segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Gente Pobre



            Autor: Fiódor Dostoiévski

                                                                                                       Resenha por Maria Albeti

            DOSTOIÉVKI, Fiódor M. Gente Pobre. Tradução: Fátima Bianchi. São Paulo: Editora 34,                     2009.

Gente Pobre, primeiro romance de Fiódor Dostoiévski, foi publicado em 1946, quando o autor tinha apenas 25 anos. Dostoiévski surpreendeu os críticos e o público ao retratar a verdadeira face da sociedade, usando a linguagem coloquial, usada pelas pessoas pobres, o que contrariava a tendência vigente de usar o vocabulário culto.  Este livro é o começo de uma produção literária extensa, que retrata a Rússia imperial, extremamente moral, religiosa, czarista e aristocrática. 

Em Gente Pobre, Dostoiévski adota o gênero epistolar, comum nos romances do século XVIII. Cartas trocadas entre os principais personagens, Makar Alieksiêievitch Diévuchkin e Varvara Alieksiêievna Dobrosiólova, mostram acontecimentos passados e os fatos do cotidiano dos protagonistas, bem como seus pensamentos, suas angústias, pequenas alegrias e desejos mais simples, da forma como compreendem e se expressam. O livro apresenta a miséria das pessoas pobres situadas na camada social mais baixa, os diversos tipos de opressão a que são submetidos, mas, também, destaca o valor da dignidade como um bem maior a ser preservado.

Makar é um conselheiro, de 47 anos, que ocupa um modesto cargo de copista, um dos cargos mais inferiores do serviço público, em uma repartição de São Petersburgo. Recebe um salário que mal lhe permite pagar o aluguel de um quarto. Apesar das péssimas condições do seu alojamento, sente-se feliz por conseguir acompanhar o dia a dia de Varvara, a quem ele dedica verdadeira adoração. Nas primeiras cartas, Makar Alieksiêievitch procura atenuar sua pobreza que, no entanto, é evidente, e gasta todas suas pequenas economias para agradar sua protegida, sendo necessário pegar adiantamento de salário. 

A angústia de Makar aumenta a cada dia, crescem o desprezo e a chacota por parte dos colegas de trabalho e, além disso, precisa conseguir um empréstimo com urgência para pagar suas contas. Tenta conseguir dinheiro com alguns agiotas, mas é recebido com desdém, comportamento em que está subentendida uma crítica ao capitalismo que começa a avançar na Rússia. Essa crítica, também, aparece na frase “A mais importante virtude cívica é saber fazer dinheiro! (p. 68), dita por um colega de repartição (Evstáfi Ivánovitch), mas que Makar entende ser uma brincadeira. Finalmente, por cometer um erro na cópia de um documento, o copista é levado à presença do chefe maior (Sua Excelência), que se compadece de sua aparência e lhe presenteia com cem rublos, quantia suficiente para ele resolver seus problemas financeiros e ainda guardar um pouco para futuras necessidades. 

Varvara Alieksiêievna é uma jovem órfã, mora com sua senhoria e trabalha costurando roupas. Até os 12 anos viveu no campo, uma infância feliz com plena liberdade, interrompida quando seu pai foi demitido e a família se mudou para São Petersburgo. Colocada em um internato, não consegue se adaptar ao novo estilo de vida, além de sofrer maus tratos das outras internas e incompreensão dos professores.   Seu pai morre quando ela tinha 14 anos e a família fica na miséria, sendo acolhida por uma parente distante que as desprezam; sua mãe não resiste muito tempo e, também, morre. Varvara fica sozinha à mercê de Anna Fiódorovna que tem a intenção de negociá-la com o amigo rico – Bikov – com quem ela tem negócios obscuros. A narrativa desses acontecimentos, por meio de trechos do seu diário, é interrompida e vamos encontrá-la morando em um alojamento se correspondendo com Makar Alieksiêievitch, seu parente distante, que tenta protegê-la. 

Varvara encontra em Makar um protetor, com quem ela pode compartilhar detalhes de sua vida, fica contente com os pequenos presentes que recebe, mas se aflige quando percebe as dificuldades pelas quais ele está passando, chegando a lhe dar conselhos e, até mesmo, reclamar de alguns comportamentos dele diante do desespero. Makar, um homem de meia idade, totalmente devotado a Varvara, talvez um “amor platônico”, renuncia a qualquer coisa que lhe dê benefício próprio, para tentar agradá-la. Eles se encontram pouco, para evitar alguma maledicência, o que acaba acontecendo, mas se correspondem constantemente.

Makar está prestes a resolver sua situação financeira, tendo em vista o presente recebido de Sua Excelência, quando recebe uma carta de Varvara com a notícia de que vai aceitar o pedido de casamento do Sr. Bikov. Esse senhor, que a havia desonrado anteriormente, decide se casar com ela por saber do seu bom comportamento e porque precisa gerar um herdeiro legítimo para quem deixar sua fortuna. Ela aceita o casamento, mesmo sabendo que não será feliz, que viverá nas estepes entre pessoas estranhas e se afastará para sempre de seu único amigo.

De forma secundária, o livro relata a história do estudante Pokróvski e de Gorchkov. O primeiro é um estudante, pobre e doente, que não consegue assistir aula, tanto por causa da pobreza como pela saúde frágil. Em troca de alojamento e comida, na casa de Anna Fiódorovna, ele faz às vezes de preceptor de Varvara e sua prima Sacha. Seu pai, é um bêbado e esfarrapado, que de vez em quando vem visitá-lo. Porém, fica a dúvida se esse seria mesmo seu pai ou o rico latifundiário – Bikov - que generosamente deu um dote para sua mãe e arranjou o casamento com o funcionário Zahar Pietróvitch, que ocupava o pior cargo no serviço público. Varvara apaixona-se pelo estudante e parece ser correspondida, mas ele não consegue sobreviver.

O segundo é um coinquilino de Diévuchkin, funcionário público, que cai em desgraça, devido a denúncias falsas de mau comportamento. Há sete anos afastado das funções enquanto o caso é analisado, o ex-funcionário vive num estado de extrema penúria capaz de impactar o próprio Diévuchkin. Por meio desse personagem, Dostoiévski descreve a situação de total indigência em que o Estado coloca o indivíduo, por conta de entraves burocráticos e legais que se arrastam por anos a fio. O autor mostra, também, como a condição social pode determinar o juízo que indivíduo faz de si mesmo. Embrutecido pela miséria, é incapaz de demonstrar sofrimento ou alegria: a mãe não consegue chorar diante do filho morto, as crianças não têm expressão, não brincam, não se divertem.  A situação de Gorchkov finalmente se resolve de forma positiva e ele recebe uma indenização considerável, além de reabilitar sua honra, para ele o mais importante. Ironicamente, logo após ser reabilitado ele morre, como se estivesse esperando morrer em paz, deixando a família com o nome limpo e algum dinheiro para suas necessidades.

Gente Pobre expõe como os miseráveis vivem em uma cidade grande e como tentam superar os obstáculos impostos pela sociedade. Retrata a luta do ser humano para preservar sua dignidade e aquilo que ele tem de único, mesmo na condição de miséria. Acrescenta um toque de carinho, o que representa um marco no romance social russo, ao apresentar o pobre sob uma nova perspectiva.  Makar admite que mais do que as necessidades materiais, o que mais lhe causa tristeza “[...] são essas zombarias, esses cochichos, esses risinhos todos que acabam comigo” (p. 122). Porém, o copista mesmo consciente da mediocridade de seu serviço, sempre defende com orgulho a utilidade e qualidade do seu trabalho. 

Em seu primeiro romance, Dostoiévski deixa clara a influência de Púchkin e Gógol. Em relação ao primeiro, faz referência ao conto O chefe da estação, que narra a vida interior de um funcionário pobre.  No caso de Gógol, ele traz o conto O capote, em que Akáki Akákievitch, também, sofre constantes zombarias no ambiente trabalho. Além disso, tal como Gógol, ele descreve o terror que os funcionários públicos sentem em frente às autoridades, ansiedade e tensão que chegam a dificultar o discernimento. Makar vive num estado permanente de apreensão em virtude da consciência da fragilidade de sua posição e do medo de maledicência; ele mesmo se classifica como um “homem sem importância”.  Essa autoavaliação fica evidente no episódio em que o botão do seu capote se desprende diante de Sua Excelência, gerando uma situação que chega a ser cômica.  O lado mais horrível da miséria não é o aspecto material, apesar de um par de botas em boas condições ser algo tão desejado, o pior é a desqualificação diante das pessoas e o tormento moral resultante. Tanto que sua reabilitação ocorre muito mais pela disposição de Sua Excelência em apertar sua mão “como se fosse a de um seu igual” (p. 147) do que pela ajuda em dinheiro. 

Dostoiévski utiliza a cidade e o mal-estar que ela exerce sobre as pessoas como fundamentais para o enredo e a psicologia dos personagens. Destaca, também, o ambiente de assédio que São Petersburgo representa para moças na situação de Varvara, que apesar de demonstrar certa altivez, acaba aceitando se casar com Bikov. No mundo retratado em Gente Pobre, força de vontade não é suficiente para vencer a ordem social e tipos como Bikov sempre saem vencedores. Outro destaque, neste livro é o sistema de saúde, os pobres ficam abandonados à própria sorte, adoecem, na maioria dos casos de tuberculose, e morrem sem qualquer assistência médica.  

 Os desfechos de todos os personagens são dolorosos, Pokróvski, (o estudante) cai doente, quando surge uma nova possibilidade de existência, com o amor de Varvara e a reabilitação do pai. Zakhar Pietróvitch (pai de Pokróvski) perde o filho, único alento, no momento que este o aceitara. É comovente a cena em que ele corre atrás do carro funerário que leva o corpo do filho.  Gorchkov morre no mesmo dia em que sua dignidade é restaurada e seus infortúnios podem acabar.   Diévuchkin não consegue evitar o casamento de Varvara, mesmo tendo recebido 100 rublos e o aperto de mão que lhe restituiu o amor-próprio. Varvara não vislumbra qualquer alternativa a não ser o casamento com Bikov, sabendo que será maltratada e ficará sozinha.  É a queda final após o vislumbre de reabilitação. 

Gente Pobre sinaliza o grande escritor que Dostoiévski viria a ser, talvez o maior da Rússia e presença garantida entre os principais escritores do mundo. Além da quantidade de livros e contos que escreveu, destaca-se a qualidade desses trabalhos, com destaque para os clássicos: Humilhados e ofendidos; Crime e castigo; e Irmãos Karamazov. O legado deixado pelo escritor é atemporal, os problemas filosóficos que ele aborda continuam presentes entre as grandes questões humanas, bem como os aspectos psicológicos explorados na caracterização dos seus personagens continuam sendo, ainda, dilemas enfrentados pelo ser humano. 

No que se refere ao aspecto social, o livro escrito há quase dois séculos e ambientado em outra cultura, retrata situações que ainda persistem na atualidade, apenas com roupagens diferenciadas. Os aristocratas são substituídos pelos donos do capital, os miseráveis continuam existindo, principalmente, nas periferias das grandes cidades e/ou nas calçadas pelas quais transitamos; os “servos” estão representados pelos trabalhadores sem-terra, pelos sem-teto, muitos submetidos a condições similares à escravidão. 

A burocracia e a ineficiência do estado, principalmente no que se refere ao sistema judiciário que, mantém tratamento diferenciado entre classes políticas, econômicas e sociais. Em relação à saúde, as condições de atendimento variam entre quem pode pagar um tratamento sofisticado, quem tem plano de saúde e quem conta apenas com a assistência a assistência do estado. Enfim, as injustiças sociais, a terrível desigualmente econômica e a burocracia do estado sobre o cidadão continuam sendo problemas que precisam ser enfrentados para que possamos ter paz no século XXI. 

Cabe ressaltar que nesses 200 anos e dependendo da sociedade em perspectiva, houve evolução em muitos dos aspectos citados, porém a humanidade não pode esperar mais 200 anos para alcançar uma maior igualdade econômica, educacional, de saúde entre todos os estratos da sociedade e em todas as culturas. Por todas as suas características, pela atualidade dos temas tratados, Gente Pobre é um romance indicado para qualquer pessoa, em qualquer idade e importante para o início do conhecimento da grandiosa obra de Dostoiévski. 

Sobre o autor

Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski nasceu em Moscou, em 30 de outubro (ou 11 de novembro) de 1821, portanto seu bicentenário ocorreu em 2021. Faleceu em São Petersburgo, em 28 de janeiro de 1881, aos 59 anos. Em 1837, aos 15/16 anos, ficou órfão de mãe, quando foi enviado a São Petersburgo para estudar na escola de engenharia militar. Após o término de sua formação como engenheiro, Dostoiévski passou a trabalhar integralmente como escritor, produzindo romances, novelas, contos, memórias, escritos jornalísticos e escritos críticos.

Em 1839, seu pai foi assassinado pelos colonos da fazenda onde vivia, fato que abalou muito Dostoiévski e que pode ter gerado os primeiros ataques de epilepsia, doença que o acompanhou durante toda a vida. Aos 19 anos, em 1840, atinge o posto de suboficial, torna-se um leitor assíduo e participa ativamente da vida cultural de São Petersburgo. Em 1846, aos 25 anos, publica Gente Pobre, seu primeiro romance, recebido com entusiasmo pela crítica e pelo público. Em seguida publica O duplo e Noites brancas, que na época não obtiveram sucesso. Em 1849, envolve-se com grupos político-literários, simpatizantes do socialismo, que combatiam o regime do czar Nicolau I, motivo pelo qual foi preso e condenado à morte, pena que foi comutada para trabalhos forçados na Sibéria. Em 1854, Dostoiévski deixa a prisão na Sibéria e passa a cumprir pena como soldado em um batalhão na Sibéria, onde permaneceu até 1859.  

Durante o período de detenção, Dostoiévski viveu mudanças radicais religiosas, existenciais, morais e políticas. Abandonou o socialismo utópico, passou por uma posição de repulsa aos servos e chegou, finalmente, a uma situação de fé no cristianismo ortodoxo. Na maturidade, surgem as grandes obras: Crime e castigo, O idiota, Os demônios, O jogador e Eterno marido - considerado seu romance mais bem acabado; e Irmãos Karamazov, seu último trabalho e sua obra-prima, publicado em 1880, teve sucesso imediato. 

Nas suas obras, destaca o sentido do sofrimento e da culpa, o livre-arbítrio, o cristianismo, o racionalismo, o niilismo, a pobreza, a violência, o assassinato, o altruísmo. Além disso, analisa transtornos mentais, na maioria dos casos ligados à humilhação, ao isolamento, ao sadismo, ao masoquismo e ao suicídio. Pela descrição filosófica e psicológica profunda e atemporal dessas questões, seus escritos são considerados como romances filosóficos e psicológicos.

Dostoievski morre em 28 de janeiro de 1881, de uma hemorragia pulmonar. 

Obras do autor

Romances:

1846 - Gente Pobre; 1846 - O Duplo; 1848 - Noites Brancas; 1849 - Netochka Nezvanova; 1861 - Humilhados e Ofendidos; 1862 - Recordações da Casa dos Mortos; 1864 - Notas do Subterrâneo; 1866 - Crime e Castigo; 1867 - O Jogador; 1869 - O Idiota; 1870 - O Eterno Marido; 1872 - Os Demônios; 1875 - O Adolescente; e 1881 - Os Irmãos Karamazov 

Novelas e contos

1846 - Senhor Prokhartchin; 1847 - Romance em Nove Cartas; 1847 - A Senhoria; 1848 - Polzunkov; 1848 - Coração Fraco; 1848 - O Ladrão Honesto; 1848 - Uma Árvore de Natal e uma Boda; 1848 - A mulher alheia e o marido debaixo da cama; 1848 - Noites Brancas; 1849 - O Pequeno Herói; 1859 - O Sonho do Tio; 1859 -  Aldeia de Stiepantchikov e Seus Habitantes; 1862 - Uma História Desagradável; 1865 - O Crocodilo; 1873 - Bobok; 1876 - O Mujique Marei; 1876 - Uma Criatura Gentil; e 1877 - O Sonho de um Homem Ridículo 

Não ficção

1863 - Notas de Inverno sobre Impressões de Verão; e 1873–1878 - Diário de um Escritor 

Referências:

CASTALDI, João L. Xavier. Representações da miséria: a Gente Pobre de Dostoiévski e os Famintos de Luís Romano. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde-26052012-143210/publico/2011_JoaoLuizXavierCastaldi.pdf.

WIKIPÉDIA. Fiódor Dostoiévski. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Fi%C3%B3dor_Dostoi%C3%A9vski  

ACHADOS E LIDOS. Disponível em: http://www.achadoselidos.com.br/2017/11/15/resenha-gente-pobre/ 

2 comentários:

  1. Comentários de Carlos Guido sobre o livro “gente pobre” de Dostoiévski

    Gente Pobre de Fiódor Dostoiévski, escrito em 1845 e publicado no ano seguinte, foi sua estreia no mundo das letras. E apresentou credenciais e recursos literários que o tornaram um dos maiores da literatura mundial.
    Demonstrando uma engenharia de produção em diferentes estruturas de linguagem, com objetivos múltiplos e encerrando uma crítica social profunda, uma análise da literatura da época, com indicativos críticos de autores e estilos em uso.
    Formatado como romance epistolar, com trocas de cartas do senhor Makar Diévuchkin e a jovem Varvara Aliêksiêievna, que moram próximo em uma vila da cidade de São Petersburgo e configuram um amor platônico em função da pobreza de ambos. Em todos os diálogos ficam evidentes a opinião de um terceiro ausente, mas sempre nomeado e tido como observador crítico do comportamento e da situação de ambos.
    Ele, um funcionário público de baixa patente (“copista” de documentos), Makar Diévuchkin, me parece ter sido uma releitura do personagem (Acaqui Acaquivich) do Capote de Gogol pois, como ele, é um amanuense, vive de aluguel em lugar improvisado, sente-se invisível, veste-se “maltrapilho”, mas toma gosto pela escrita, que o redime e dá coragem de sonhar com uma solução amorosa com sua amada Varvara Aliêksiêievna, destinatária das cartas, trocas de livros e favores.
    Varvara, embora compartilhe com Makar uma relação de afeto e de exploração dos seus parcos recursos, analisam com frieza suas situações emocionais, de saúde e restrições sociais com privações materiais. Ao tempo em que externam na correspondência solidariedade, quase amor entre eles e empatia com o sofrimento dos outros companheiros de infortúnio, afinal “Gente Pobre”.
    A obra é estruturada de uma forma magnífica, traz referências e comentários sobre a literatura da época, em particular “O capote”, quando Makar sentindo-se extremamente ofendido com sua descrição por Gogol, afirma que tal autor poderia até ser preso por tornar tão indigno um funcionário público e uma pessoa tão boa como Acaqui Acaquivich.
    Como não poderia deixar de ser, tratando-se de Dostoiévski, as reflexões de seus personagens estão carregadas de observações e posições sobre a sociedade e o conjunto das relações humanas e explicita o mundo dos pobres que não conseguem se livrar de um terceiro ausente, mas, sempre presente nos pensamentos dos pobres, como um juiz permanentemente crítico e depreciativo. Makar reflete:
    “Gente pobre é caprichosa — e é assim por disposição da natureza. Mesmo antes eu o sentia, e agora comecei a sentir ainda mais. Ele, o homem pobre, é exigente; até para esse mundo de Deus ele tem outra maneira de olhar, olha de soslaio para cada transeunte, lança a seu redor um olhar confuso e fica atento a cada palavra que ouve — não é dele que estão falando ali, diz? O que estão comentando, como pode ser tão feioso? o que é que ele, precisamente, sente? e, por exemplo, como será ele desse ponto de vista, como será daquele ponto de vista? E todo mundo sabe, Várienka, que uma pessoa pobre é pior que um trapo e não é digna de nenhum respeito da parte de ninguém”.
    Desta forma, mesmo sem ser “brilhante em coisa alguma”, mesmo sem ter “polimento”, Makar sente-se um homem, por coração e sentimento de solidariedade, de compaixão e sobretudo por sua capacidade de se ver e aos outros com inteira clareza e até expressar com estilo, suas pobres vidas.
    Dostoiévski, segundo Maiakovski, fez mais pela revolução russa que Lenine. Ele mostrou a pobreza em sua realidade emocional e física mais profunda, superando a visão puramente econômica, ampliando seus efeitos psicológicos e levando sensibilidade a um problema que a sociedade tenta até hoje naturalizar e que só uma mudança revolucionária, poderia levar a cabo sua superação.
    Recomendo com louvor. Nota 10

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  2. GENTE POBRE de Dostoiévski por Virginia de Vasconcellos Jan/2022

    Cinco pontos que levam à reflexão:

    1º) Chama atenção que logo no seu primeiro romance, Dostoiévski já impõe um cunho sócio-político na sua mensagem. Ressoa a voz do Pobre, e o Pobre como gente boa e protagonista principal. A obra está inteiramente inserida no movimento da “ESCOLA NATURAL” (realismo de 1846) , que queria a manifestação do POVO russo, seguindo as tendências de Gógol e Tóstoi.
    Interessante notar que esse movimento também surgiu na música russa para concerto que, no período, passa a incorporar elementos sonoros do FOLCLORE, do CAMPO, ecoando o povo russo, num setor que antes era inteiramente dominado pela tradição da música européia pura.
    Aqui vale lembrar a atuação musical do chamado “Grupo dos Cinco”, que se sobressaiu na segunda metade do século XIX. São os compositores Mily Balakirev, Borodin, Cesar Cui, Modest Mussorgsky e Rimsky-Korsakov que influenciaram músicos posteriores famosos como Prokofiev, Stravinsky e Shostakovich.
    Esse quadro mostra, mais uma vez, que a arte, entre elas a Música, não acontece no vácuo cultural; ao contrário, tem uma conexão estreita com o contexto de cada época.
    2º) Segundo ponto a destacar é o cunho psicológico. Não atoa Dostoiévski é considerado, por muitos, como precursor da psicanálise. Nessa obra, seus personagens são complexos, “colocam o coração pelo avesso”, e “desnudam a alma” do pobre. O autor deixa manifesto o fluxo do inconsciente e apresenta as contradições de seres humanos bondosos mas, podendo ser ao mesmo tempo controversos e ou cruéis...
    Sabe-se que no decorrer de seus escritos, os personagens dostoievskianos vão se tornando cada vez mais enigmáticos e enredados, intrincados e tortuosos, até culminar nos conhecidos “Irmãos Karamazov”.
    3º) O terceiro ponto diz respeito a uma questão que também é notada noutras obras do autor: a conexão das tramas com a sua própria existência, sua biografia. De modo que vale a pena conhecer a sua história de vida para reconhecer os ingredientes pessoais inseridos no texto e nos personagens.
    4º) O quarto ponto a realçar é a valorização de objetos e situações que hoje em dia banalizamos tão completamente que até esquecemos porque existem:- é o caso de TER SAPATO, comprar uma BOTA (hoje o valorizado seria ter um bota de marca, um sapato Gucci ....)- ou TOMAR CHÁ – a importância social do chá (hoje seria comparado ao vinho caro, ao “Moet Chandon”, etc...) - ou COMER, TER COMIDA (hoje é valorizado um prato gourmet, para a diferenciação social).
    Enfim, o ter sapatos, roupas e comidas foi “naturalizado” de tal forma pelas classes médias que vale a pena voltar a perceber a função e o valor original, revisitar o valor básico desses objetos e ações, conforme descrito por Dostoiévski.
    5º) O quinto e último ponto a observar é relativo à estrutura do romance: a narrativa se desenrola por meio de cartas – ou seja, tem uma estrutura EPISTOLAR. Isso nos leva a refletir sobre como a tecnologia (que na comunicação vem da “caneta tinteiro” usada na escrita manual até a “internet” de hoje) influi no comportamento social, nas relações, no pensamento, no intercâmbio interpessoal de idéias e emoções.
    Cartas, segundo muitos que ainda escrevem ou escreveram a mão, facilitam a expressão espontânea de sentimentos:
    “Uma carta delicada e carinhosa jamais fica sem resposta. E acho ótimo escrever, colocar no papel com alma os nossos sinceros sentimentos, que hoje em dia se diz por telefone.” (Depoimento de M. Emilia Vasconcellos, D. Santinha, carta de 21/8/1990)
    “Engraçado, acho que, quando escrevemos pra alguém que a gente gosta e que não nos tolhe acabamos mandamos recados pra nós mesmos. Felizmente estou disposta a aceitá-los.” (Depoimento de Neiva Botinha, carta de 24/7/1993)
    Esses são apenas dois exemplos retirados de minha EPISTOTECA (neologismo para significar Conjunto de Epístolas), ou seja, uma enorme coleção de cartas manuscritas, representativas de épocas, acontecimentos e vidas.

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