terça-feira, 21 de setembro de 2021

A ILHA SOB O MAR

de Isabel Allende


por Lenita Turchi          

A autora nasceu no Peru em 1942, filha de diplomatas chilenos, morou quando criança na Bolívia e Líbano antes de retornar ao Chile em1958 onde viveu até o golpe militar de 1973. Deste período em diante exilou-se na Venezuela até 1988 quando passou a viver na California. Isabel Allende iniciou sua carreira como jornalista de revista feminina no Chile sendo conhecida pela sua irreverência e humor. Segundo a autora, numa reunião social foi felicitada por um político sobre seus artigos irônicos. Em seguida a mesma pessoa perguntou quando ela iria escrever algo sério ao que autora respondeu que gostaria de entrevistar uma mulher infiel. Logo após a jornalista teria recebido telefonema de uma das convidadas que sob anonimato concedeu a entrevista revelando as incongruências de uma sociedade arraigada aos valores tradicionais e que até recentemente não permitia o divórcio.  A entrevista foi motivo de escândalo no Chile no início da década de 1970 e lhe deu a “fama” de hippie e transgressora.

O primeiro romance  A Casa dos Espíritos,(1982)  deu-lhe reconhecimento e outra fama ou seja de uma das principais revelações da literatura latino-americana da década de 1980.  É autora de contos, peças teatrais, mas foi com romancista, cerca de  28 livros publicados[ii] que Isabel Allende consolidou carreira literária como expoente do realismo mágico latino americano.
Entre as suas obras mais conhecidas estão a Casa dos Espíritos (1982), De Amor e de Sombra (1983), Eva Luna (1987), O Plano Infinito (1991) Paula (1995), Afrodite (1998), Retrato em Sépia (2000), A cidade das Feras (2002), Inés de Minha Alma (2006), A ilha sob o mar (2009),Os Cadernos de Maia (2011), O Jogo de Ripper (2014),  Longa Pétala do Mar (2020), Mulheres de Minha Alma ( 2020) e Violeta ( 2021)
Em 2010 é reconhecida no Chile com a prêmio Nacional de Literatura do Chile, em 2012 recebe o Prêmio Hans Christian Andersen pela serie As Aventuras da Águia e do Jaguar.
Na maioria das suas obras, exceto em Paula onde escreve cartas para a filha em estado vegetativo, Isabel Allende explora com mestria a trilha do realismo mágico onde os protagonistas interagem com espíritos de ancestrais numa atmosfera marcada pelas crenças e valores presentes nas religiões de matrizes indígenas, africanas e católica.  A autora, se utiliza da estratégia bem sucedida de apresentar a história política social de um país ou de um momento através da estória de vida de uma família ou uma personagem central de determinado grupo. Nos romances de Isabel Allende, grosso modo estão presentes 3 dimensões que captam a mantem o leitor atendo.  Uma descrição bem feita da situação (casas e fazendas da américa latina, plantações do Caribe), e da estrutura social e política onde se desenvolve o romance.  Uma segunda dimensão, a busca por liberdade e justiça social, permeados pelos sentimentos de amor, erotismo, ódio e conflitos na construção dos personagens e da estória.  A terceira dimensão, não necessariamente em ordem cronológica presentes nas estórias e personagens de Isabel Allende é a incursão no mundo mágico onde os personagens interagem com espíritos e com divindades que os protegem ou ameaçam, como parte do cotidiano. O real e o imaginário se misturam dentro do fio condutor da maioria dos seus romances.
A Ilha sob o Mar  é desenvolvido como 2 atos ou cenários, Ilha de São Domingo atual Haiti, e Louisiana, contrapondo a escravidão nas colônias e os movimentos políticos como Revolução Francesa e Guerra de Independência Americana.

 Ato 1: 1770-1793

Somos levados a São Domingos (Haiti), em 1770 em pleno apogeu da cultura de cana, café e cacau, ilha considerada a pérola das Antilhas não só pela exuberância, mas principalmente por ser a mais próspera colônia francesa na América. Prosperidade construída por escravos trazidos da África e submetidos ao regime brutal de trabalho e condições de vida que se não os dizimava em poucos anos, os transformava em fugitivos alimentados pelo desejo de vingança e liberdade. De fato, o Haiti foi o primeiro país da Américas a abolir a escravidão em 1774, tornando se a primeira República livre de escravidão nas Américas.  Os muitos embates e lutas sangrentos dos escravos fugitivos que se organizaram nas montanhas em estratégias de guerrilha na conquista desta República, são bem apresentados no romance A Ilha sob o Mar.  A autora, assume aqui seu lado de jornalista e descreve com riqueza de detalhes não só o clima de opressão e terror gerados pelos grandes senhores das plantações assim como os levantes e a revolução dos escravos e os massacres que ocorrem neste processo.

O romance tem a perspectiva (PDV) da escrava Zarité (Tete), personagem central e da autora que assume o PDV dos outros personagens. Tete inicia a narrativa aos quarenta anos, 4 filhos e um neto e se considerando uma escrava guiada pela estrela da sorte pois conhece o prazer de ser uma mulher livre, o prazer de estar com o homem escolhido e prazer da música que a empodera quando dança. Porém antes de atingir este momento Tete, foi escrava, cuja mãe se suicidou ao chegar na ilha, e desde o nascimento sobrevive como escrava sendo cuidada pelo escravo Honoré, que a alimenta e ensina sobre o poder das “loas” dos ritmos e as danças. “O escravo que dança é livre.... enquanto dança”.   
Toulose Valmorain, da pequena nobreza francesa, chega a ilha aos vinte anos convocado pelo agente comercial para ver seu pai que estaria enfermo na propriedade, grande plantação canavieira que sustenta a família na França. Desembarcou na ilha vestindo a última moda da corte parisiense
punhos de renda, peruca cacheada e sapatos de salto alto....” Definia-se como homem de letras e pensava em se dedicar a ciência quando voltasse à França. Admirava os filósofos e enciclopedistas, que tanto impacto haviam causado na Europa, nas últimas décadas, e concordava com algumas de suas ideias liberais.” 

Valmorain, encontraria seu pai praticamente morto pelo avanço da sífilis e a propriedade arruinada o que o obrigou a buscar empréstimos para recuperar a plantação, dado que sem ela não teria nem a renda nem posição social quando voltasse.  Desde o início Valmorain não buscou relacionamento com os diversos segmentos sociais de origem europeia da Ilha, como uma forma de não se identificar com os “franceses transplantados das Antilhas eram brutamontes, o oposto da sociedade em que ele havia frequentado, em que se exaltavam as ideias, a ciência e as artes e onde ninguém falava de dinheiro e nem de escravosDa “idade da razão “em Paris passou a se afundar num mundo primitivo e violento em que os vivos e os mortos andavam de mãos dadas”.
A autora nos apresenta a partir desta visão a estrutura de classe e de raça onde no topo estavam os grandes senhores brancos, seguido pelos “petit blancs” de origem desconhecida, porém brancos em atividades de comercio, artesanias, marinheiros, militares e funcionários de baixo escalão. Mulatos livres ou affranchis, onde o percentual de sangue branco definia sua classificação na escala social. Neste grupo, existiam desde aqueles eram contrabandistas e estavam à frente dos negócios ilícitos como os que possuíam terras fortuna, terra e escravos tendo sido educado na França.  Na base da pirâmide estavam os escravos em número dez vezes maior que os brancos e affranchis juntos, mas “não significavam nada nem no censo populacional nem na consciência dos colonos”.
Neste universo das Antilhas as vidas de Tete e Valmorain se cruzam quando sua amante Violete, compra a pequena escrava e a treina para escrava pessoal da esposa Eugenia Garcia del Solar, irmã do socio e amigo cubano, de Valmorain.  A novela se desenvolve entre a vida na plantação, com personagens fortes como Tante Rose escrava com poderes de curar e proteger, um capataz temido e cruel, e as idas ao núcleo urbano da ilha para negócios e espetáculos de punição e exemplo de escravos que se revoltam.
Na casa grande, Tete cresce servindo a dona inicialmente e mais tarde Valmorian como escrava sexual, enquanto Eugenia enlouquece aos poucos.  O filho de Eugenia, Maurice, é desde início criado por Tete, que antes havia tb tido um filho do patrão que lhe foi tomado ao nascer e entregue ao casal Violete e Etinne Relais, sem que a mãe saiba o seu paradeiro. Após a morte de Eugenia, Tete continua servindo sexualmente o seu dono, cuidando de Maurice e se torna mãe de uma menina descrita como mulata de pele branca.  Estes são personagens centrais que continuam sua saga em New Orleans quando a plantação foi invadida e queimada assim como as outras da ilha e a Tete e os filhos e o senhor salvo por Gambo, vão para Le Cap e de lá assistem os horrores da guerra civil até conseguir chegar a Louisiana em 1793.
Nesta fuga a escrava Tete se vê dividida em deixar os filhos brancos que seriam chacinados ou seguir seu amor, o ex escravo fugitivo que retorna como guerreiro liderando revoltas contra os grandes senhores escravocratas, com a proteção dos “loas” invocados por Tante Rose. Por amor aos filhos, Maurice e Rosette, e com a promessa de ser alforriada pelo senhor, Tetê convence a Gambo a ajudá-los a fugir para Le Cap, de onde mais tarde seguiram para New Orleans.
Embora este seja o núcleo central da novela, onde as tramas amorosas e eróticas se desenvolvem, outros personagens dão tom mágico e estão presentes orientando o destino da ilha e de seus viventes. Vou chamar estes personagens de espíritos, representada por Tante Rose, a protetora dos escravos respeitada pelo seu conhecimento de ervas nativas e suas relações com o divino.
Eis o relato de Tete sobre início da guerra civil que aboliu a escravidão na Ilha.
 “Assim me contaram. Assim aconteceu em Bois de Cayman. É uma floresta imensa, um lugar de encruzilhadas e árvores sagradas onde se aloja Dambala em sua forma de serpente, loa das nascentes e dos rios, guardião da floresta. Em Bois de Cayman vivem os espíritos da natureza e os escravos mortos que não encontraram o caminho da Guiné. Milhares de rebeldes desceram das montanhas.Uma longa fileira de moças vestidas de branco, as hounsis, chegou escoltando Tante Rose para o asson da cerimônia. ... Os tambores em semi círculo chamavam tam tam tam. .. Os tambores aumentaram a intensidade, o ritmo se acelerou e a floresta inteira palpitava das raízes mais fundas até as estrelas mais remotas. Então Ogum desceu com o espírito da guerra, Ogum-Feraille, deus das armas, agressivo, irritado, perigoso, e Erzuli soltou Tante Rose, para dar passagem a Ogum que a montou.... Tinha vindo para entregar uma mensagem de guerra, justiça e sangue. Assim me contaram.”      

Outro espírito presente no romance através do imaginário dos escravos é Macandal, escravo trazido da Africa, muçulmano que sabia escrever em árabe, tinha conhecimentos de medicina e botânica, guerreiro e filho de rei que tinha o poder de se transformar em pássaro lagartixa, mosca e peixe. Liderou as primeiras revoltas, com estratégia de envenenamento de colonos brancos e seus animais e incêndio nas plantações. Quando preso foi sacrificado em praça pública num espetáculo que reuniu a população da ilha como exemplo. Na visão dos plantadores a morte de Macandal, queimado vivo era um espetáculo confirmando a capacidade de controle dos colonos brancos. Já para os escravos trazidos para assistir a tortura o que viam era um guerreiro forte que não se submeteu e que pairou acima da fogueira e voou como um pássaro antes de gritar: voltarei, voltarei. 


ATO 2
Louisiana: 1973-1810

“Do barco Nova Orleans surgiu como uma nova lua minguante flutuando no mar, branca e luminosa. Ao vê-la soube que não voltaria mais a Saint Domingues.”
A saga de Tete e sua “família” segue nos anos seguintes como escrava que cuida dos filhos, serve o patrão e administra a casa sem a liberdade prometida. Enquanto isso Rosette e Maurice estabelecem desde cedo uma cumplicidade e afeto que na adolescência vai se transformando em amor. Este será o casal principal desta segunda parte e em torno deles a autora desenvolve uma estória de amor e de superação de obstáculos. Valmorain se firma como grande proprietário escravocrata produtor de açúcar e se casa com Hortense da elite branca local. No casamento somos apresentados ao padre Antoine que aqui faz o papel de Tante Rose, protegendo os pobres e oprimidos e aceitando a existência e os ritos dos escravos africanos.
O casamento muda as relações internas da casa grande e Hortense assume o controle hostilizando Tete das mais diferentes formas, desde separação de Maurice e Rosette, o primeiro enviado para estudar em Boston e a segunda numa colégio de freiras interna, até ser enviada para cultivo da cana.  Tete sobrevive e, em 1800, com 30 anos, ganha a liberdade e o direito de ter de volta a filha, graças ao padre Antoine. Tete reencontra em Nova Orleans antigos conhecidos que haviam fugido de St Domingues como Dr Parmentier e sua família, Violette e o mordomo Zacharie, agora livre e dono de uma casa de jogo.  “Sou pobre, mas vivo como rico. Isso é mais sábio que ser rico e viver como pobre - e começou rir". Zacharie conquistou a mulata livre Zarite Sedella e a apoiou no reencontro com a filha e mais tarde quando Rosette se casa às escondidas com seu meio irmão Maurice. O desfecho desta relação foi a morte de Rosette, com o nascimento de um filho, que será o único herdeiro de Valmorain.
“Passaram-se 4 anos, estamos em 1810. Perdi o medo da liberdade, mesmo nunca tendo perdido o medo aos brancos. Já não choro por Rosette. Quase sempre estou contente”
Nesta segunda parte, Isabel Allende também se utiliza da estratégia de inserir as estórias dos personagens no contexto histórico e estrutura social do território onde a novela se desenvolve. É uma narrativa interessante, mas nesta segunda parte um pouco cansativa, talvez porque repetitiva neste e em outros romances da autora.
Se analisamos sob o ponto de vista da trama, vemos que os personagens são conectados por uma estória que prende o leitor. Os fios da trama são tecidos com cuidado de não deixar pontas soltas.  Já os personagens são bastante romantizados e a autora não se aprofunda nas múltiplas situações e emoções trazidas á tona no desenvolver das narrativas.  
É um estilo, que chamaria de epopeia épica com altas doses de realismo mágico ou vice versa que está presente nas diversas obras da autora.  Isabel Allende é uma escritora de sucesso, que sabe contar estórias e explora com maestria o realismo mágico, como vemos na sua intensa produção literária. Acredito que seja assessorada por uma excelente equipe de pesquisa nas narrativas históricas e políticas dos romances que escreve.

Se me fosse solicitada uma sugestão, para um leitor que não conhece a obra da autora, eu recomendaria "A Casa dos Espíritos".

* * *

 Obras da autora.

 Romances

·         1982 - La casa de los espíritus (A Casa dos Espíritos)

·         1983 - La logon Asulon (A Lagoa Azul)

·         1984 - De amor y de sombra (De amor e de sombra)

·         1987 - Eva Luna (Eva Luna)

·         1991 - El plan infinito (O plano infinito)

·         1995 - Paula (Cartas a Paula)

·         1998 - Afrodita (Afrodite)

·         1999 - Hija de la fortuna (Filha da fortuna)

·         2000 - Retrato en sepia (Retrato a sépia)

·         2002 - La ciudad de las bestias (A cidade das feras (Brasil), A cidade dos deuses selvagens (Portugal))

·         2003 - El reino del dragón de oro (O reino do dragão de ouro)

·         2004 - El bosque de los pigmeos (O bosque dos Pigmeus)

·         2005 - El Zorro (Zorro, começa a lenda)

·         2006 - Inés del alma mía (Inés da minha alma)

·         2007 - La suma de los días (A soma dos dias)

·         2009 - La isla bajo el mar (A ilha sob o mar)

·         2011 - El Cuaderno de Maya (O Caderno de Maya)

·         2014 - El Juego de Ripper (O Jogo de Ripper)

·         2015 - El amante japonés (O Amante Japonês)

·         2017 - Más allá del invierno (Para além do inverno)

·         2019 - Largo Pétalo de Mar (Longa Pétala do Mar)

·         2020 - Mujeres de Alma Mía" (As mulheres de minha alma)

·         2021 - Violeta

Memórias

·         2003 - Mi país inventado (O meu país inventado)

Contos

·         1984 - La gorda de porcelana

·         1989 - Cuentos de Eva Luna (Contos de Eva Luna)

Teatro

·         El embajador (representada no Chile em 1971)

·         La balada del medio pelo (1973)

·         Los siete espejos (1974)


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