terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Uma prosa poética em “O filho de mil homens", de Valter Hugo Mãe


Ilustração de Anna Cunha

Valter Hugo Mãe é o nome artístico do escritor português Valter Hugo Lemos (Vila Henrique de CarvalhoAngola25 de setembro de 1971). Além de escritor é editor, artista plástico, apresentador de televisão e cantor. Fonte Wikipedia.

No vídeo "Herdeiros de Saramago é possível conhecer um pouco mais sobre o autor, para além de seu talento literário.


https://www.rtp.pt/play/p7972/e505738/herdeiros-de-saramago



    O filho de mil homens se caracteriza por uma prosa poética, na qual o autor narra acontecimentos em uma pequena cidade por meio de personagens que tem suas histórias entrelaçadas.  Há uma atmosfera mágica em acontecimentos comezinhos, não que se proponha ao fantástico, mas sim pelo fato de tecer os fatos cotidianos com auxílio de imagens sinestésicas ou metafóricas, de modo que o romance passa a ter uma aura que ora distancia, ora aproxima do real. Esse efeito estético, consequência da prosa poética, acompanha todo o livro. 


    O “amor dos infelizes”, expressão cunhada pelo autor,  ou a busca pela aceitação é o tema central do livro. Essa é a propulsão de todos os personagens, sejam principais ou secundários. A manifestação primeira dessa proposta do autor se inicia pela busca do personagem Crisóstomo por um filho, motivado pela constatação de desproposito da existência sem o amor parental, o personagem sai em busca dessa possibilidade. Outros personagens também passam pela mesma jornada em busca de um amor possível, tais quais o avô de Camilo, Isaura e Antonino.


“Ser o que se pode é a felicidade. Não adianta sonhar com o que é feito apenas de fantasia e querer aspirar ao impossível. A felicidade é a aceitação do que se é e se pode ser.” (Hugo Mãe)


    A construção temporal da narrativa é pouco precisa, mas há pistas. Não é possível através dos elementos da narrativa precisar o tempo exato em se passam as histórias. A pequena cidade costeira, na qual os fatos se desenrolam, está situada na contemporaneidade, em um passado menos ou mais distante? Sabemos que a narrativa acompanha um lapso de tempo que abriga, no mínimo, 15 anos (idade de Camilo, filho biológica da anã e posteriormente filho de Crisóstomo ), no entanto, não se sabe ao certo se o comportamento dos cidadãos revelam características de uma cidade provinciana e tacanha, que a despeito de estar inserida no século XXI, poderia manifestar algum conservadorismos ou se reflete o passado. Partindo do pressuposto de que concepções mais arrojadas nos modos de viver, não ocorrem de forma homogênea e que as cidades pequenas são mais conservadoras em temas como casamento, emancipação feminina, homossexualidade, paternidade, doenças mentais, religiosidade, podemos inferir que se trata de uma cidade contemporânea, dos recônditos de Portugal. Uma evidência dessa suspeita se encontra, por exemplo, na possibilidade de teste de paternidade aventada por uma das personagens para a averiguação do progenitor de Camilo: 

“A anã esticou-se a crescer um centímetro e respondeu: o tamanho do juízo tenho-o eu todo, e sei bem o que lhe estou a dizer, um desses quinze homens há de ser o pai da minha criança, é preciso obrigá-los a fazer um teste ou coisa assim” (teste de paternidade foi criado em 1985).” Fazendo as contas, uma cidade provinciana e religiosa no interior de Portugal em 1985, podemos estipular valores morais e sociais de qual momento histórico? Anos 30? Anos 40? Anos 50?


    A obra possui um narrador onisciente e onipresente com permissões ao discurso direto livre dos personagens e é divida em vinte capítulos todos eles, de alguma forma,  calcados nas aventuras e desventuras do amor parental. Além desse tema, há espaço para discussões subjacentes sobre a velhice, por meio do acerto de contas com a vida feita por Crisóstomo; sobre a homossexualidade, através do sofrimento interior e pela violência da comunidade em relação à homossexualidade de Antonino e   sobre a limitações sociais impostas às mulheres explorada, sobretudo, na vida de Isaura, mas também presente em todas as demais personagens femininas e ainda, uma personagem com deficiência física, que serve como mote para explorar muitas das deficiências morais daquela comunidade.  A narrativa tem um ritmo com idas e vindas nas histórias presentes e pregressas , revelando a cada capítulo um pouco mais das razões de cada um daqueles amores infelizes.  Os personagens acabam por ser construídos em torno de suas rejeições, mas  isso não significa que se limitem a elas.  O desfecho da obra se propõe a emancipar todos através do encontro com o amor, que me parece no final, um amor feliz. O mais contundente aceno para a escolha pelo amor é a paternidade escolhida, quase todos os jovens do livro, são ou foram adotados, Camilo, por exemplo foi adotado, mais de uma vez. A escolha da narrativa pela paternidade não biológica pode ser a manifestação mais contundente da necessidade de amar e cuidar do outro, de procurar no outro a responsabilidade e os laços do cuidado. Parece-me que, se ter filhos é a busca pela eternidade , Crisóstomo e  sua família escolhida (no sentido de que não biológica) são a escolha pela doação ao outro. Hugo Mãe remete nesse momento a máxima cristã de “Ame o seu próximo como a si mesmo". 

"Todos nascemos filhos de mil pais e de mil mães, e a solidão é a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e a nossas mil mães coincidissem em parte, como se fossemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. ( Hugo Mãe).   


    No que se refere a uma personagem marcante, vale um excerto da obra para melhor caracterizá-la : “Num pequeno povo do interior, vivia uma anã a quem todos se apiedavam”. Particularmente a personagem e o capítulo com o qual tive maior conexão pessoal foi a personagem Anã, no capítulo “O filho de quinze homens”. Com picardia, o autor faz troça da religiosidade tacanha da província, da bondade de aparência, e da falsa comiseração cristã. Todos os demais personagens sucumbem à violência silenciosa e opressiva da cidade, ela por outro lado, embora considerada por todos fisicamente frágil, é  mais certa de seus desígnios, morre mais de alguma forma é a mais viva de todos. Através dela são revelados adultérios de muitos e também somos confrontados no nosso imaginário erótico. Na narrativa, a comunidade se considera no direito ditar os limites do sexo e o erotismo aprisionando a personagem no que idealizam sobre a infância, em virtude de sua estatura  como se, pela força daquele julgamento, ela fosse, portanto, sumariamente afastada do direito de fantasiar e vivenciar o sexo, como a adulta que era.


    Acredito que, embora seja uma caraterística estética, a prosa poética pode, por vezes, mesmo que sem intencionalidade, edulcorar a realidade. Pessoalmente, tenho preferência pela literatura mais como confronto do que como conforto. O otimismo e a confiança de que o encontro do amor pode reparar outros núcleos e injustiças é pessoalmente inverossímil, mas pode ter bons resultados na ficção, êxito que o livro conseguiu na maior das vezes, embora minha inclinação seja mais para o que pontua Walter Siti:  


Oscilando entre engano e crueldade, entre doença e remédio, o romance encontra um compromisso duradouro nas construções razoáveis do verossímil.” “embora forneça à burguesia o mais convincente dos espelhos, a vocação do romance não é a de tranquilizar: é, de preferência, a de verter o impossível no real, ou de descobrir no real o absoluto, sem nunca encontrar paz”.  (Walter Siti)


No prefácio do livro intitulado “ O filho universal” são mencionadas obras  como Pinóquio e a Odisseia , eu somaria a estas o livro “O filho desejado” de John Steinbeck, que narra a história de um protagonista estéril que tem enorme desejo de ser pai e sua mulher, por amor, decide ter um filho com outro homem para realizar este sonho. Parece que há sempre um traço comum de universalidade,  por mais tortuosas que sejam  as manifestações desse sentimento. 


“De qualquer modo, já não precisavam de falar. Pertenciam-se e comunicavam entre si pela intensidade dos sentimentos. Tinham inventado uma família” (Hugo Mãe).

- Nota para o livro de 6,5

4 comentários:

  1. Ana Luiza você foi contundente, precisa e não se deixou induzir pelas imagens corriqueiras das críticas fáceis. Gostei da sua opinião sobre o livro, sua construção, seu tangenciamento ao realismo mágico e de identificar o pressuposto do texto: "a busca pelo amor como solução da felicidade". Na verdade, o autor foge de maiores confrontos sociais e só critica abertamente a falsa comiseração cristã como apontado por você, o que deixa o romance um pouco aguado. Os valores sociais da época em relação ao homossexualismo chegam perto de serem justificados pela tradição. Não há uma crítica formal nem sub-reptícia. Mesmo a negociação de um casamento de conveniência de Maria com o velho rico passa com imensa naturalidade no texto. O empréstimo da galinha gigante que chegou em uma trovoada e que atrai a morte da noiva no dia do casamento, mereceria, a meu ver, uma alusão à possibilidade do anjo caído de Gabriel Garcia Márquez. Concluindo. Muito obrigado pela competente análise do livro. Indico, sem restrições e lhe acompanho na nota- 6,5.

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  2. Parabéns pela resenha, Ana!
    Eu gostei muito de "O Filho de Mil Homens" (até mais do que de "A máquina de fazer espanhóis", minha introdução à literatura de Mãe).
    Trata-se de uma leitura delicada e brutal, ao mesmo tempo.
    O livro fala sobre o relacionamento entre pais e filhos, porém, num sentido que vai além do aspecto biológico. Trata das necessidades mais intrínsecas à natureza humana: acolhimento, pertencimento, reconhecimento, redenção, mas também da brutalidade e da bestialidade tão comuns à raça humana.
    Pessoalmente, comecei a lei a obra entendendo-a como um conjunto de contos e, assim como o que foi mencionado em sua resenha, foi difícil identificar a temporalidade dos acontecimentos.
    É um livro de pessoas tristes o tempo todo. Um sofrimento que parece não ter fim. Pessoas transformadas em seres humanos duros, de maneira muito bem justificada pelo autor ao contar, com a riqueza de detalhes que lhe é peculiar, os traumas vividos. A sensação que o leitor tem ao ler "O Filho de Mil Homens" é de um incômodo constante, de uma desilusão permanente. As tragédias são descritas de forma tão escancarada que chegam a ser de fato cômicas.
    O personagem principal é Crisóstomo (“o homem que era só metade”, “o pescador de filhos”, “feito de uma virilidade equilibrada pelos sentimentos mais humanos”) e todas as demais histórias conectam-se de alguma forma a ele. É no final que se torna claro seu papel como protagonista da obra: aquele que acolhe a todos, num processo de redenção de todos os traumas vividos, Crisóstomo torna-se o pai de mil filhos.
    Observação final sobre a Nota do autor: “Sei bem que sou filho de mil homens e mais mil mulheres. Queria muito ser pai de mil homens e mais mil mulheres” (Mãe).
    Recomendo com entusiasmo. Nota: 7,5.

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  3. Comentários por Lenita Turchi.

    Walter Hugo Mãe, com o filho de mil homens, nos leva numa jornada para além do cotidiano árduo e dos valores culturais de uma vila no interior de Portugal. De fato, através de estórias de vida particulares que se entrelaçam, somos transportados para o mundo dos sentimentos e buscas que são universais.

    Assim iniciamos a jornada com Crisostómo, o homem que era só a metade porque a vida sem amor é menos que metade. Um homem que busca um filho para amar e ao mesmo tempo representa o amor no sentido da aceitação do outro e das circunstâncias de cada um.

    Conhecemos em seguida a anã que “esperava por um cavalheiro com grande coração” e cujo único sentimento que despertava nas mulheres do vilarejo era de incredulidade e piedade. “Que ridícula soava a ideia de uma triste anã de querer amar se o amor era para as pessoas normais. Para as pessoas.”

    Esta visão de anã como criança ingênua que sofre e brinca e não conhece as “as perversões e frustrações do mundo real”, é desfeita pela realidade com a sua gravidez e substituída por sentimentos iniciais de perplexidade e fúria e finalmente de vergonha de toda vila. Nasce assim o filho de mil homens e sua estória se entrelaça a de Isaura que desde jovem sofre rejeição e se sentindo enjeitada e diminuta se “envergonha de um dia ter oferecido tudo ao amor”.

    Outros personagens como o filho de Matilde, Antonino, nos fazem sentir a violência física e mental exercida pelas pessoas da vila e o sofrimento imposto a quem não se comporta ou seja como o esperado, o considerado natural. Tristeza de Antonino e desespero de mãe que vive o conflito em entender o filho mas ao mesmo tempo rejeitá-lo como aberração pelo fato de ser homossexual.


    "que ele não teria culpa de ser o que era”
    Ao contar estórias de um mundo aparentemente simples, Hugo Mãe conduz o leitor ao complexo universo das emoções humanas do amor, da bondade, da maldade, da rudeza e da delicadeza. É um romance corajoso e de esperança sem cair na tentação de soluções fáceis ou fórmulas de felicidade.

    Na visão do argentino Alberto Manguel, em Notas para a definição de um leitor ideal, a boa literatura nos ensina a dialogar pois não é unívoca, e nem divide o mundo entre bons e maus, certos e errados. A literatura leva o leitor a escutar, a refletir sobre as ambiguidades e a formular questões ao invés de apresentar verdades e soluções.

    Neste sentido os personagens de Valter Hugo Mãe, nos levam a refletir sobre as dimensões do humano na sua busca pela felicidade, que no caso de Mãe é o amor, e da capacidade de transformação dos indivíduos. E ao mesmo tempo o leitor é levado a questionar dos padrões definidos de normalidade, tema muito debatido e ainda contemporâneo.

    ***

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  4. Ana Luiza, aplausos, fiquei impressionada com sua resenha sobre O Filho de Mil Homens, classificado como prosa poética. Concordo! O texto de Valter Hugo Mae sugere alguma influência de Saramago, mas em especial, no primeiro capítulo, ele me lembrou o poeta brasileiro Manuel de Barros, (que muito admiro pela singeleza no dizer), pela construção das frases e escolha de palavras. Na verdade, o livro é uma poesia só, mas uma poesia triste, já que apresenta personagens solitários, desvalidos, abandonados, ridicularizados, odiados. Como resgate para essa tristeza, temos o amor, que cada um encontra à sua maneira, a anã gerando um filho, o homem que era metade encontrando a felicidade na paternidade, e querendo ser o dobro, o homossexual apenas mantendo as aparências, e assim por diante. Enfrentam a vida da forma que se lhe apresenta, e tiram o melhor dela que podem, caso de Isaura, a enjeitada, que apesar da desventura-"Eu pensava que o amor era bom... estou sozinha",- não perdia a esperança-"Ela esperava o futuro, e esperar era já um modo de amar".(pag 69) Enfim ela o encontra no primeiro personagem que o enredo apresenta. "Ser o que se pode é a felicidade"(Pag 86). Esse é um romance cujos capítulos se entrelaçam ao final, um livro que trata de amor, aceitação da própria condição e superação das dores encontradas ao longo da vida. O texto é primoroso, embora considere que algumas repetições enfáticas quebrem o ritmo da leitura. E traz uma mensagem verdadeira, mas nem sempre lembrada- somos todos irmãos, e formamos uma imensa família no planeta Terra."Todos nascemos filhos de mil pais e de mil mães, e a solidão é, sobretudo, a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se nossos mil pais e nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros".(pag 204)

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