segunda-feira, 26 de outubro de 2020

AMOR

de Clarice Lispector, em Laços de Família (1960)

por Maria Albeti Vitoriano


      Clarice Lispector (Chaya Pinkhasovna Lispector) nasceu na Ucrânia, em 10/12/1920, e faleceu em 09/12/1977, no Rio de Janeiro. Naturalizou-se brasileira, considerava o Brasil sua pátria, com carinho especial pelo estado de Pernambuco, onde viveu sua infância e parte da adolescência. 

       Estudou Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seu maior interesse, porém, era pelo meio literário, onde ingressou como tradutora. Desde a publicação de seu primeiro romance, tornou-se conhecida como escritora, jornalista, contista e ensaísta. Escreveu romances, contos e ensaios, sendo considerada uma das escritoras mais importantes da literatura brasileira. Tornou-se uma das principais influências da nova geração de escritores brasileiros e é considerada a maior escritora judia desde Franz Kafka. 

       Em 1940, aos dezenove anos, publicou seu primeiro conto, “Triunfo”, onde descreve os pensamentos de uma mulher abandonada pelo companheiro. Suas principais obras são:  Perto do Coração Selvagem, livro de estreia, publicado em 1943; Laços de Família; A Paixão segundo G.H; A Hora da Estrela e Um Sopro de Vida. 

       Nos livros Laços de Família (1960) e A Legião Estrangeira (1964) estão reunidos contos escritos e publicados em diferentes épocas, os quais de forma definitiva marcam seu estilo e mostram sua transformação como pessoa. Casada com um colega de faculdade, que se torna diplomata, cumpre os papéis de esposa, mãe e dona de casa, funções que são esperadas para uma mulher naquela época. No entanto, esses papéis, a convivência no círculo diplomático, as mudanças constantes de local de residência, tudo isso fez com que ela se sentisse uma estranha, em um lugar ao qual não sentia pertencer. Em determinado momento, no ano de 1959, decide pedir a separação e voltar para o Brasil, numa época em que não existia o divórcio no país.

     O pensamento libertário e a sensibilidade de Clarice Lispector estão presentes na sua obra. Nela, os personagens, mulheres em geral, são colocados diante de alguma situação inusitada, não esperada, que lhes causa espanto. Alguns críticos chamam essa situação de “epifania”, outros preferem “revelação” ou até mesmo “assombro”. Nos textos da autora, o ser humano, por vezes distraído, se defronta com algo que lhe faz confrontar sua forma habitual de viver.

       Nos contos de Laços de Família, os personagens, na maioria mulheres, vivem alguma situação que lhes faz repensar sua vida e questionarem sua existência e suas ações. Em “Amor”, talvez o conto mais conhecido e emblemático de Clarice Lispector, tem-se uma dona de casa que passa por uma ruptura na sua forma de ver o mundo e começa a fazer questionamentos sobre sua vida. O conto é narrado na terceira pessoa, o narrador é do tipo onisciente, portanto, consegue acessar as emoções, sentimentos e as conversas interiores da personagem.

     Trata-se de Ana, que vivia uma rotina tranquila, com o marido, filhos e os afazeres domésticos. A autora descreve a mulher como uma dona de casa dedicada, faz referência ao “novo saco de tricô”, que deve ter sido feito por ela, “as cortinas que ela mesma cortara”, enfim, mostra sua dedicação aos serviços domésticos e a todas as pessoas que a rodeiam.  Entrega-se à casa, ao marido e aos filhos da melhor forma possível e entende que “[...] plantara as sementes que tinha nas mãos, não outras, mas essas apenas”.

      No entanto, sob essa dedicação, sob essa tranquilidade, havia inquietações que, em “certa hora da tarde”, tornavam-se mais perigosas, quando a casa estava toda arrumada, os filhos na escola, o marido no trabalho e ninguém precisava dela. Nesses momentos, ela tinha “necessidade de sentir a raiz firme das coisas” e refletia sobre sua juventude, suas escolhas e concluía que, mesmo “por caminhos tortos”, tornara-se adulta. Na verdade, “assim ela o quisera e escolhera”, uma certeza que precisava ser sempre reafirmada para poder se proteger contra “a hora perigosa da tarde”. Para fugir desse perigo, todas as tardes saía para fazer compras, retornando ao “fim da hora instável”.

      Em uma dessas tardes, ao voltar para casa, de dentro do ônibus ela avista um homem cego mascando chiclete. Essa visão lhe causou um impacto tão forte que, quando o ônibus deu a partida, um pouco abrupta, ela perdeu o equilíbrio e deixou cair as compras. Entre elas estavam os ovos para o jantar, que se quebraram, tal como ela, ao descobrir que o “mal estava feito”. A que mal ela se refere? À dor de abrir os olhos para uma realidade que ela sabia existir, mas que não queria ver?

      E qual a razão desse choque causado pela visão do “cego mascando chiclete”?  Talvez ela tenha compreendido sua própria cegueira diante da vida, que seguia uma rotina repetitiva, assim como o mastigar do cego. Como ele, ela estava vivendo na escuridão, repetindo a mesma rotina, “tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro”. A visão do cego rasgou o véu que cobria seus olhos para algo além do seu mundo.  E ela cai numa bondade extremamente dolorosa, de que sente nojo e vergonha. 

      Percebe-se que a autora utiliza palavras que expressam contradição, provavelmente para demonstrar sentimentos dolorosos e conflitantes que assaltam a personagem. Ao mesmo tempo que sente bondade, sente a dor dessa constatação, pois o ser humano não se transforma se não deixar algo para trás, e isso na maioria das vezes causa dor. Além disso, sente-se enojada e envergonhada por, de repente, renegar sua vida tranquila e sem sobressaltos que tanto quisera e que escolhera.

      Ao descer do bonde, além do seu ponto de parada, sentiu “ter saltado no meio da noite”, tal a escuridão em que se viu envolvida. Percebendo que estava próxima ao Jardim Botânico, resolveu entrar, o que lhe causou a sensação de "ter caído numa emboscada". Que emboscada seria essa? A da própria vida ou a da vida ao mesmo tempo organizada e pulsante do Jardim Botânico? Naquele local, a natureza se mostrava em todo seu esplendor e a vida cumpria o seu ciclo – nascimento, crescimento e morte. E ela se sente deslocada frente a essa realidade cuja presença é tão forte e envolvente. 

      Mais uma vez surgem os sentimentos de bondade, de piedade, mas também de nojo, que pode ser entendido, no sentido mais arcaico, como desgosto, pesar, tristeza, mal-estar. Sente um impulso de mudança, mas se lembra que o marido, os filhos e os irmãos lhe esperam para o jantar. Portanto, precisa voltar para casa e cumprir com suas tarefas de dona de casa. 

     Apesar de saber que precisava retornar “ergueu-se com uma sensação de dor”, sentia que estava prestes a entrar em um “desastre”, por isso corre até o elevador, pra não ter qualquer tentação de atender ao chamado que o cego lhe apresentou.

    Mas tudo isso era inútil, algo havia se quebrado dentro dela; abraça o filho, de forma sufocante, pra se agarrar a alguma missão no seu mundo anterior, que agora parecia ser tão diferente, após ela ter vislumbrado,  por algumas horas, muitas possibilidades além dele.

      Sente-se deslocada, até que novo despertar – um barulho forte na cozinha – lhe trouxe de volta ao papel de dona de casa, de responsável pelo bem estar de todos. Finalmente, é pela mão do marido, que lhe dá segurança e amor, que ela tentará apagar a chama que foi acesa naquela tarde. Conseguirá ela retornar completamente ao seu pequeno mundo?  

     Em Laços de Família, onde se encontra o conto “Amor”, Clarice Lispector descreve pessoas comuns envolvidas em situações corriqueiras. Por meio delas consegue demonstrar sutilezas da natureza humana. A autora explora, principalmente, situações em que algum personagem se depara com algo que lhe causa uma ruptura, uma descoberta de novas possibilidades de ação diante da vida. 

     No conto “Amor”, pode-se encontrar diversas expressões com sentidos antagônicos, paradoxais, tais como “bondade extremamente dolorosa”, “era fascinante e ela tinha nojo”, “demônio da fé” e muitas outras. Acredito que a autora utiliza essa oposição de ideias e, principalmente, de emoções para demonstrar os conflitos, o turbilhão mental e emocional em que se encontra a personagem principal. 

      Por meio dessas situações cotidianas, são explorados pensamentos e sentimentos do ser humano que nos levam a refletir. A autora apresenta muitas questões e não resolve muitas dúvidas, deixando para o leitor encontrar suas interpretações, que, na maioria das vezes, não são fáceis ou são, até mesmo, impossíveis de decifrar. Os contos não estão presos a uma época ou a determinado local, pois tratam, acima de tudo, do sentimento humano, principalmente do universo feminino.

       Neste conto, pode-se perceber a estatura de Clarice Lispector, uma escritora que deixou uma obra vasta e diversificada que, acredito, ainda não foi devidamente explorada em toda sua plenitude e, talvez, nunca o seja. Cada um dos seus escritos será lido, interpretado e percebido de diferentes formas e em espaços sociais e históricos variados. Com certeza, a autora se coloca ao lado dos grandes escritores da sua época, não apenas na língua portuguesa. 

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2 comentários:

  1. Reflexão ampliadora, destaco especialmente o resgate da acepção da palavra “ nojo” : “ mas também de nojo, que pode ser entendido, no sentido mais arcaico, como desgosto, pesar, tristeza, mal-estar” , como essa percepção adiciona outra camada a leitura dos sentimentos de Ana !

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  2. Resenha perspicaz de Maria Albeti, perfeita. O conto trata das escolhas que fazemos na vida e definem o nosso futuro, e que adiante, transformam-se em rotinas, dúvidas, inquietações, despertadas muitas vezes por coisas pequenas,um fato inusitado... e o medo,traduZido por nojo, que esse despertar traz consigo. É o fim da cegueira. Medo esse que se dissipa -será?- ao fim do conto, quando o marido segura a mão de Ana, "levando-a consigo, sem olhar pra trás, afastando-a do perigo de viver". É um conto denso, forte, apesar da leveza na redação de Clarice Lispector. Uma obra-prima.

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