Para a nossa Mônica, companheira de embriaguez literária.Sempre intensa e para sempre presente.
Cristóvão Tezza é um escritor
maduro. Nascido em 1952, catarinense de Lages, Tezza tornou-se escritor e
professor universitário em Curitiba. Seus primeiros livros, de contos e
romances foram publicados entre 1979 e 1981 e, a partir de 2009, com o sucesso
de “O Filho Eterno”, abandonou a carreira universitária para dedicar-se à
literatura. Vários de seus romances foram premiados e traduzidos para outras
línguas. Seu site (http://www.cristovaotezza.com.br)
merece ser visitado, traz críticas e resenhas sobre todas as suas obras.
Recomendo o podcast Cruzamentos
Literários, que tem um episódio com o autor, em que ele fala da evolução de seu
processo criativo, como trata os elementos autobiográficos e o papel do romance
como retrato do presente.
https://open.spotify.com/episode/2G6QqueXAblQZWQxtiSwkc?si=din4AVp6SmK4os-1Z7e0Gg
“O Professor” , lançado em 2014, é seu décimo quarto romance, finalista dos
prêmios Jabuti e São Paulo de literatura de 2015, e com traduções publicadas na
Itália (Fazi Editore), Finlândia (Aviador) e Noruega (Solum).
Uma síntese simplista e apressada do livro, como quem beberica, distraída, uma taça de vinho, poderia ser algo como ‘professor universitário aposentado passa a limpo sua vida ao se preparar para receber uma homenagem’. Seria o equivalente a descrever a Monalisa como ‘um quadro de uma moça que parece sorrir’. Não é o caso de visão apressada, a obra tem a complexidade de um bom vinho que repousou em carvalho (ou nas profundezas da alma) por longos anos, merece ser apreciado em todo o seu conjunto, aromas e sabores, forma e conteúdo, estratégias e recursos narrativos.
A sofisticação narrativa ao desenvolver um argumento aparentemente simples é prova de que se trata de um experiente tecelão de histórias, em total controle de seu texto. No percurso labiríntico da narrativa somos guiados por uma mão firme, um fio de Ariadne que nos permite ir catando as migalhas ambíguas da memória do personagem e montando o quebra-cabeça de seus 70 anos de existência.
O prazer da minha experiência de
leitura deu-se na interseção do que está sendo contado (os episódios da vida do
personagem no tempo, suas relações, seus sentimentos, a caracterização dos
demais personagens) com a forma como está sendo contado (o ponto de vista
único, mas nem sempre em primeira pessoa - o narrador se vê de fora e de
dentro, fala para dentro e para fora, incorpora a voz de outros personagens; embaralha vários pontos no tempo da memória,
o uso da ironia triste, por vezes auto-complacente, por vezes auto-depreciativa).
Fiquei com uma sensação de testemunho autêntico de outra consciência. Talvez
por ser tão fiel ao que acontece na nossa própria consciência. Também pelo fato
de ter vivido/testemunhado os fatos da realidade que servem de pano de fundo da
obra, me trouxe uma identificação afetiva-temporal interessante.
Em “O Professor”, acompanhamos o
fluxo de consciência de Heliseu, professor aposentado de filologia românica na
manhã de um dia de fevereiro de 2013 em que ele vai receber uma medalha de
mérito acadêmico por sua carreira universitária, desde o momento em que acorda de um pesadelo até o momento em que dá o nó da gravata para sair de casa
rumo ao evento.
O ácido e irônico monólogo
interno do Professor Heliseu se desenrola durante o café da manhã e enquanto
toma banho, olhando o seu corpo envelhecido. Conhecemos aos poucos, tudo junto
e misturado, cenas e personagens da vida desse homem: a mão protetora de sua
mãe em seus cabelos; os conselhos duros e as omissões de um pai que pode ter
empurrado sua mulher escada abaixo (será?); as investidas sexuais de um padre
no seminário; uma esposa prática de memória precisa para informações
irrelevantes e com uma amiga bastante íntima, que escorrega (será?) para morte
ao aguar suas plantas na varanda do apartamento em 1997; ‘o indecifrável busto
índio-negro-mulato-branco’ da sua empregada, que testemunha sua vida há 27
anos; os colegas de departamento que fofocam às suas costas enquanto bebem café
frio em copinhos de plástico; um filho distante e ressentido que vai adotar uma
filha com seu marido americano; uma aluna-amante que durou o tempo de uma dissertação
sobre o não-dito na língua portuguesa, mas que passados mais de 20 anos ainda
desperta tremores; o objetivo inspetor Maigret; os anseolíticos; os lábios
envelhecidos do inimigo que o abraça no pesadelo, talvez o seu próprio fantasma
de vergonhas e culpas.
Heliseu vai treinando mentalmente
seu discurso para o evento da homenagem, procurando um fio condutor coerente,
dirigindo-se à platéia imaginária como a pedir validação. Um homem tentando
conectar os pontos do passado para ver se eles revelam o sentido da vida.
“Voltemos ao
início de tudo, por favor. Era como se ele não conseguisse sair da cama sem
antes fechar, em definitivo, o – o sentido de sua vida, ele decidiu com
um sorriso, quase sem ironia, o indicador e o polegar traçando uma linha
horizontal imaginária no ar, o sentido da vida.”(p.19)
“Sim: estou
atrás do sentido da vida – cada pista, ou cada evidência, como diria o Inspetor
Maigret, é importante e pode deslindar o nó em que nos amarramos.” (p.55)
“Mas é preciso
organizar a memória ou jamais descobrirei o sentido da minha vida. O segredo
está em algum momento que ficou para trás – eu posso até baixar a voz neste
momento, como quem propõe um jogo divertido à platéia.” (p.89)
“Não. É retórica
barata demais. O sentido da vida estará em outra parte. Por exemplo: naquele
transtorno obsessivo-compulsivo que sofri esperando a quinta-feira só para
rever Therèze e tirar a limpo a ansiedade.” (p.102)
O dia-chave de seu destino, conclui,
foi o dia, em 1984, em que a esposa invade seu território, na universidade para
lhe falar que resolveu fazer aulas de inglês e ele sente um ciúme brutal. Logo em seguida, “como que numa organização ad hoc do destino, o encontro com
Therèze que, ela sim, me enloqueceu.” Começa aí a queda? A queda é uma
constante no texto: o sonho de criança, caindo de um desfiladeiro, a queda
fatal da mãe na escada, a queda da consoante intervocálica no século XI que nos
separou dos castelhanos, a queda de Mônica da varanda do apartamento.
A caracterização das personagens
é feita aos poucos, lembranças de aspectos específicos entremeadas com sentimentos
e eventos, bem compatível com o que fazemos mesmo dentro de nossas cabeças
quando pensamos em alguém.
p.31: “Uma
precisão inacreditável, que deixava tudo nítido, um filme em alta definição.
Blu-ray, como se diz hoje. Conversando com Mônica, senhores, você se sentia
seguro: a palavra é “nitidez”. Uma perpétua correlação da imagem, tempo e
linguagem, que emendava analogicamente o azulejo lascado do banheiro, flagrado
ao escovar os dentes, com o dia em que morreu Ayrton Senna, quando, é claro,
serviu-se macarrão com molho de carne (e não tinha mais parmesão, como disse a
Dona Diva, assomando à porta da sala). Ah, e naquele domingo você saiu para dar
uma caminhada. Lembra? Mônica era assim. E eu brincava com ela, uma piada que
só a alguém como eu ocorreria, como ela mesma disse: Mônica Mnemônica! E o que
ela extraía dessa espetacular capacidade recapitulativa da vida e do mundo?
Nada.”
... “a última
vez em que ela pronunciou o “Heli”, antes de aguar suas plantas, o tom era
rasgadamente irônico e as mãos estavam na cintura, aquele seu gesto vulgar e
estúpido que me dava uma irritação quase que demoníaca, e que ela repetia cada
vez com mais frequência, a bunda torta apoiada na perna esquerda, como o esboço
de um cartum mal desenhado.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário