quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Dois Irmãos

 

 Autor: Milton Hatoum

Editora: Companhia das Letras, 2000

 


Resenha por Maria Virginia de Vasconcellos - Em novembro de 2021

Para o Grupo Contemporâneo de Leitura

 

Notas preliminares:

Expor a relação entre irmãos é tema recorrente na literatura universal. A começar pela Bíblia, que nos introduz ao assunto com as histórias sobre Caim e Abel, Esaú e Jacó....

É interessante observar que, em dez anos de existência, nosso Grupo de Leitura já percorreu pelo menos quatro romances que tratam da vida de dois irmãos:

- o autor português, Manuel de Sousa Tavares, se valeu de uma rivalidade fraterna para construir o livro Rio das Flores (Grupo de Leitura, em Julho de 2013);

- em Deus das pequenas coisas, a autora Suzanna Arundhati Roy coloca um casal de gêmeos como personagens principais (Grupo de Leitura, em Abril de 2015);

- em Cicatriz de David, Susan Abulhawa mostra a história de dois irmãos palestinos, criados em culturas diferentes (árabe e judaica), que voltam a se encontrar na vida, em condições conflitivas (Grupo de Leitura, em Outubro de 2015);   

- e, também, em Esaú e Jacó, Machado de Assis apresenta a vida de gêmeos que, apesar de idênticos na aparência, são opostos quanto à personalidade (Grupo de Leitura, em Outubro de 2017).

Podemos ainda incluir:

- o romance da Frances Peeble, A costureira e o cangaceiro, que relata a vida de duas irmãs (Grupo Leitura, em Julho de 2014);

- o livro O Rouxinol, de Kristin Hannal – duas irmãs com destinos diversos durante a 2ª. Guerra mundial (Grupo de Leitura, em Fevereiro de 2020);                      

- e, finalmente, a mais recente leitura do livro Torto Arado, onde Itamar Vieira Junior conta a saga das irmãs Bibiana e Belonísia (Grupo de Leitura, em Outubro de 2021). 

Por casualidade, dois desses livros foram resenhados por mim.

Tendo passeado por essas atraentes estórias, ao vislumbrar o título Dois Irmãos, pensei não ser possível encontrar uma narrativa tão original a ponto de engolir o leitor com novidades.

Pois, a verdade é que atravessar a saga de mais dois irmãos me pareceu, de novo, surpreendente.

O estilo e os personagens construídos por Hatoum têm tudo de especial. Esse autor não apenas imprime ao texto um caráter próprio como nos traz um contexto diferente dos anteriores.

Sobre o Autor:

Descendente de libaneses, nascido em 1952, em Manaus, onde viveu parte de sua vida, Milton Hatoum é considerado um dos grandes escritores vivos no Brasil. É também tradutor, professor de literatura e articulista na Folha de São Paulo. Ensinou literatura na Universidade Federal da Amazonas e na Universidade da Califórnia, em Berkeley. (Ver nota 1)

O Contexto:

Esta novela, quarto romance de Hatoum, é ambientada em Manaus, uma cidade repleta de imigrantes de diferentes nacionalidades, adicionados aos indígenas. (Ver nota 2). Essa população se mesclou numa convivência de costumes, crenças e corpos.

Porém, essa Manaus parece ir além de ser apenas um fosco pano de fundo. Pode-se afirmar que, com sua geografia, sua flora, sua fauna e seus costumes, essa paisagem urbana de Manaus é um personagem a mais nesse livro. Personagem com papel relevante e enorme protagonismo:

seja o calor, o “toró dos diabos”, o aguaceiro, o roçar de um corpo na terra, as frutas amazonenses, os animais, o “bote da cobra-papagaio”, rios, lagos, igarapés, temperos tais como murupijambu e pimentas diversas, peixes do rio Negro, gorjeios e trinados de pássaros como mambuaçu e anum, árvores, as batuíras, enfim, a Manaus, por meio de cada elemento local impacta a vida dos outros personagens e influencia suas trágicas ações e reações. Transmite o sabor do ambiente e traduz o espírito da floresta.  Como se a natureza e as circunstâncias sócio-culturais se fundissem nos dramas pessoais.

Além de descrever o universo amazônico, o autor introduz na narrativa outros ingredientes:    apresenta palavras e expressões locais desconhecidas no resto do Brasil, assim como rituais sociais libaneses, turcos, manauaras e indígenas: Catrais é um barco? E muluré fora d´água o que é? Vc já usou penduricalho de olho de boto no pescoço?

A conexão entre a natureza e a vida dos manauaras, entre o “eu e o mundo”, entre o indivíduo e suas circunstâncias, é soberbamente explorada pelo autor, atinge o destino e até o caráter dos irmãos Yakub e Omar. Envolve o leitor provocando uma sensação de realidade amazônica.

Personagens e Narrativa:

Discorrer sobre lares desestruturados e temperar o texto com leve tendência política é costumeiro para Hatoum em seus romances. Neste livro, em particular, o autor utiliza uma inteligência analítica e implacável para descrever uma engrenagem familiar.

O casal, Halim e Zana, se entrelaça num romance permeado por versos (os chamados Gazais) que mostram uma paixão desde a conquista da noiva.  Ele, comerciante maometano, árabe, e ela, turca, otomana (filha de Galib, dono do restaurante). Após casados, têm filhos gêmeos, Omar e Yakub, e uma terceira filha Rania.

O romance foca as vidas dos gêmeos Omar e Yakub, que embora similares na aparência, desde a infância são diversos quanto ao temperamento (um é o “farrista” e o outro é o “doutor”). Logo cedo, a mãe demonstra uma predileção especial pelo Omar e o protege – para ela, o Omar era o “peludinho frágil”.

Para esquentar ainda mais a rivalidade entre os dois, eis que se interessam e pode-se dizer, se apaixonam, pela mesma moça, que escolhe Yakub.  Esse fato provoca um ciúme e um ressentimento intenso no Omar, o irmão desprezado. Com este triângulo amoroso, desenvolve-se a trama.

A rivalidade torna-se crescente no decorrer de suas vidas, se transforma num sentimento forte de quase ódio na personalidade de Omar, que afinal, expõe suas entranhas com uma violência incontida. Eis o mote que prende o leitor: qual será a próxima turbulência entre eles?  o que vai aprontar o Omar no novo capítulo? Suscitar essa curiosidade deixa um bom gancho para continuar a história.

Logo cedo, os gêmeos são apartados.  Yakub, ainda adolescente, é enviado para terras estrangeiras dos descendentes do pai. Na sua volta, vê-se que a rivalidade e o ciúme continuam fortes e ativos, sempre atormentando o Omar.

Yakub precisou de novos ares para respirar a liberdade e mais uma vez se afasta: parte para S. Paulo e torna-se engenheiro, bem sucedido, e sente-se livre para refazer totalmente a sua vida tanto financeira como afetiva.

E Omar? Continua em Manaus permanentemente protegido pela mãe. Os irmãos tomam rumos e destinos diferentes.

Zana, a mãe, é permanentemente assoberbada pela relação dos filhos e protetora obcecada do Omar – o Caçula. Essa situação impacta as relações de toda a família, afasta Zana do sempre apaixonado Halim. Mas, ele se derrete por Zana e se deixa controlar para ter seus momentos de amor na rede e na cama.  E somente uma vez mostra reação forte aos arroubos de Omar: Halim dá-lhe uma bofetada e  “o acorrenta na maçaneta do cofre de aço”, e some de casa por dois dias.

Além desse núcleo familiar, existem outros personagens importantes. Moram com eles a Domingas – uma descendente de indígenas Cunhatã – que tem papel de empregada doméstica e fiel cuidadora e acompanhante de Yakub – juntamente com seu filho, que é o narrador da novela.

A vida desse narrador começa a ser conhecida a partir do Capítulo 4, quando ele afirma, com honestidade, que “a memória inventa, mesmo quando quer ser fiel ao passado”.  (pag 90)

Após 30 anos, “quando quase todos estão mortos”, o filho da  Domingas conta a história da família que é também sua própria história. Existe uma busca subjacente na narrativa para saber qual desses familiares violentou sua mãe e é o seu pai... Esses mistérios são sombras que o perseguem.

Parte dessa novela, ele relata o que viu, como testemunha dos acontecimentos, e os traduz como pode. Outra parte, ele escuta os desabafos de Halim e transcreve a visão do pai e esposo em relação a toda a família. Mas, mesmo escutando o outro, mesmo assim,  o narrador não consegue preencher vácuos e silêncios. O verdadeiro segredo fica guardado com seu dono. Sua imaginação pode preencher os vazios, mas o filho da  Domingas não alcança compreender, nem interpretar.

O leitor saberá esclarecer todo o enredo? O final da história não será aqui revelado para surpresa e deleite dos próximos leitores.

Estilo -   Mensagem ou mensagens:.

Vale, por fim, comentar sobre outras questões relevantes que parecem ser mensagens pretendidas pelo autor.

Hatoum mergulha com grande estilo e estética na situação dos desfavorecidos, dos imigrantes, dos indígenas e na degradação das relações familiares.

Com sensibilidade e delicadeza, além de apresentar paixões e amores, joga holofotes sobre terríveis situações como disparidade social, trabalho quase escravo, incesto, violência familiar, estupro, que aparecem ou insinuados ou evidentes. O autor denuncia de forma terna e reticente, mas contundente. Toca o dedo nas feridas, sem sequer pronunciar certas palavras.

Retrata um matriarcado ambíguo, onde mulheres com poder de mando e com características perversas chamam nossa atenção. Como exemplo, temos as filhas , Zania e Stelita, que batem no pai viúvo se este namora;  outra Estelita também bate no marido, o Abelardo Reinoso; e  a Zana, esposa de Halim,  manda no marido e na casa, e manipula toda a família. E quem comanda o comércio da família é a filha Rania.

Tudo isso é relatado pelo autor, mas sem nunca se esquecer da Amazônia.

Concluindo, este livro denso, fascinante e comovente, ‘agarra’ o leitor e o atinge em cheio e, vale repetir, não deixa em segundo plano a apresentação do deslumbrante e desafiador ambiente amazônico.


 
Notas/Referências:

 (1) Ainda sobre o autor:

Prêmios recebidos por Hatoum: Jabuti (1990, 2006); Portugal Telecom de Literatura (2006); Ordem do Mérito (2008).

Entre outras obras escreveu: Relato de um certo oriente, Órfãos de Eldorado (lido pelo Grupo de Leitura, em maio de 2012 -resenha da Daniela), Cinzas do Norte, Dois Irmãos ... Interessante notar que o livro Dois Irmãos serviu de tema para uma minissérie da TV Globo.

(2) Fundada em 1669, a cidade de Manaus ficou conhecida no início do Século XX como a “Paris dos Trópicos”. O auge do ciclo da exploração da borracha ocorreu entre 1890 e 1910. Nesse período foi invadida por imigrantes europeus – portugueses, franceses, ingleses, italianos - e, em seguida, vieram japoneses, turcos e alemães. A miscigenação, incluindo os indígenas locais, levou à formação dos caboclos.

Outro surto de intensa imigração aconteceu a partir de 1970, com a industrialização pós-implantação da Zona Franca em 1967. Hoje, Manaus é a 7ª cidade mais populosa do Brasil, com mais de 2 milhões de habitantes, 6º maior PIB e 4º maior IDH do país (Fonte: Wikipédia, Nov 2021).

                                               ***

Notas complementares:

(3)   Sempre bom lembrar as palavras de Cristopher Lehman-Haupt:

Há uma diferença enorme entre ser um crítico ou um resenhista. O resenhista reage à experiência do livro”.

Aqui me aventuro como resenhista, buscando explorar pontos tais como contexto, vida do autor, personagens, mensagens do texto, estilo, narrativa...

(4) Nos seus flashes o Hatoum imprime um tom de fotografia e lembra as Imagns em Preto e Branco - do Sebastião Salgado, recente vencedor do prestigioso 32º Praemium Imperial (Japan Association – considerado o Nobel das Artes), apresentado no Projeto Amazonia em Paris (Setembro/Outubro de 2021)

    (5) McEwan em Serena: “romances investigam o que deixamos em segredo, o que resguardamos na intimidade  (Grupo de leitura, em Outubro de 2012)

(6) Milton Hatoum em Órfãos de Eldorado: “a gente quer entender as pessoas e só encontra silêncio”; (Grupo de Leitura, em maio de 2012)

(7) Virginia de Vasconcellos em comentários sobre Órfãos de Eldorado,  outro livro do Hatoum:   (reprodução livre); (Grupo de Leitura, em maio de 2012)

O livro é inspirado na vida de Manaus e se alimenta do conhecimento e registro de costumes de família e da história da época. No entanto, apresenta não somente elementos sociais mas, sobretudo históricos, políticos, humanos, geográficos, botânicos: a descrição da vegetação da Amazônia e suas funções é um primor. De tal modo que o leitor pode salientar esta ou aquela perspectiva que o impacta ou comova mais.  É também uma ode a Manaus antiga, ao Amazonas às suas lendas e mitos. Com o desfecho ambíguo, quem termina a obra é você.

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Torto Arado

 

Resenha do Livro TORTO ARADO, de Itamar Vieira Jr.

Por Priscila Fernandes Costa


Torto Arado, o premiadissimo livro de Itamar Vieira Júnior  - vencedor do prêmio LeYa em 2018, do prêmio Jabuti em 2020 e do prêmio Oceanos de Literatura – narra a vida dos trabalhadores rurais brasileiros vivendo na fazenda Água Negra, na Chapada Diamantida, interior da Bahia. Itamar é geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia. Conta que começou a esboçar o romance aos 16 anos de idade, inspirado sobretudo pela escrita de Raquel de Queiroz e José Lins do Rego. Nessa época chegou a escrever 80 páginas que tratavam da relação conflituada de duas irmãs. Acabou por deixar o romance de lado quando começou o curso de geografia e esse primeiro esboço de 80 páginas iniciais se perdeu.

Há cerca de 13 anos ingressou no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) onde vem realizando trabalho de campo no interior do Nordeste. Foi aí que teve contato direto com uma realidade que só conhecia através dos romances que leu. Conheceu famílias inteiras de trabalhadores que vivem em um sistema semelhante à escravidão, que não recebem dinheiro pelo dia de trabalho e só têm direito à morada. A dureza do cotidiano destes trabalhadores renovou a motivação para retomar o antigo projeto do livro. Juntou, então, a história inicial das duas irmãs com o que pode obervar ali.

No romance, o autor toma emprestado não somente as experiências destes trabalhadores rurais, mas também a linguagem melodiosa que utilizam. O título do romance – Torto Arado – que já era o título de seu primeiro esboço, vem de um verso de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810):

E doravante a mão negra da morte

(...) lhe arranca os frios ossos

ferro do torto arado.

Em uma entrevista o autor diz que o que chamou sua atenção foi “essa imagem de um arado torto velho, como se fosse um símbolo de uma realidade imutável, de um campo onde o arado ainda é instrumento de trabalho, apesar da mecanização brutal”.

A trama do livro gira em torno da família do trabalhador rural Zeca Chapéu Grande, curador de jarê – religião afro-brasileira que tem suas raízes na umbanda, no espiritismo e no catolicismo, conhecida também como “candomblé de caboclos” e que é muito praticada na Chapada Diamantina –,  tinha por missão  restituir a saúde do corpo e do espírito aos que necessitavam; além disso, era considerado o pai espiritual de toda a gente de Água Negra. Além de comandar as “brincadeiras do jarê” – era assim que chamavam as cerimônias nas quais recebiam e incorporavam os encantados – e curar corpos doentes e espíritos perturbados, Zeca Chapéu Grande fazia as vezes de líder político, de pelego, e de apaziguador dos conflitos entre trabalhadores que se revoltavam por considerar que a terra pertencia a quem nela trabalhava.

Casado com Salustiana Nicolau, era pai de quatro filhos: Bibiana, Belonísia, Zezé, o único menino e Domingas a caçula. Compunha, ainda, essa família, sua mãe Donana, conecida também mãe como de pegação de muitos na fazenda, pois era quem se encarregava do parto das mulheres dali.

O romance é divido e três partes. Na primeira parte, o relato é feito por Bibiana, a filha mais velha e é centrado na infância das meninas.  Na segunda parte, os acontecimentos são narrados por Belonísia, e trata do tempo de saída da infância e ingresso na idade adulta, numa jornada em direção ao lugar de mulher.  Por último temos o relato de uma encantada, Santa Rita Pescadora, entidade do jarê, conhecedora da intimidade e dos segredos dos moadores da região e principalmente do destino das duas irmãs.

Os empregados da fazenda eram  quase todos descendentes de negros escravisados, que aceitavam trabalhar em troca de um lugar para morar e no qual só podiam construir casebres de paredes de barro e telhado de junco, e cultivar roças no quintal, cujos produtos tinham que dividir com o capataz ou com o patrão. Não recebiam salário e o único dinheiro que conseguiam era quando vendiam os produtos que plantavam na feira, ou quando obtinham a aposentadoria rural.

Bibiana e Belonísia são as protagonistas da estória que começa qundo as duas tinham, respectivamente, 7 e 6 anos de idade e provocam  o acidente que marcará suas vidas para sempre. Eram crianças curiosas e teimosas sempre prontas a transgredir as ordens dos adultos, sobretudo as da avó Donana. Por serem as mais próximas eram também as que mais se desentendiam. Brigavam e brincavam com a mesma disposição.

Certo dia as meninas vendo a avó se afastar da casa em diração ao quintal, se embrenhando na mata próxima, Bibiana, a mais curiosa das duas, instiga a irmã para que tentem descobrir, no quarto da avó, o que ela mantinha escondido em uma mala  de couro envelhacida e suja em baixo da cama. Dentro da mala, por baixo de algumas peças de roupas antigas e surradas havia um tecido sujo e manchado envolvendo um objeto que chamou a atenção das meninas. Embrulhada ali encontrava-se uma faca, nem grande nem pequena,  perfeitamente nova e brilhante, cabo de marfim, sem nenhum arranhão. Fascinadas com o objeto, as irmãs começaram a disputar a posse da faca, cada uma querendo tê-la nas mãos, quando inesperadamente Bibiana coloca o metal na boca, “tamanha era a vontade de sentir seu gosto”. Quase ao mesmo tempo Belonísia puxa a faca de forma violenta e a arranca da boca da irmã, levando o metal à boca.  Belonísia que agora estava com  a faca na boca, ao ver o sangue escorrer pelo queixo da irmã, tira imediamente a faca de sua boca e se corta também. O resultado desta travessura foi que Belonísia teve a língua decepada e Bibiana, parte da língua cortada. Nos primeiros meses após o ocorrido as irmãs foram tomadas de um sentimento de união que estava embotado com aquele passado de brigas e disputas infantis. Com o tempo puderam retornar às brincadeiras, deixaram as disputas para trás pois, daí em diante, uma teria que falar pela outra.

Contudo, a origem e causa da tragédia das irmãs remonta a muitos anos antes, durante a juventude da avó Donana. Donana, como era conhecida, uma vez que ninguém jamais soube seu nome verdadeiro, nasceu e foi criada na fazenda Caxangá. Órfã, viveu com a familia do capataz da fazenda onde era encarregada dos serviços domésticos. Ainda menina começou a ver objetos balançarem de forma violenta, o mato seco queimar por onde caminhava, roupas desaparecerem como palha seca e outros fenômenos que deixavam a todos amedrontados. Por fim passou a receber encantados. Ainda jovem aprendeu a manejar ervas e raízes para fazer remédios para os mais distintos males que acometiam as gentes. Tornou-se raizeira e parteira. Na fazenda Caxangá conheceu seu primeiro marido, José Alcino que veio a falecer pouco antes do nascimento de Zeca, o filho mais velho.

Certo dia Donana viu uma bela faca esquecida no alpendre da casa sede da fazenda. Olhou ao redor e constatou que não havia ninguém por perto, retirou a faca do coldre, enfiou o objeto no seu cesto de palha, em meio aos aipins, pedindo a Deus que a perdoasse por aquele ato, e saiu dali antes que alguém pudesse surpreendê-la. Pensou que poderia ganhar algum dinheiro com a venda da  faca, mas como foi se afeiçoando ao objeto acabou por enterrá-lo debaixo da própria cama.

Mais ou menos na mesma época arranjou seu terceiro “marido”. No início o convívio com esse novo companheiro era calmo e amigável, até que ele passou a beber. Tornou-se, então, agressivo e hostil. Certo dia, ao entrar em casa, encontrou seu homem em cima de sua filha, moça há poucos anos, e quase enlouqueceu. A filha, Carmelita, tomada de culpa saiu da casa da mãe e Donana jamais soube dela.

Numa noite escura por causa das núvens pesadas que trariam um grande aguaceiro Donana tomou a decisão de acabar com o sofrimento de ambas, mãe e filha. Seu homem saiu para pescar levando uma garrafa de bebida. Ela o seguiu algum tempo depois e quando o encontrou viu que ele dormia prosternado. Sangrou o homem como se sangrasse um porco e afundou o corpo no rio. Na madrugada que se seguiu, teve apenas uma certeza: Deus jamais a perdoaria. Pior: devolveria o malfeito em dobro. Por isso quando aconteceu o acidentes com as netas sentiu que seu passado trazia de volta coisas que não queria recordar e que através daquela tragédia estava quitando a dívida contraída em consequência de seu ato. Jamais se recuperou do que ocorreu com as meninas e uma desordem se instalou em seus pensamentos e em seus falares, as coisas que falava já não faziam sentido. Seu desatino termina numa tarde quente de fevereiro quando, aproveitando a distração de Bibiana, se embrenhou no mato em direção ao rio. A neta encontrou seu corpo emborcado como um bicho na beira e dentro d’água.

Zeca Chapéu Grande, cujo nome de batismo era o mesmo de seu pai, José Alcino, foi quem assumiu a incumbência destinada pelos encantadores à sua mãe, e tornou-se curador de jarê. Tinha uma face mágica e embora parecesse aos olhos das filhas um pai igual aos outros, tinha sua paternidade ampliada aos aflitos, doentes, necessitados de remédios que não havia nos hospitais e da sabedoria que não havia nos médicos ausentes daquela terra. Agia com grande afeição diante das dificuldades mais díspares que chegavam à sua porta. Da loucura ele entendia bem, porque ele mesmo já havia caído louco num período remoto de sua vida, como castigo pela desobediência de sua mãe que se recusou a cuidar dos encantados e a colocar jarê em sua casa. Carregou o fardo de sua mãe como castigo dos santos para ela. Foi o primeiro dos onze filhos que Donana teve com diferentes maridos. O codinome Chapéu Grande, bem como o chapéu que usava o tempo todo, herdou da mãe, que por sua vez o herdou do falecido marido.

Os anos se sucederam e as meninas foram crescendo e juntas aprendendo a superar a dificuldade de comunicação de Belonísia, que teve a língua decepada. A chegada de um primo um pouco mais velho, filho do irmão de Zeca que veio morar e trabalhar na fazenda com toda a famíia, provoca uma crise de rivalidade entre as irmãs. Severo, o primo, aproxima-se mais de Belonísia, então com 12 anos de idade, o que deixa Bibiana com ciúmes. Ao ver, certo dia, a irmã e o primo vindo sorridentes do fundo do quintal onde estavam admirando os vaga-lumes da noite sob o pé de umbu, o ciúme de Bibiana não a deixou dormir. No dia seguinte fez chegar à mãe a mensagem de que Belonísia estava com o primo Severo debaixo do umbuzeiro e sem ter a certeza do que vira, acrescentou à história a visão de um beijo. Belonísia foi castigada e o primo foi impedido de continuar convivendo com as primas. Essa rivalidade foi o início do afastamento das irmãs. Quando finalmente o primo volta a frequentar a casa das meninas, Bibiana estabelece com ele uma intimidade às escondidas e, aos 16 anos vai embora da fazenda com Severo, levando no ventre o filho deste. Sai de casa antes do dia clarear sem nem mesmo se despedir dos pais.

Belonísia, cuja natureza era forte, rude como uma onça, permanece em casa e passa a frequentar a escola que havia sido inaugurada ali. Não se adapta ao regima escolar, sente-se incomodada por não conseguir expressar-se e por se sentir deslocada, acha aquele aprendizado desinteressante e sem propósito.  Desiste da escola e se empenha cada vez mais no serviço da fazenda, ajudando o pai no trabalho, até o dia em que vai morar com Tobias.

Tobias, homem alto e magro, que veio para trabalhar como vaqueiro da fazenda, aos poucos foi conquistando a confiança de todos em Água Negra, até mesmo do capataz Sutério. Começa a frequentar as festas de jarê na casa de Zeca Chapéu Grande, e, de longe,  interessa-se por Belonízia que, muito  quieta e envergonhada se esquiva de seu olhar e evita qualquer contato com ele, embora sinta-se feliz ao perceber o interesse do moço. Certa manhã o pai  procura Belonísia dizendo que Tobias queria levá-la para morar com ele, pois sentia-se muito sozinho na tapera da margem do Santo Antônio.  Beloníosia aceita o pedido e com um aperto no peito, deixa a casa dos pais na companhia de Tobias, montada na garupa do cavalo, levando apenas uma trouxa pequena de roupas e sabendo que a partir dali escreveria os rumos que daria à sua vida num pedaço de papel pardo guardado debaixo do colchão.

O casebre que ele morava era sujo e cheio de entulho, de uma desordem tal que chocou Belonísia. Apesar de um começo de arrependimento por ter aceitado a proposta do rapaz,  resolveu, mesmo assim, se submeter a seu destino, e se impôs o firme propósito de dar um jeito na tapera; limpava, remendava, cozinhava, etc. Tobias que de início se mostrou afável e alegre, aos poucos tornou-se agressivo, beberrão,  reclamava de  qualquer coisa e a ofendia chamando-a de burra ou de aleijada da língua. Não foram poucos os dias em que ela pensou em retornar à casa do pai, mas ao mesmo tempo alimentava a esperança de que ainda poderia dobrar o marido. Obstinadamente levava a cabo suas tarefas domésticas, além cultivavar uma roça no quintal. No dia em que ele levantou a mão como se fosser dar-lhe um tapa, Belonísia sentiu um bicho ruim roendo-lhe por dentro e o olhar que lançou para o marido fez com que ele recuasse envergonhado, provavelmente por ter entrevisto e intuído a fúria que ela guardava. Ele passou a ficar mais tempo fora de casa,  deixou de ir ao jarê de Zeca e sempre chegava bêbado, sujo de barro e de pintura de mulher. Passadas  algumas semanas sem que ela soubesse do paradeiro de seu homem, recebe a visita do vaqueiro da fazenda dizendo que a levaria para o lugar onde encontrou Tobias caído.

Certo dia, enquanto Tobias ainda era vivo, Belonísia, surpresa,  encontra dentro de um pote velho jogado num canto da casa, a faca que Donana, após o acidente com as meninas, havia jogado no fundo do rio. Escondeu a faca rutilante num lugar que só ela conhecia e esperou para ver se o marido sentiria falta do objeto. Pensou descobrir o sentido de sua união com aquele homem: seu missão era recuperar a faca da avó.

Nesse universo de pessoas marcadas pela dureza da vida, e vivendo numa terra hostil de sol perene e chuva eventual, de maus-tratos, onde as pessoas morriam sem assistência, viviam como gado, trabalhando sem ter nada em troca, nem mesmo descanso, temos no romance de Itamar Vieira Júnior um desfile de mulhers fortes, destemidas e que apesar dos crueldade e do sofrimento causado pelas perdas de seus entes queridos, conseguem retomar o rumo de seus destinos com esperança e determinação.

A faca de Donana e a representação e o símbolo de um destino, que se repete a cada geração na história dessas mulheres. Mulheres resistentes, mas capazes, ao mesmo tempo, de assumir suas faltas e fraquesas, de reconhecer e enfrentar o medo e de recomeçar a cada dia. Os homens se vão, as mulheres ficam e recomeçam. A onça que Belonísia mata no final do romance, sob a intervenção da encantada Santa Rita Pescadora, e que não é o mesmo tipo de onça que protegeu de Zeca Chapéu Grande quando ele, louco, se refugiou no mato, essa outra onça é a representação desse Brasil  que se sustenta na desigualdade econômica e social e na exploração de trabalhadores, sobretudo os que vivem nas zonas rurais, no racismo e na violência.   

Trata-se de um livro de leitura fácil, com uma escrita ágil e com um tema bastante interessante. Recomendo a leitura.

Brasilia, 19 de outubro de 2021.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

A ILHA SOB O MAR

de Isabel Allende


por Lenita Turchi          

A autora nasceu no Peru em 1942, filha de diplomatas chilenos, morou quando criança na Bolívia e Líbano antes de retornar ao Chile em1958 onde viveu até o golpe militar de 1973. Deste período em diante exilou-se na Venezuela até 1988 quando passou a viver na California. Isabel Allende iniciou sua carreira como jornalista de revista feminina no Chile sendo conhecida pela sua irreverência e humor. Segundo a autora, numa reunião social foi felicitada por um político sobre seus artigos irônicos. Em seguida a mesma pessoa perguntou quando ela iria escrever algo sério ao que autora respondeu que gostaria de entrevistar uma mulher infiel. Logo após a jornalista teria recebido telefonema de uma das convidadas que sob anonimato concedeu a entrevista revelando as incongruências de uma sociedade arraigada aos valores tradicionais e que até recentemente não permitia o divórcio.  A entrevista foi motivo de escândalo no Chile no início da década de 1970 e lhe deu a “fama” de hippie e transgressora.

O primeiro romance  A Casa dos Espíritos,(1982)  deu-lhe reconhecimento e outra fama ou seja de uma das principais revelações da literatura latino-americana da década de 1980.  É autora de contos, peças teatrais, mas foi com romancista, cerca de  28 livros publicados[ii] que Isabel Allende consolidou carreira literária como expoente do realismo mágico latino americano.
Entre as suas obras mais conhecidas estão a Casa dos Espíritos (1982), De Amor e de Sombra (1983), Eva Luna (1987), O Plano Infinito (1991) Paula (1995), Afrodite (1998), Retrato em Sépia (2000), A cidade das Feras (2002), Inés de Minha Alma (2006), A ilha sob o mar (2009),Os Cadernos de Maia (2011), O Jogo de Ripper (2014),  Longa Pétala do Mar (2020), Mulheres de Minha Alma ( 2020) e Violeta ( 2021)
Em 2010 é reconhecida no Chile com a prêmio Nacional de Literatura do Chile, em 2012 recebe o Prêmio Hans Christian Andersen pela serie As Aventuras da Águia e do Jaguar.
Na maioria das suas obras, exceto em Paula onde escreve cartas para a filha em estado vegetativo, Isabel Allende explora com mestria a trilha do realismo mágico onde os protagonistas interagem com espíritos de ancestrais numa atmosfera marcada pelas crenças e valores presentes nas religiões de matrizes indígenas, africanas e católica.  A autora, se utiliza da estratégia bem sucedida de apresentar a história política social de um país ou de um momento através da estória de vida de uma família ou uma personagem central de determinado grupo. Nos romances de Isabel Allende, grosso modo estão presentes 3 dimensões que captam a mantem o leitor atendo.  Uma descrição bem feita da situação (casas e fazendas da américa latina, plantações do Caribe), e da estrutura social e política onde se desenvolve o romance.  Uma segunda dimensão, a busca por liberdade e justiça social, permeados pelos sentimentos de amor, erotismo, ódio e conflitos na construção dos personagens e da estória.  A terceira dimensão, não necessariamente em ordem cronológica presentes nas estórias e personagens de Isabel Allende é a incursão no mundo mágico onde os personagens interagem com espíritos e com divindades que os protegem ou ameaçam, como parte do cotidiano. O real e o imaginário se misturam dentro do fio condutor da maioria dos seus romances.
A Ilha sob o Mar  é desenvolvido como 2 atos ou cenários, Ilha de São Domingo atual Haiti, e Louisiana, contrapondo a escravidão nas colônias e os movimentos políticos como Revolução Francesa e Guerra de Independência Americana.

 Ato 1: 1770-1793

Somos levados a São Domingos (Haiti), em 1770 em pleno apogeu da cultura de cana, café e cacau, ilha considerada a pérola das Antilhas não só pela exuberância, mas principalmente por ser a mais próspera colônia francesa na América. Prosperidade construída por escravos trazidos da África e submetidos ao regime brutal de trabalho e condições de vida que se não os dizimava em poucos anos, os transformava em fugitivos alimentados pelo desejo de vingança e liberdade. De fato, o Haiti foi o primeiro país da Américas a abolir a escravidão em 1774, tornando se a primeira República livre de escravidão nas Américas.  Os muitos embates e lutas sangrentos dos escravos fugitivos que se organizaram nas montanhas em estratégias de guerrilha na conquista desta República, são bem apresentados no romance A Ilha sob o Mar.  A autora, assume aqui seu lado de jornalista e descreve com riqueza de detalhes não só o clima de opressão e terror gerados pelos grandes senhores das plantações assim como os levantes e a revolução dos escravos e os massacres que ocorrem neste processo.

O romance tem a perspectiva (PDV) da escrava Zarité (Tete), personagem central e da autora que assume o PDV dos outros personagens. Tete inicia a narrativa aos quarenta anos, 4 filhos e um neto e se considerando uma escrava guiada pela estrela da sorte pois conhece o prazer de ser uma mulher livre, o prazer de estar com o homem escolhido e prazer da música que a empodera quando dança. Porém antes de atingir este momento Tete, foi escrava, cuja mãe se suicidou ao chegar na ilha, e desde o nascimento sobrevive como escrava sendo cuidada pelo escravo Honoré, que a alimenta e ensina sobre o poder das “loas” dos ritmos e as danças. “O escravo que dança é livre.... enquanto dança”.   
Toulose Valmorain, da pequena nobreza francesa, chega a ilha aos vinte anos convocado pelo agente comercial para ver seu pai que estaria enfermo na propriedade, grande plantação canavieira que sustenta a família na França. Desembarcou na ilha vestindo a última moda da corte parisiense
punhos de renda, peruca cacheada e sapatos de salto alto....” Definia-se como homem de letras e pensava em se dedicar a ciência quando voltasse à França. Admirava os filósofos e enciclopedistas, que tanto impacto haviam causado na Europa, nas últimas décadas, e concordava com algumas de suas ideias liberais.” 

Valmorain, encontraria seu pai praticamente morto pelo avanço da sífilis e a propriedade arruinada o que o obrigou a buscar empréstimos para recuperar a plantação, dado que sem ela não teria nem a renda nem posição social quando voltasse.  Desde o início Valmorain não buscou relacionamento com os diversos segmentos sociais de origem europeia da Ilha, como uma forma de não se identificar com os “franceses transplantados das Antilhas eram brutamontes, o oposto da sociedade em que ele havia frequentado, em que se exaltavam as ideias, a ciência e as artes e onde ninguém falava de dinheiro e nem de escravosDa “idade da razão “em Paris passou a se afundar num mundo primitivo e violento em que os vivos e os mortos andavam de mãos dadas”.
A autora nos apresenta a partir desta visão a estrutura de classe e de raça onde no topo estavam os grandes senhores brancos, seguido pelos “petit blancs” de origem desconhecida, porém brancos em atividades de comercio, artesanias, marinheiros, militares e funcionários de baixo escalão. Mulatos livres ou affranchis, onde o percentual de sangue branco definia sua classificação na escala social. Neste grupo, existiam desde aqueles eram contrabandistas e estavam à frente dos negócios ilícitos como os que possuíam terras fortuna, terra e escravos tendo sido educado na França.  Na base da pirâmide estavam os escravos em número dez vezes maior que os brancos e affranchis juntos, mas “não significavam nada nem no censo populacional nem na consciência dos colonos”.
Neste universo das Antilhas as vidas de Tete e Valmorain se cruzam quando sua amante Violete, compra a pequena escrava e a treina para escrava pessoal da esposa Eugenia Garcia del Solar, irmã do socio e amigo cubano, de Valmorain.  A novela se desenvolve entre a vida na plantação, com personagens fortes como Tante Rose escrava com poderes de curar e proteger, um capataz temido e cruel, e as idas ao núcleo urbano da ilha para negócios e espetáculos de punição e exemplo de escravos que se revoltam.
Na casa grande, Tete cresce servindo a dona inicialmente e mais tarde Valmorian como escrava sexual, enquanto Eugenia enlouquece aos poucos.  O filho de Eugenia, Maurice, é desde início criado por Tete, que antes havia tb tido um filho do patrão que lhe foi tomado ao nascer e entregue ao casal Violete e Etinne Relais, sem que a mãe saiba o seu paradeiro. Após a morte de Eugenia, Tete continua servindo sexualmente o seu dono, cuidando de Maurice e se torna mãe de uma menina descrita como mulata de pele branca.  Estes são personagens centrais que continuam sua saga em New Orleans quando a plantação foi invadida e queimada assim como as outras da ilha e a Tete e os filhos e o senhor salvo por Gambo, vão para Le Cap e de lá assistem os horrores da guerra civil até conseguir chegar a Louisiana em 1793.
Nesta fuga a escrava Tete se vê dividida em deixar os filhos brancos que seriam chacinados ou seguir seu amor, o ex escravo fugitivo que retorna como guerreiro liderando revoltas contra os grandes senhores escravocratas, com a proteção dos “loas” invocados por Tante Rose. Por amor aos filhos, Maurice e Rosette, e com a promessa de ser alforriada pelo senhor, Tetê convence a Gambo a ajudá-los a fugir para Le Cap, de onde mais tarde seguiram para New Orleans.
Embora este seja o núcleo central da novela, onde as tramas amorosas e eróticas se desenvolvem, outros personagens dão tom mágico e estão presentes orientando o destino da ilha e de seus viventes. Vou chamar estes personagens de espíritos, representada por Tante Rose, a protetora dos escravos respeitada pelo seu conhecimento de ervas nativas e suas relações com o divino.
Eis o relato de Tete sobre início da guerra civil que aboliu a escravidão na Ilha.
 “Assim me contaram. Assim aconteceu em Bois de Cayman. É uma floresta imensa, um lugar de encruzilhadas e árvores sagradas onde se aloja Dambala em sua forma de serpente, loa das nascentes e dos rios, guardião da floresta. Em Bois de Cayman vivem os espíritos da natureza e os escravos mortos que não encontraram o caminho da Guiné. Milhares de rebeldes desceram das montanhas.Uma longa fileira de moças vestidas de branco, as hounsis, chegou escoltando Tante Rose para o asson da cerimônia. ... Os tambores em semi círculo chamavam tam tam tam. .. Os tambores aumentaram a intensidade, o ritmo se acelerou e a floresta inteira palpitava das raízes mais fundas até as estrelas mais remotas. Então Ogum desceu com o espírito da guerra, Ogum-Feraille, deus das armas, agressivo, irritado, perigoso, e Erzuli soltou Tante Rose, para dar passagem a Ogum que a montou.... Tinha vindo para entregar uma mensagem de guerra, justiça e sangue. Assim me contaram.”      

Outro espírito presente no romance através do imaginário dos escravos é Macandal, escravo trazido da Africa, muçulmano que sabia escrever em árabe, tinha conhecimentos de medicina e botânica, guerreiro e filho de rei que tinha o poder de se transformar em pássaro lagartixa, mosca e peixe. Liderou as primeiras revoltas, com estratégia de envenenamento de colonos brancos e seus animais e incêndio nas plantações. Quando preso foi sacrificado em praça pública num espetáculo que reuniu a população da ilha como exemplo. Na visão dos plantadores a morte de Macandal, queimado vivo era um espetáculo confirmando a capacidade de controle dos colonos brancos. Já para os escravos trazidos para assistir a tortura o que viam era um guerreiro forte que não se submeteu e que pairou acima da fogueira e voou como um pássaro antes de gritar: voltarei, voltarei. 


ATO 2
Louisiana: 1973-1810

“Do barco Nova Orleans surgiu como uma nova lua minguante flutuando no mar, branca e luminosa. Ao vê-la soube que não voltaria mais a Saint Domingues.”
A saga de Tete e sua “família” segue nos anos seguintes como escrava que cuida dos filhos, serve o patrão e administra a casa sem a liberdade prometida. Enquanto isso Rosette e Maurice estabelecem desde cedo uma cumplicidade e afeto que na adolescência vai se transformando em amor. Este será o casal principal desta segunda parte e em torno deles a autora desenvolve uma estória de amor e de superação de obstáculos. Valmorain se firma como grande proprietário escravocrata produtor de açúcar e se casa com Hortense da elite branca local. No casamento somos apresentados ao padre Antoine que aqui faz o papel de Tante Rose, protegendo os pobres e oprimidos e aceitando a existência e os ritos dos escravos africanos.
O casamento muda as relações internas da casa grande e Hortense assume o controle hostilizando Tete das mais diferentes formas, desde separação de Maurice e Rosette, o primeiro enviado para estudar em Boston e a segunda numa colégio de freiras interna, até ser enviada para cultivo da cana.  Tete sobrevive e, em 1800, com 30 anos, ganha a liberdade e o direito de ter de volta a filha, graças ao padre Antoine. Tete reencontra em Nova Orleans antigos conhecidos que haviam fugido de St Domingues como Dr Parmentier e sua família, Violette e o mordomo Zacharie, agora livre e dono de uma casa de jogo.  “Sou pobre, mas vivo como rico. Isso é mais sábio que ser rico e viver como pobre - e começou rir". Zacharie conquistou a mulata livre Zarite Sedella e a apoiou no reencontro com a filha e mais tarde quando Rosette se casa às escondidas com seu meio irmão Maurice. O desfecho desta relação foi a morte de Rosette, com o nascimento de um filho, que será o único herdeiro de Valmorain.
“Passaram-se 4 anos, estamos em 1810. Perdi o medo da liberdade, mesmo nunca tendo perdido o medo aos brancos. Já não choro por Rosette. Quase sempre estou contente”
Nesta segunda parte, Isabel Allende também se utiliza da estratégia de inserir as estórias dos personagens no contexto histórico e estrutura social do território onde a novela se desenvolve. É uma narrativa interessante, mas nesta segunda parte um pouco cansativa, talvez porque repetitiva neste e em outros romances da autora.
Se analisamos sob o ponto de vista da trama, vemos que os personagens são conectados por uma estória que prende o leitor. Os fios da trama são tecidos com cuidado de não deixar pontas soltas.  Já os personagens são bastante romantizados e a autora não se aprofunda nas múltiplas situações e emoções trazidas á tona no desenvolver das narrativas.  
É um estilo, que chamaria de epopeia épica com altas doses de realismo mágico ou vice versa que está presente nas diversas obras da autora.  Isabel Allende é uma escritora de sucesso, que sabe contar estórias e explora com maestria o realismo mágico, como vemos na sua intensa produção literária. Acredito que seja assessorada por uma excelente equipe de pesquisa nas narrativas históricas e políticas dos romances que escreve.

Se me fosse solicitada uma sugestão, para um leitor que não conhece a obra da autora, eu recomendaria "A Casa dos Espíritos".

* * *

 Obras da autora.

 Romances

·         1982 - La casa de los espíritus (A Casa dos Espíritos)

·         1983 - La logon Asulon (A Lagoa Azul)

·         1984 - De amor y de sombra (De amor e de sombra)

·         1987 - Eva Luna (Eva Luna)

·         1991 - El plan infinito (O plano infinito)

·         1995 - Paula (Cartas a Paula)

·         1998 - Afrodita (Afrodite)

·         1999 - Hija de la fortuna (Filha da fortuna)

·         2000 - Retrato en sepia (Retrato a sépia)

·         2002 - La ciudad de las bestias (A cidade das feras (Brasil), A cidade dos deuses selvagens (Portugal))

·         2003 - El reino del dragón de oro (O reino do dragão de ouro)

·         2004 - El bosque de los pigmeos (O bosque dos Pigmeus)

·         2005 - El Zorro (Zorro, começa a lenda)

·         2006 - Inés del alma mía (Inés da minha alma)

·         2007 - La suma de los días (A soma dos dias)

·         2009 - La isla bajo el mar (A ilha sob o mar)

·         2011 - El Cuaderno de Maya (O Caderno de Maya)

·         2014 - El Juego de Ripper (O Jogo de Ripper)

·         2015 - El amante japonés (O Amante Japonês)

·         2017 - Más allá del invierno (Para além do inverno)

·         2019 - Largo Pétalo de Mar (Longa Pétala do Mar)

·         2020 - Mujeres de Alma Mía" (As mulheres de minha alma)

·         2021 - Violeta

Memórias

·         2003 - Mi país inventado (O meu país inventado)

Contos

·         1984 - La gorda de porcelana

·         1989 - Cuentos de Eva Luna (Contos de Eva Luna)

Teatro

·         El embajador (representada no Chile em 1971)

·         La balada del medio pelo (1973)

·         Los siete espejos (1974)


quarta-feira, 14 de julho de 2021

O Gênio e a Deusa - Aldous Huxley

 POR GUIDO AZEVEDO
 
Aldous Huxley   26/07/1894 - 22/11/1963 
 
Aldous Huxley era neto do proeminente biólogo Thomas Henry Huxley e era o terceiro filho do biógrafo e homem de letras Leonard Huxley;  seus irmãos incluíam o fisiologista Andrew Fielding Huxley e o biólogo Julian Huxley .
 Ele foi educado em Eton, internato inglês que deu 19 primeiros ministros. período em que ficou parcialmente cego por causa de ceratite. Ele manteve a visão o suficiente para ler com dificuldade e se formou no Balliol College, Oxford, em 1916. Publicou seu primeiro livro em 1916 e trabalhou no periódico Athenaeum de 1919 a 1921. Depois disso, dedicou-se em grande parte à própria escrita e passou grande parte de seu tempo na Itália até o final dos anos 1930, quando se estabeleceu na Califórnia.
Huxley se estabeleceu como um grande autor já nos dois primeiros romances publicados, sempre de modo satírico e inteligente, espirituosas e maliciosas sobre as pretensões dos círculos literários e intelectuais ingleses de sua época. Ele sempre se preocupou com os impactos negativos e positivos da ciência e da tecnologia na vida da humanidade e antecipou as grandes ideias sobre a conquista do espaço, evolução do controle social e das restrições às liberdades individuais, tornando-se um dos escritores e intelectuais mais representativos do século XX.
 
LIVROS:
 Admirável Mundo Novo    --------Sociedade do Cansaço-----A Ilha ---------As Portas da Percepção ---- Não Verás país nenhum --- A situação Humana --- Folhas Inúteis --- Contraponto --- Visionários e Precursores --- A primeira e última Liberdade --- Música na Noite --- Moksha --- Também os Cisnes Morrem --- O Tempo deve Parar --- Regresso ao Admirável Mundo Novo --- O Despertar do mundo Novo --- O Macaco e a Essência --- Sem Olhos em Gaza --- A Filosofia Perene.  

Eu e Huxley
Saudade de minha juventude e do tempo em que lia como forma de vida, lia para viver muitas vidas, o mais rápido, o mais profundo. Lia e não discutia, não contrastava, não me contrapunha a tudo, como fazia na vida real. A letra de forma era uma verdade que absorvia sem competência para arguir, era pura formação intelectual e pessoal.
Tive sorte, muita sorte porque as estantes da Biblioteca Bruno Accioly eram vizinhas à minha casa. Fazendo um parêntese, estou em dívida por não trazer Bruno Accioly ao grupo, meu conterrâneo, morreu em 66 e é considerado um dos maiores contistas brasileiros. Depois eu conto por que ele, que tem seu centenário comemorado esse ano, nunca foi um dos meus prediletos.
Mas a sorte foi a qualidade do que li nesse tempo e sinto saudade. Aldous Huxley é um deles. Um mestre, lia e me enebriava, pouco compreendia, mas vivia cada aventura, cada dúvida existencial, transformando em pessoal os problemas dos personagens, rindo e chorando vivendo por eles, uma vida dos outros que acumulava como sentimentos.
Huxley embora inglês, de família nobre, que incluía os mais distintos membros da elite social e intelectual inglesa, passou grande parte de sua vida nos Estados Unidos, era quase cego, cético, humanista e de uma cultura enciclopédica.
Quantas dúvidas existências estão registradas nos seus livros. Sempre mostrando as discrepâncias entre o idealizado e o vivido, entre a história e a verdade como foco de reflexões. Ainda hoje me questiono, como tanto conhecimento cabia em uma vida? Por que os escritores do início do século XX eram tão cultos, guardavam uma visão tão humanista, trabalhavam com valores tão sólidos? Esses valores que foram se alargando, se superficializando, até virarem um verniz de colorir, que hoje administramos, e que a cada geração parece se esvair mais um pouco. Embora no conjunto geral da ciência estejamos a evoluir a velocidade incrível, parece que essa percepção é permanente e fruto da mudança de gerações.
Sinto hoje, o que ele descrevia e eu não concordava que minha geração era mais ignorante que a anterior e me prometi ser mais indulgente com as gerações futuras. No entanto, hoje já não tenho essa certeza, vendo o conhecimento ser transferido para motores lógicos manobrados por inteligência artificial que acham respostas surpreendentes, mas não ensinam o caminho nem acrescentam saber, são mudanças próprias das gerações.
Lembro a naturalidade com que me imaginava muito distante da sociedade “perfeita” que ele descrevia no épico Admirável Mundo Novo e tinha dúvida que seria factível em minha estada no mundo.
O romance apresenta uma visão de pesadelo de uma sociedade futura na qual o condicionamento psicológico forma a base para um sistema de castas cientificamente determinado e imutável que, por sua vez, oblitera o indivíduo e concede todo o controle ao Estado Mundial. Nele, a servidão seria aceitável devido a doses regulares de felicidade química e ortodoxias e ideologias seriam ministradas em cursos durante o sono.
Eu não tinha resistência a qualquer tipo de futuro que se apresentasse naquele tempo, mas também vestia a capa do herói que foge com sua amada para viver uma vida mais natural na floresta, junto aos selvagens, buscando recriar uma velha sociedade de liberdade e amor. Acreditava que a realidade seria muito diferente da imaginado pelo escritor. No entanto, ele indicava para onde estávamos indo.
Huxley sempre me pareceu como um professor e pensador voltado para a educação da humanidade, sem filosofia profunda, só com aforismos e verdades nos seus livros para serem refletidas e assimiladas para o bem da humanidade, não via maldade ou pessimismo, apenas alertas.
Não achava, nada supérfluo ou exagerado e suas colocações sempre me foram muito gratas, até quando se excedia em mescalina e desejava que as igrejas as dispusessem para seus fieis chegarem mais perto de Deus, eu concordava. 
Não imaginava que viveria para ver as ideologias serem derramadas com ódio pelos meios de comunicação e pelas redes sociais, sem o lenitivo da química. Que a servidão seria tão corriqueira, que os contemporâneos nem se perceberiam servos. Que a felicidade química seria tão cara e cada vez mais perseguida, de modo arbitrário, como fuga pessoal da realidade e não como modo de buscar o sublime, como ele defendia nas Portas da Percepção. No entanto, ele avisara e mostrava para onde estávamos indo com acerto e inteligência.
De “Sem Olhos em Gaza” só lembro o peso, a cor e o cheiro do livro. Não devo ter entendido quase nada das elucubrações mentais e discussões filosóficas. Sei que me transferiu uma simpatia por Gaza e seus habitantes até hoje. Não conhecia o livro O Gênio e a Deusa.
Perdoem as reminiscências.
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 O Gênio e a Deusa – Aldous Huxley   
O Gênio e a Deusa foi a penúltima das doze ficções de Aldous Huxley, escrita em sua última década de vida, tem poucos personagens e menos digressões e referências a outras formas de cultura, não tem maiores testemunhos e conflitos de ideias, é mais uma vivência comparada, dizem seus críticos.
O mal da ficção disse John Rivers é que ela faz sentido demais. A realidade nunca faz sentido.” Diz o personagem e narrador em primeira pessoa, contando ao amigo da família, escritor que o visita na época de natalina, ambos em idade avançada, episódio épico de sua vida, sob a falsa garantia de não revelar ao público.
Ao que o escritor, que não é nomeado, pergunta. Nunca? E ele responde Talvez para Deus; para nós humanos, nunca. “A ficção tem unidade, a ficção tem estilo. A realidade não possui nem uma coisa nem outra. Em seu estado bruto, a existência é sempre um infernal emaranhado de coisas”.
“O critério da realidade é sua incongruência intrínseca.... Por estranho que pareça, as ficções mais vizinhas da realidade são sempre as que se têm por menos verossímeis – Inclinou-se e tocou a lombada de um surrado exemplar de Os Irmãos Karamazov. – Isto faz tão pouco sentido que chega a ser quase real.”
Mostrando na estante o livro A Vida de Henry Maartens comenta que é ficção oficial ao invés da biografia oficial. Perguntado pelos fatos verdadeiros da vida de Maartens, ele diz que a verdade é sempre mais complexa e promete contar a versão correta ao amigo, mas não para o público, embora, prefira confiar as filhas à Casanova que segredos a um romancista.
Quando ele conta a história de O Gênio e a Deusa está na faixa de sessenta anos, vendo fatos de seus vinte e oito com melancolia e indignação. Diz que se achava “Bronco, tímido e profundamente provinciano” e de repente foi submetido a uma realidade que lhe forçou uma expansão, um aprofundamento dos sentidos e das emoções, sem nenhuma preparação.
A qualidade da conversa, a precisão dos textos, a concisão do diálogo me encanta em Huxley, é como se estivesse o leitor ali ao lado, observando a conversa. Ele não dialoga com o leitor como faz com frequência Machado, ele supõe um leitor presente e vai fumando seu cachimbo, bebendo seu uísque, calmamente e contando sua história, que inicia até com certa pasmaceira, sem pressa, sem aventura, um rememorar de juventude. 
Rivers se achava nessa época um jovem inexperiente cientista atormentado pelo sentimento de insuficiência, filho único, educado pela mãe luterana viúva dentro de rígidos princípios morais e religiosos, foi arrancando de sua realidade comezinha após ser aprovado em exame cujo prêmio foi um estágio junto ao famoso cientista Henry Maartens para auxiliá-lo em algumas pesquisas, por tempo limitado e salário ínfimo.
Com muita relutância, muitas orações e recomendações, a mãe aprovou a saída do filho de casa. A chegada de Rivers na residência dos Maartens, é um caso à parte, e prenuncia uma convivência problemática. Parado na sala por cinco minutos, ninguém da família o percebe, mesmo após seus sinais.  Todos parecem alheios ao mundo. No entanto ele é bem aceito, identificado e integrado à família com certa facilidade. Na casa habitavam o casal Henry e Katy, os filhos Ruth e Timmy que tinha hobbys específicos e estranhos e a empregada Beulah que orquestrava a harmonia geral.
Rivers analisa Henry, como sendo um gênio intelectual, uma criança insegura na vida regular e um retardado nas ralações humanas e sociais.   A Ruth tem como ocupação predileta rascunhar poemas de gosto duvidoso e Timmy vivia eternamente na construção de uma ferrovia de brinquedo que as pessoas teimavam em desmantelar ao se deslocarem pela casa. A Katy era o centro de comando da casa. Lia e cozia, decidia o que os outros tinham que fazer e ainda estimulava Maartens a desenvolver suas teorias avançadas de física nuclear e o suportava em suas crises de asma e depressões doentias.
Rivers conta que consegue responder bem no apoio aos estudos científicos de Henry, e em casa é assumido com faz tudo e apoio operacional da casa. Não se fala se ele é remunerado, mas apenas que foi integrado à família como se fosse um Maartens. Não o deixam se mudar quando consegue um quartinho para viver e lhe colocam tarefas domésticas de acompanhamento didático dos filhos, dirige para Henry e acompanha Katy em suas atividades externas.
Além disso, Rivers fala dos conflitos adolescentes de Ruth, com seus poemas crus e viscerais acompanhados pela maquiagem forte e insinuações de paixão e revolta; de como o professor Henry era um gênio em seu campo de átomos e mais infantil que o filho; de Timmy, o membro da família mais normal; de Beulah, a empregada, que faz as coisas acontecerem na casa e outras narrativas um pouco exaustivas e quase cansativas. Essa primeira parte do livro cheguei a achar chata e sem emoção. Mas era um encaminhamento para a aventura principal da trama.
Kate, que comandava com maestria a casa, como se tocasse uma sinfonia, sustentava as despesas domésticas e criava conexão entre o professor e o mundo concreto. Ele tinha idade para ser pai dela e estava noiva de um idiota rico, quando o conheceu. Não sabe o que aconteceu, mas em coisa de semanas, deixou o pai, os pretendentes ricos e a fazenda para casar-se com Henry e se tornar involuntariamente seu provedor.
“Mas nada parecia abalar Katy, mesmo algumas crises de Ruth não a incomodavam, nem o comportamento apático do marido, é como se estivesse noutra realidade onde o mundo ‘real’ fosse apenas uma passagem e seus percalços meras intempéries climáticas.”
O convidado pergunta a John Rivers: “você era apaixonado por ela? – Perdidamente”, falou com um misto de tristeza, saudade e admiração.
Porém, um fato perturbou a vida dos Maartens: a mãe de Katy adoeceu, e a filha viajou em seu socorro. Sem suportar a ausência dela, Henry, que usa costumeiramente a asma e a febre como estratégia de sugar a energia de Kate e força-la a se dedicar a ele, novamente mergulha em enfermidades com uma febre forte, mas Beulah, recorda Rivers, o advertiu de que era cena para forçar a esposa a retornar logo e que já funcionou em ocasião semelhante.
A arquitetura do romance chega ao ápice nesse momento do retorno de Katy para casa para salvar seu marido que se encontra em estado terminal. Na noite em que retorna, receba a notícia do falecimento de sua mãe e desaba em sua mais profunda tristeza.   Agora com sua mãe morta e seu marido às portas da morte, cansada e triste ela perde toda a energia, fica estranha, sem aparentar a força de antes, como se tivesse perdido a luz, a força da deusa,  perdido a graça divina,  como aponta Beulah.
Á noite, aos prantos, ela procura consolo ao lado de Rivers e acabam tendo um prazeroso relacionamento sexual, que desencadeia uma tempestade de emoções, abre um conflito de sentimentos, de autojulgamento, de decisões não realizadas, de buscas, de exaltação do amor como fonte de poder divino, como elixir de salvação, redenção e condenação. Tudo isso na cabeça de Rivers, que não consegue superar sua formação materna, luterana.
São descritas com maestria as posições antagônicas das partes, frente ao relacionamento sexual extraconjugal. A de Kate, autentica, pessoal e benfazeja, capaz de restituir-lhe a vida, a energia, a graça divina sentida e demonstrada ao retomar seu poder e se reconfigurar como outrora e, do outro lado o sofrido Rivers envergonhado do próprio sentimento, incapaz de aceitar sua própria condição de apaixonado, subindo até o êxtase corporal, mas maculando-se com as recriminações dos valores morais da sua mãe.
Assusta-se como sacrílego ao perceber o poder, a força e a grandiosidade natural de Kate, mas recrimina-a, julga-a e tenta corrigi-la segundo sua cartilha que lhe impõe um sacrilégio em seu catecismo.  Com pequenas atitudes de julgamento, cria condições desarmoniosas entre Kate e a filha, o que acabar produzindo uma tragédia, que o faz se sentir culpado e reconhecer sua pequenez diante da vida, levando-o a grande depressão.
As páginas 73 até a 91, são memoráveis, puro deleite, com uma discussão fina, filosófica profunda, sutil, inteligente e esclarecedora.
Huxley sempre me deixa assim, meio extasiado. Como se é capaz de ir tão profundamente na alma humana? Como ele é capaz de dizer o sentimento de pessoas tão antagônicas? e refletir sobre suas dúvidas e sofrimentos, a partir de pontos de vistas tão diferentes?  
“A verdade é a libertação; mas, por outro lado, não é prudente acordar o cão que dorme e muito menos provocar o que não dorme”.
“Convém ter em mente que as guerras mais implacáveis não são as que se travam em nome das coisas; e sim as que se travam em torno das tolices que idealistas eloquentes disseram sobre as coisas.    em outras palavras, as guerras religiosas. ... “Que ledes meu senhor?” “Palavras, palavras, palavras” E o que faz uma palavra? Resposta: Cadáveres, milhões de cadáveres”.
Ao final, o romance surpreende pela sequência violenta de acontecimentos que podem ser analisados à luz das suas palavras iniciais: “O mal da ficção é que ela faz sentido demais. A realidade nunca faz sentido.”
Esta geometria nos livros de Huxley, que inicia formando um triângulo com ele antes de Kate, Ele hoje e Kate, para mostrar como se transformou com sua convivência e se perdeu totalmente depois dela, sendo salvo por Elena sua atual mulher, que dá significado à parábola de Cristo: “Que os mortos enterrem seus mortos. Se quisermos viver cada instante tal como ele se apresenta, temos de morrer para todos os outros instantes”.  
E Rivers termina de contar de seu tempo com os Maartens indicando que ele teve mais duas esposas e que morreu com mais de 80 anos e hoje é pó e livros.
Recomendo.   11/07/21