é esse ponto de vista que você vai ler aqui, não se
aflija, sou Iñe-e e o resto não vai me interessar. (gostei da franqueza, embora
subtendida).
A estratégia clara, típica do
movimento “politicamente correto” e, garantia de sucesso dos romances atuais, é
aplicado sem dúvida pela autora, trata-se de recolocar no contexto atual aquela
visão opressora do modelo colonial e fazer um julgamento com os valores
atualmente em voga de modo a gerar um sentimento de repulsa e indignação para
os cientistas, a ciência e a ação exploradora e espoliadora dos colonizadores,
mesmo que sejam cientistas ou estudiosos bem intencionados, não importa, são os
pecados de gerações como a escravidão e a exploração do ser humano em qualquer
circunstância. O fato de serem cientistas, só serve como agravante por terem
sequestrado crianças e considerando os índios como espécies de estudos como as
plantas e animais tirados da terra.
Acredito, que a autora tinha material
para realizar um livro épico e magistral, contando uma história interessante,
abordada do ponto de vista do silvícola, o que é raro na história moderna,
desde a fase da literatura de José de Alencar, Gonçalves Dias, Gonçalves
Magalhães com seu I-Juca Pirama.
Mas, foram frustradas minha expectativa,
porque seria de grande interesse uma análise do choque de concepção do mundo
dos nativos dom a dos cientistas. Contrapondo duas visões de mundo de modo mais
equilibrado e consentâneo com o conhecimento de hoje sobre as duas
civilizações.
Minha surpresa foi por esperar um
livro épico que contava a história de um sequestro de indígenas pelos
colonizadores, muito comum na época da colonização ou até da pré-colonização,
para uso como estudo científico e demonstração de sucesso das suas viagens ao
Brasil.
Encontrei um libelo libertário,
feminista e datado, feito dentro da medida e do diapasão da literatura engajada
da atualidade com lapsos de temporalidade e sentido, com pouco amálgama de
integração entre as duas personagens centrais da trama, Iñe-e e Josefa o álter ego
da escritora.
Sem dúvida, duas mulheres tão
potentes poderiam ter sido mais exploradas no sentido próprio da exploração dos
sentimentos e do crescimento do autoconhecimento.
Da Iñe-e procurei conhecer seus
pensamentos próprios, suas surpresas, resignações ou mesmo um tipo qualquer de
integração, mas Iñe-e é quase morta. Calada e assustada o tempo todo. O seu
companheiro o menino Jari ainda consegue acusar a estranheza diante dos
comportamentos do homem branco, mas Iñe-e é muito opaca.
A saída foi típica de Guimarães Rosa,
a realidade fantástica, transformá-la em onça e conversar com o rio. A onça é a dona da história, foi um achado
muito bom a de lhe colocar como uma onça, só que não conseguiu lhe dar as suas
propriedades.
Mulher onça pega bem e é admirada
em sua fortaleza, mesmo que seja derrotada pelas doenças e fragilidades, mas
exala algumas características da onça. São onças de Guimarães Rosa, as onças de
Ariano, as jaguatiricas, uruajura, tapiraí-auára, tem maria-maria, estão todas
lá, no baile das onças.
Experiência transcendental com
Ayuasca e muitas histórias da tradição de diferentes tribos, com muita pesquisa
e informações, ajudaram a fazer a obra significativa.
Afinal o Som do Rugido da Onça é
ouvido por ela na parte final do livro quando se ouve o respirar cansado de
Martius com dor na consciência por ter degredado Iñe-e de sua linda terra natal
e ter prestado serviços tão relevantes para a ciência e para o Brasil, a ponto
de ter como inscrição em sua lápide “Entre as palmeiras me sinto sempre jovem.
No meio delas ressuscito”, mas para isso ele teria que ser onça ...findo
estava, caça que era”.
Apreciei imensamente, com as
devidas observações.
Indico e aconselho, sem
restrições.