terça-feira, 22 de dezembro de 2020

O Aleph

de Jorge Luís Borges




por Ana Lucia Rocha Studart


SOBRE A OBRA - O Aleph é um conto de Jorge Luís Borges que  se insere no conceito do realismo mágico. O enredo é interessante, e acontece entre dois personagens que disputam tanto o amor da mesma mulher quanto o sucesso como escritores. O conto foge à realidade a partir do momento em que a existência do Aleph é revelada. 


No seu conto, Borges define a palavra Aleph como “a primeira letra do alfabeto da língua Sagrada. Para a Cabala, essa letra significa o En Soph, a ilimitada e pura divindade” O milagroso Aleph do conto, Borges descreve como “o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do orbe, visto de todos os ângulos”.


No caminho de preparar a resenha, percebi que o Aleph é mais popular do que eu imaginava, porque para um outro escritor, Paulo Coelho, vinculado a textos mágicos e autor de O Alquimista e de outro livro chamado Aleph,  o Aleph pode até levar a uma outra dimensão: " É o ponto onde tudo está no mesmo lugar ao mesmo tempo, diante do qual abrem-se portas, por fração de segundo, e logo tornam-se a fechar, mas permitem desvelar o que está escondido atrás delas - tesouros, armadilhas, caminhos não percorridos etc".


O Aleph, no conto de Borges, localiza-se no porão escuro e minúsculo de uma casa antiga, onde, deitado no chão, com a cabeça sobre uma bolsa dobrada em local preciso, e olhando para certo degrau de uma escada, pode-se ver, simultaneamente, todos os pontos do universo. Esse ponto estaria “numa pequena esfera furta-cor, de quase intolerável, fulgor…com diâmetro de 2 ou 3 centímetros, mas o espaço cósmico estaria aí, sem diminuição de tamanho…Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinita coisas, porque eu via claramente todos os pontos do universo”.


O interessante é que o autor, como grande escritor que é, relata a dificuldade de expressar, em palavras sequenciais, algo que tanto o maravilhou no Aleph: 

“O que viram meus olhos foi simultâneo. O que transcreverei, sucessivo… Como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca?”.


A ESTRUTURA - Na publicação “Jorge Luis Borges, Obras Completas I”, o conto está impresso em 13 páginas, e foi publicado pela primeira vez em 1949, sendo considerado um dos melhores contos de Jorge Luis Borges. Tem descrições primorosas e densas de locais e personagens. A escrita é elegante, ritmada, leve, de fácil leitura, com toques de humor e ironia.


O PDV -  É o do autor, que se coloca como um dos personagem no conto.                                                                                    

A AMBIENTAÇÃO do conto é na  Argentina, Buenos Aires, rua Garay, casarão dos Viterbo, onde viveu Beatriz e onde vive Daneri. Se passa nos anos 30/40.                        


OS PERSONAGENS são apenas três:

- O próprio Borges, que embora não se refira diretamente ao seu personagem, deixa transparecer sentimentos de paixão, ciúme e inveja.                             
                                                                                                                                                       
- A falecida Beatriz Elena Viterbo, que já se encontra morta ao se iniciar o conto, mas sempre presente em fotos e na paixão de Borges. Além disso ela impulsiona o enredo, com as visitas anuais que Borges faz ao primo dela, na data de seu aniversário. Ele a descreve primeiro como “alta, frágil, ligeiramente inclinada” com um andar de graciosa lentidão, um princípio de êxtase”. Adiante, é mais critico: “…mas havia nela negligências, distrações, desdéns, verdadeiras crueldades que talvez reclamassem explicação patológica.”             
                                                                                                                                                        
- E Carlos Argentino Daneri, bibliotecário, primo de Beatriz e proprietário do Aleph, por morar na casa onde ele se situa. Daneri é assim descrito por Borges:  um ser “rosado, robusto, encanecido, que exerce um cargo subalterno numa biblioteca de suburbia…É autoritário e também ineficiente…Sua atividade mental é continua, apaixonada, versátil, e completamente insignificante”. Daneri, trabalha há anos numa extensa obra, o Canto Augural de um poema  chamado A Terra, que trata da descrição do planeta.  Mais tarde o leitor conclui que sua inspiração para o longo poema vem das incursões dele ao  Aleph. Ao ouvir trechos da obra, Borges considera as idéias de Daneri pomposas, e as estrofes de seus poemas sem nada de memorável.  Critica sua ostentação verbal: “A palavra leitoso não era bastante feia para ele….preferia lactário, lactinos, lactescente, leital..”  Sua aversão a Daneri produz esse comentário, no momento em que desce pela única vez ao sótão mágico:”Subitamente compreendi meu perigo. Deixara-me soterrar por um louco, depois de tomar um veneno”. (O veneno seria o licor que bebera pouco antes e que ele mesmo havia presenteado a Daneri). Em determinado ponto confessa: “No fundo, sempre nos detestamos.                                                                                                                                                        
O ENREDO- O conto se inicia com o falecimento de Beatriz e Borges avaliando a morte, com a pesarosa constatação de que o mundo continuará se modificando e se distanciando da realidade de Beatriz em vida. Painéis de rua modificados no dia da sua morte   teriam mostrado a Borges que “o incessante e vasto universo já se afastava dela, e que essa mudança era a primeira de uma série infinita. Mudará o universo, mas eu não”, E assim ele estabelece magistralmente a presença de Beatriz durante quase todo o conto.                                                                                                                                                    
Borges decide que todos os anos, no dia de aniversário de Beatriz, ele, como  homenagem, deveria visitar “a casa da rua Garay”, onde Beatriz morou com seu pai e seu primo-irmão, Carlos Daneri, ocasião em que mataria saudades de Beatriz apreciando suas  elegantes fotografias, que descreve em pormenores no conto. Com o passar dos anos, esses encontros ese prolongam e ele se torna intimo de Daneri, apesar do desprezo com que o descreve. A impaciência de Borges ao ouvir os poemas de Daneri se revela: a dicção é extravagante, com lentidão métrica. E o desprezo é reciproco- Borges se imagina convidado a escrever o prefácio do poema de Daneri, mas acabou convidado a solicitar que outro escritor, um “homem de letras”, o prefaciasse.                                                                                                                                                                        
O Aleph torna-se central na história no momento em que a casa da rua Garay, alugada, vai ser demolida pelo proprietário. Daneri confidencia a Borges que, para terminar seu poema, precisava do Aleph e, em consequência, da casa. Daneri descobrira o Aleph na infância, e nunca o revelara a ninguém. Agora, perto de perdê-lo, permitiu acesso a Borges. E promete: “E em breve poderás estabelecer um diálogo com todas as fotos da Beatriz.”   
                                                                             
A descrição da experiência de Borges é detalhada. Ao descer ao porão caiu da escada. Com a cabeça sobre a bolsa, e  Daneri indicando que Borges deveria contar os 19 degraus da escada, porque ali veria o Aleph, ele sai e deixa Borges em meio à escuridão. O relato da experiência de Borges toma conta de mais de duas páginas do conto, e é uma avalanche de visões, mas tudo redigido com um toque de poesia, transmitindo emoção ao leitor. E ele conclui:”vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem, e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjectural, cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.” Depois dessa visão, Borges receia que não restasse  uma única coisa capaz de surpreende-lo, e “felizmente, depois de algumas noites de insônia, agiu outra vez sobre mim o esquecimento.”

DESFECHO: O pós-escrito, redigido 6 meses depois da demolição da casa da rua Garay, vem con interrogações: teria Daneri escolhido o nome Aleph devido a revelações  do próprio Aleph durante as visões que teve? Seria o Aleph da rua Garay um falso Aleph? E para corroborar sua suspeita, enumera uma série de possibilidades, como um espelho do oriente onde em seu cristal refletia-se o universo inteiro, e a  mesquita no Cairo, que teria o universo em uma de suas colunas de pedra. No ultimo parágrafo fala do esquecimento: teria ele visto essa coluna de pedra na sua viagem pelo Aleph, e a teria esquecido? ”Nossa mente é porosa; eu mesmo estou falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz.”                           
Borges coloca no conto duas  notas de rodapé, uma onde transcreve uma quadra do poema de Daneri e a critica, e outra, já no pós-escrito, relatando uma carta onde Daneri, premiado por publicar trechos de seu longo poema, tripudia de Borges: “Bufas, meu lamentável amigo, de inveja”. A obra de Borges, Los Naipes del Tahur, não conseguiu um único voto. Ao que Borges desabafa: “Uma vez mais, triunfaram a incompreensão e a inveja”.    
   

OBSERVAÇÕES: O realismo mágico apresentado em conto de um autor erudito como Jorge Luis Borges, suscita uma série de associações e interpretações aos seus leitores e críticos. Assim, há quem veja uma série de metáforas nele. Beatriz Elena  seria a Beatriz que conduziu Dante do purgatório ao paraíso.  E o Elena remeteria à cultura clássica, grega, e seria uma crítica aos escritores contemporâneos. O Aleph seria uma metáfora para a literatura, que leva o leitor a incontáveis lugares. E a suspeita que Borges  levanta  dizendo que o Aleph reside em uma coluna, seria um tributo à erudição formal…O próprio  Borges, no epílogo de suas obras completas, observa que o Aleph teve alguma influência do conto “The Crystal Egg”, de Wells. O conto trata de um ovo verde de cristal, propriedade do dono de uma loja de antiguidades, onde alguns poucos viam imagens da vida em Marte.                                                                                   

Sabe-se, com certeza, que Borges aprecia a ideia da unidade na multiplicidade, e que isso se repete em sua obra. Em outro  conto,  “A Biblioteca de Babel”, onde, num espaço reduzido, estariam contidos todos os livros. Borges associa o universo a uma biblioteca e descreve o homem como “um imperfeito  bibliotecário… mas o universo, com o seu elegante provimento de prateleiras, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante, e de latrinas para o bibliotecário sentado, somente pode ser obra de Deus.”                                                               

Esse menosprezo pelo bibliotecário se repete também  no Aleph, e seria uma crítica ao próprio autor e à profissão, porque Borges, como o desprezível Daneri do conto,  fora por um período da vida bibliotecário e depois diretor de biblioteca.                

Outros temas frequentes em suas obras seriam o infinito, os cristais e os espelhos  No conto A Biblioteca de Babel, ele descreve: “O universo ( que chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido e talvez  infinito de galerias hexagonais e de qualquer hexágono vêem-se andares superiores e inferiores: interminavelmente… no vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências”.  

                                                                             

SOBRE O AUTOR - Jorge Francisco Isidoro Luís Borges nasceu em Buenos Aires, Argentina, no dia 24 de agosto de 1899. Por ter avó inglesa, tornou-se bilingue desde cedo. Aos 4 anos já sabia ler e escrever, e cercado pela erudição da família, aos 9 anos redigiu seu primeiro conto, “La Visera Fatal” inspirado  na obra de Dom Quixote. Aos 10 anos de idade já uma traduzira um conto de Oscar Wilde, publicado em um jornal local.     

                              

Em 1914 mudou-se com a família para a Suíça, para que seu pai pudesse tratar da sua cegueira progressiva. Em 1919, mudaram para Madrid, onde Borges concluiu seus estudos e colaborou com poemas e crítica literária em  várias revistas. O fato de ter morado tão jovem com a família na Europa, lhe proporcionou  uma visão de mundo que poucos jovens teriam naquela época.                                                           

Aos  22 anos volta à Argentina, e a partir daí inicia sua fase de  inspiração surrealista.  Funda, com outros escritores, a revista Proa, e produz várias publicações, mas o reconhecimento de seu talento só se inicia  em 1935, com seu primeiro livro de contos, “História Universal da Infâmia”.


Para sobreviver, Borges trabalhou como bibliotecário em Buenos Aires, até que, em  1946, Perón subiu à presidência da Argentina. Por se opor ao peronismo, deixou o  emprego e, ajudado por amigos,  passou a trabalhar como professor de literatura inglesa e como palestrante e conferencista itinerante. Com a queda do regime peronista em 1955, Jorge Luis Borges foi designado diretor da Biblioteca Nacional.      

              

Borges padeceu do mesmo problemas nos olhos que teve seu pai, e foi aos poucos perdendo a visão. No conto A Biblioteca de Babel, ele lamenta: “agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer, a poucas léguas do hexágono em que nasci.” Quando ficou totalmente cego contou com a ajuda da sua mãe para escrever seus livros, e mais tarde  ditou  palavras para a aluna, assistente particular, e amiga Maria Kodama, com quem se casou aos  86 anos. Passou seus últimos dias viajando pelo mundo ao lado da esposa, e faleceu no dia 14 de junho de 1986, em Genebra, sem ter deixado filhos.                  


O reconhecimento mundial de sua obra teve início em 1961, ao receber o Prêmio Formentor, conferido pelo Congresso Internacional de Editores (prêmio dividido com o escritor irlandês Samuel Beckett). Em 1980, Borges recebeu o Prêmio Cervantes, o mais importante prêmio literário da Espanha, e recebeu prêmios do governo da Itália, da França e da Inglaterra. O Aleph(1949) está entre e seus livros mais conhecidos, junto com  Ficções (1944), e O livro dos seres imaginários (1968).             


CONCLUSÃO - Jorge Luís Borges é considerado um dos escritores mais influentes do século XX e um dos pioneiros do gênero realismo mágico. Em seu conto A Biblioteca de Babel, revela sua insatisfação com a vida, associada a uma biblioteca: “Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude, peregrinei em busca de um livro, talvez o catálogo dos catálogos.” O fato é que suas obras iluminaram e promoveram a literatura latino-americana no mundo. O conto O Aleph foi considerado pelo crítico literário e professor  novaiorquino, Harold Bloom, como uma das maiores obras literárias do ocidente,  e certamente,  este é um conto excepcional. Quem, num texto de apenas 13 páginas (e Borges é afamado pelos seus textos suscintos) levantaria tanta polêmica, tantos comentários, tantos elogios, e tantas metáforas?


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segunda-feira, 23 de novembro de 2020

A Dama do Cachorrinho

de Anton Tchekhov 

(Editora 34, 6a. edição, 2014, Tradução Boris Schnaiderman)

por Alexandre Morais do Amaral

 

“E somente agora, quando sua cabeça já estava ficando grisalha, ele começou a amar de verdade, como deveria e pela primeira vez em sua vida”.


Conto clássico da literatura universal, esta obra é assim considerada pelo estilo singular, conciso e elegante que Anton Tchekhov emprega para descrever situações do dia-a-dia. Em seus contos, não parece haver julgamento moral de nenhum personagem. Os deslizes éticos não são avaliados ou apresentados com viés. Todos os personagens são perfeitamente humanos em suas imperfeições. Na marcante concisão, Tchekhov consegue, já no (curto) primeiro parágrafo, por exemplo, mostrar quem são, onde e como estão os protagonistas e, com isso, o potencial desenvolvimento da história.

Uma característica muito interessante deste conto é a sensação de que as “pontas” foram cortadas: ele se inicia com a impressão de já ter começado antes do escrito e termina sem um fim “definitivo” – o “(in)felizes para sempre” parece um lugar muito distante. Enfim, parece muito uma tentativa de mostrar que a trama já existia antes de entrarmos nela e terminará além daquela história – ou seja, o princípio de que a vida continua – e muitas vezes além do olhar do leitor…

Quanto ao conto em si, o fio condutor da história é a relação que se desenvolve amorosa  (a ordem dos fatores é essa mesma: começa relação, termina amor) entre (Dmítri) Gurov e Ana (Sierguéievna), mas no contexto de adultério para ambos, com as dificuldades inerentes. O casal clandestino se conhece durante visita a uma cidade litorânea, de veraneio, na Crimeia. Assemelham-se nas vidas frustradas, vazias, monótonas e sem perspectivas. Ele, vivendo um casamento oco, sem brilho, e vários “affairs” também ocos ao longo do tempo. Ela, numa vida sem energia, mal sabe o que faz o marido e pouco se interessa em saber – pista suficiente para a superficialidade da relação.  

Interessante perceberem-se as transformações que ocorrem no curto espaço de tempo deste conto: a mudança de Gurov, humanizando-se, a esperança de Ana, renovando-se. A distância geográfica que aparece para ambos, após o veraneio, não é suficiente para distanciá-los: mesmo vivendo em cidades distantes, buscam um meio de preservar a vida do inevitável relacionamento. Como não há o bem e o mal na construção da(s) história(s) (de Tchekhov), fica ao leitor o papel de preencher as lacunas e imaginar o final.

“Eles perdoaram um ao outro tudo aquilo de que se envergonhavam no seu passado, perdoaram tudo do presente e sentiam que seu amor havia transformado a ambos”.

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"A Dama do Cachorrinho" foi publicada originalmente em 1899.  ANTON Pavlovitch TCHEKHOV nasceu em 1860 (Tangarog, Rússia) e faleceu em 1904.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

AMOR

de Clarice Lispector, em Laços de Família (1960)

por Maria Albeti Vitoriano


      Clarice Lispector (Chaya Pinkhasovna Lispector) nasceu na Ucrânia, em 10/12/1920, e faleceu em 09/12/1977, no Rio de Janeiro. Naturalizou-se brasileira, considerava o Brasil sua pátria, com carinho especial pelo estado de Pernambuco, onde viveu sua infância e parte da adolescência. 

       Estudou Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seu maior interesse, porém, era pelo meio literário, onde ingressou como tradutora. Desde a publicação de seu primeiro romance, tornou-se conhecida como escritora, jornalista, contista e ensaísta. Escreveu romances, contos e ensaios, sendo considerada uma das escritoras mais importantes da literatura brasileira. Tornou-se uma das principais influências da nova geração de escritores brasileiros e é considerada a maior escritora judia desde Franz Kafka. 

       Em 1940, aos dezenove anos, publicou seu primeiro conto, “Triunfo”, onde descreve os pensamentos de uma mulher abandonada pelo companheiro. Suas principais obras são:  Perto do Coração Selvagem, livro de estreia, publicado em 1943; Laços de Família; A Paixão segundo G.H; A Hora da Estrela e Um Sopro de Vida. 

       Nos livros Laços de Família (1960) e A Legião Estrangeira (1964) estão reunidos contos escritos e publicados em diferentes épocas, os quais de forma definitiva marcam seu estilo e mostram sua transformação como pessoa. Casada com um colega de faculdade, que se torna diplomata, cumpre os papéis de esposa, mãe e dona de casa, funções que são esperadas para uma mulher naquela época. No entanto, esses papéis, a convivência no círculo diplomático, as mudanças constantes de local de residência, tudo isso fez com que ela se sentisse uma estranha, em um lugar ao qual não sentia pertencer. Em determinado momento, no ano de 1959, decide pedir a separação e voltar para o Brasil, numa época em que não existia o divórcio no país.

     O pensamento libertário e a sensibilidade de Clarice Lispector estão presentes na sua obra. Nela, os personagens, mulheres em geral, são colocados diante de alguma situação inusitada, não esperada, que lhes causa espanto. Alguns críticos chamam essa situação de “epifania”, outros preferem “revelação” ou até mesmo “assombro”. Nos textos da autora, o ser humano, por vezes distraído, se defronta com algo que lhe faz confrontar sua forma habitual de viver.

       Nos contos de Laços de Família, os personagens, na maioria mulheres, vivem alguma situação que lhes faz repensar sua vida e questionarem sua existência e suas ações. Em “Amor”, talvez o conto mais conhecido e emblemático de Clarice Lispector, tem-se uma dona de casa que passa por uma ruptura na sua forma de ver o mundo e começa a fazer questionamentos sobre sua vida. O conto é narrado na terceira pessoa, o narrador é do tipo onisciente, portanto, consegue acessar as emoções, sentimentos e as conversas interiores da personagem.

     Trata-se de Ana, que vivia uma rotina tranquila, com o marido, filhos e os afazeres domésticos. A autora descreve a mulher como uma dona de casa dedicada, faz referência ao “novo saco de tricô”, que deve ter sido feito por ela, “as cortinas que ela mesma cortara”, enfim, mostra sua dedicação aos serviços domésticos e a todas as pessoas que a rodeiam.  Entrega-se à casa, ao marido e aos filhos da melhor forma possível e entende que “[...] plantara as sementes que tinha nas mãos, não outras, mas essas apenas”.

      No entanto, sob essa dedicação, sob essa tranquilidade, havia inquietações que, em “certa hora da tarde”, tornavam-se mais perigosas, quando a casa estava toda arrumada, os filhos na escola, o marido no trabalho e ninguém precisava dela. Nesses momentos, ela tinha “necessidade de sentir a raiz firme das coisas” e refletia sobre sua juventude, suas escolhas e concluía que, mesmo “por caminhos tortos”, tornara-se adulta. Na verdade, “assim ela o quisera e escolhera”, uma certeza que precisava ser sempre reafirmada para poder se proteger contra “a hora perigosa da tarde”. Para fugir desse perigo, todas as tardes saía para fazer compras, retornando ao “fim da hora instável”.

      Em uma dessas tardes, ao voltar para casa, de dentro do ônibus ela avista um homem cego mascando chiclete. Essa visão lhe causou um impacto tão forte que, quando o ônibus deu a partida, um pouco abrupta, ela perdeu o equilíbrio e deixou cair as compras. Entre elas estavam os ovos para o jantar, que se quebraram, tal como ela, ao descobrir que o “mal estava feito”. A que mal ela se refere? À dor de abrir os olhos para uma realidade que ela sabia existir, mas que não queria ver?

      E qual a razão desse choque causado pela visão do “cego mascando chiclete”?  Talvez ela tenha compreendido sua própria cegueira diante da vida, que seguia uma rotina repetitiva, assim como o mastigar do cego. Como ele, ela estava vivendo na escuridão, repetindo a mesma rotina, “tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro”. A visão do cego rasgou o véu que cobria seus olhos para algo além do seu mundo.  E ela cai numa bondade extremamente dolorosa, de que sente nojo e vergonha. 

      Percebe-se que a autora utiliza palavras que expressam contradição, provavelmente para demonstrar sentimentos dolorosos e conflitantes que assaltam a personagem. Ao mesmo tempo que sente bondade, sente a dor dessa constatação, pois o ser humano não se transforma se não deixar algo para trás, e isso na maioria das vezes causa dor. Além disso, sente-se enojada e envergonhada por, de repente, renegar sua vida tranquila e sem sobressaltos que tanto quisera e que escolhera.

      Ao descer do bonde, além do seu ponto de parada, sentiu “ter saltado no meio da noite”, tal a escuridão em que se viu envolvida. Percebendo que estava próxima ao Jardim Botânico, resolveu entrar, o que lhe causou a sensação de "ter caído numa emboscada". Que emboscada seria essa? A da própria vida ou a da vida ao mesmo tempo organizada e pulsante do Jardim Botânico? Naquele local, a natureza se mostrava em todo seu esplendor e a vida cumpria o seu ciclo – nascimento, crescimento e morte. E ela se sente deslocada frente a essa realidade cuja presença é tão forte e envolvente. 

      Mais uma vez surgem os sentimentos de bondade, de piedade, mas também de nojo, que pode ser entendido, no sentido mais arcaico, como desgosto, pesar, tristeza, mal-estar. Sente um impulso de mudança, mas se lembra que o marido, os filhos e os irmãos lhe esperam para o jantar. Portanto, precisa voltar para casa e cumprir com suas tarefas de dona de casa. 

     Apesar de saber que precisava retornar “ergueu-se com uma sensação de dor”, sentia que estava prestes a entrar em um “desastre”, por isso corre até o elevador, pra não ter qualquer tentação de atender ao chamado que o cego lhe apresentou.

    Mas tudo isso era inútil, algo havia se quebrado dentro dela; abraça o filho, de forma sufocante, pra se agarrar a alguma missão no seu mundo anterior, que agora parecia ser tão diferente, após ela ter vislumbrado,  por algumas horas, muitas possibilidades além dele.

      Sente-se deslocada, até que novo despertar – um barulho forte na cozinha – lhe trouxe de volta ao papel de dona de casa, de responsável pelo bem estar de todos. Finalmente, é pela mão do marido, que lhe dá segurança e amor, que ela tentará apagar a chama que foi acesa naquela tarde. Conseguirá ela retornar completamente ao seu pequeno mundo?  

     Em Laços de Família, onde se encontra o conto “Amor”, Clarice Lispector descreve pessoas comuns envolvidas em situações corriqueiras. Por meio delas consegue demonstrar sutilezas da natureza humana. A autora explora, principalmente, situações em que algum personagem se depara com algo que lhe causa uma ruptura, uma descoberta de novas possibilidades de ação diante da vida. 

     No conto “Amor”, pode-se encontrar diversas expressões com sentidos antagônicos, paradoxais, tais como “bondade extremamente dolorosa”, “era fascinante e ela tinha nojo”, “demônio da fé” e muitas outras. Acredito que a autora utiliza essa oposição de ideias e, principalmente, de emoções para demonstrar os conflitos, o turbilhão mental e emocional em que se encontra a personagem principal. 

      Por meio dessas situações cotidianas, são explorados pensamentos e sentimentos do ser humano que nos levam a refletir. A autora apresenta muitas questões e não resolve muitas dúvidas, deixando para o leitor encontrar suas interpretações, que, na maioria das vezes, não são fáceis ou são, até mesmo, impossíveis de decifrar. Os contos não estão presos a uma época ou a determinado local, pois tratam, acima de tudo, do sentimento humano, principalmente do universo feminino.

       Neste conto, pode-se perceber a estatura de Clarice Lispector, uma escritora que deixou uma obra vasta e diversificada que, acredito, ainda não foi devidamente explorada em toda sua plenitude e, talvez, nunca o seja. Cada um dos seus escritos será lido, interpretado e percebido de diferentes formas e em espaços sociais e históricos variados. Com certeza, a autora se coloca ao lado dos grandes escritores da sua época, não apenas na língua portuguesa. 

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terça-feira, 9 de junho de 2020

O ENCONTRO MARCADO

de Fernando Sabino



por Alexandre Morais do Amaral


O autor e a obra:

Fernando Sabino (1923-2004), nascido em Belo Horizonte e escritor precoce, publicou sua primeira obra aos cerca de 18 anos de idade. Jornalista, músico, atleta (nadador), escritor, produtor, editor. No Rio de Janeiro, para onde se mudou para projetar e firmar a carreira de escritor, consolidou o grupo dos quatro amigos mineiros com o pé na literatura: Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos. Os quatro mineiros do apocalipse… Mas em torno também estavam Vinícius de Moraes, Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Rubião, Rubem Braga e tantos outros. Foi grande amigo de Clarice Lispector, com quem manteve intensa troca de correspondências, hoje publicadas. Junto com “O Grande Mentecapto”, “O Encontro Marcado” é considerado seu trabalho mais expressivo dentre outras obras variadas. Em sua lápide, mandou escrever: "Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino!".  

O livro “O encontro marcado”, escrito aos 30 anos,  foi publicado em 1956. Mesmo ano de “Corpo de Baile” e “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa - outro mineiro. Enfim, ambos pertencem a uma espécie curiosa, que a ciência examina com empenho, mas sem muito sucesso. Seria bom saber sobre o que fazem, como se alimentam, onde vivem, como se reproduzem: o “Mineiro Universal”, que sai de Minas mas Minas não sai dele e ganha o mundo.

O romance “O encontro marcado” trata da vida de Eduardo Marciano e se passa, entre 1940 e 1953, basicamente na linha que liga a jovem e distante Belo Horizonte à capital federal e cultural, Rio de Janeiro. Livro urbano, ele é dividido entre duas fases marcantes e descreve a trajetória de um homem que começa menino rebelde e criativo, de uma família de classe média de Belo Horizonte (um quase alter-ego do autor). Contada em terceira pessoa, a história percorre levemente a juventude de Eduardo, com seus ritos de passagem (escola, amigos, riscos inconsequentes, adolescência, iniciação etílica e sexual) e se aprofunda, mergulha em sua vida adulta, com suas inquietações, obrigações, frustrações, crises, reflexões sobre a vida, prazeres e clandestinidades – e também alguns ritos: saída de casa, emprego, casamento, morte do pai. Em todo este percurso, vai ficando muito clara a personalidade única, individualista, solitária, amiga, angustiada, descontente, insatisfeita de Eduardo. Aquele que “está sempre indo a algum lugar que não é aqui, para se encontrar com alguém que não somos nós”. E dá-lhe “puxar angústia”, afogada nos bares e na literatura.  Com o tempo, a referência do pai bom aparece, enquanto a mãe é uma figura distante na história. Na aversão ao compromisso, Eduardo e a mulher (Antonieta) se distanciam profunda e inevitavelmente.

Um livro que mostra uma vontade de viver sua vida, mas sem conseguir encontrar um norte, para um homem em constante inquietação e com amostras de que a vida pode acabar ali próxima. No livro, morre-se em todas as fases da existência: pode-se morrer nas primeiras linhas (galinha), morre-se jovem (Jadir), morre-se idoso, morre-se de câncer, de atropelamento, morre-se afogado (mesmo sendo nadador), morre-se anônima por uma queda de um prédio, morre-se antes de nascer.

Com frequentes reflexões sobre a própria existência, e a existência de Deus, o caminho de Eduardo mostra sua notória aversão ao compromisso. É individual até no esporte (natação): não há equipe, mas a competição é quase sempre consigo mesmo. Sozinho na arte: a escrita. Sozinho no mundo. Um homem individual, mas com importantes laços de amizade – sua tábua de salvação. Até as últimas linhas de sua história, no momento derradeiro, Eduardo segue buscando uma resposta - e por intermédio de uma amizade. Como diz o próprio Eduardo, a sensação de que “há uma fresta em minha alma por onde a substância do que sou está sempre se escapando mas não vejo onde nem por quê”.

É também uma história impregnada com o passado do passado. Um livro de muitos pretéritos-mais-que-perfeitos. História em que vários homens e mulheres podem se reconhecer. Um encontro marcado, não importa com quem, não importa onde: para Eduardo, importa o caminho.

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terça-feira, 12 de maio de 2020

O SENTIDO DE UM FIM

Autor: Julian Barnes
Editora: Rocco, 2012
Tradução: Léa Viveiros de Castro
Resenha por Maria Virginia de Vasconcellos - Em Março/Abril de 2020
Para o Grupo Contemporâneo de Leitura

Antes que nada, reafirmo como em outras ocasiões, o que nos diz Cristopher Lehman-Haupt: “Há uma diferença enorme entre ser um crítico ou um resenhista. O resenhista reage à experiência do livro”. Aqui me aventuro como resenhista, buscando explorar pontos tais como: autor; contexto; personagens; narrativa; estilo; mensagem.

Sobre o autor [1]

Julian Patrick Barnes é um escritor inglês, nascido em Leicester, em 19 de janeiro de 1946, e um dos mais elogiados autores em atividade. Dando breves pinceladas na sua biografia, vê-se que foi envolvido com as letras durante toda a vida. Em seguida ao seu nascimento, mudou-se para subúrbios de Londres. Aí viveu até 1956, quando seus pais, professores de francês, mudaram-se para Northwood, Middlesex, a “Metrolan”' do seu primeiro romance. Foi então frequentar a Magdalen College, Oxford, onde estudou Línguas Modernas.

Depois de se formar, trabalhou como lexicógrafo[2] para o suplemento do Oxford English Dictionary durante três anos.  Era o responsável pela produção de dicionários, vocabulários e glossários.  Seguidamente, trabalhou, também, como reviewer e editor literário para o New Statesman e o New Review.  De 1979 a 1986, trabalhou como crítico televisivo, primeiramente para o New Statesman e, mais tarde, para o The Observer.

Foi casado com Pat Kavanagh desde 1979 até a morte desta, em 2008, com um tumor cerebral. Curioso observar (por ser um tema referido na obra a ser resenhada) que no seu mais recente livro, Os Níveis da Vida, Julian Barnes fala da dor imensa que é viver sem sua companheira de 30 anos e revela que pensou em suicidar-se.

O Sentido de um fim (The Sense of an Ending), de 2011, é seu 11º livro, e lhe rendeu o Prêmio Man Booker.  E, anteriormente, três dos seus livros iniciais ficaram entre os finalistas deste mesmo Prêmio: Flaubert's Parrot (1984), England, England (1998), e Arthur & George (2005). Em 2004, tornou-se comendador (Commandeur) da Ordem das Artes e das Letras. Também, escreveu ficção criminal sob o pseudônimo de Dan Kavanagh. E, adicionalmente aos romances, Barnes publicou coletâneas de ensaios e contos. As suas homenagens incluem ainda o Prêmio Somerset Maugham e o Prêmio de Memória Geoffrey Faber.

Sobre o livro[3]

Já pensou em vasculhar a sua própria vida? Olhar para trás? Voltar à sua adolescência e percorrer sua existência sob a perspectiva de agora?

Isso é o que pretende Barnes neste livro instigante. Ele nos leva para uma Inglaterra da década de sessenta (Londres, Bristol), e apresenta um contexto onde as comunicações eram feitas por cartas e cartões-postais, as relações amorosas e familiares ainda carregavam os hábitos da década de cinquenta, e os praticantes do denominado “infrassexo” se sentiam adaptados ao ambiente.  (ver p. 23)

Com estilo fluido e elegante, recheado de humor e ironia, o narrador, que é o personagem principal Tony Webster, vai contando a sua história, da adolescência até a maturidade. Rememora seus amigos, amores, professores e familiares. E relata mortes e suicídios. Conversa também com o leitor, todo tempo, colocando suas dúvidas, permitindo curtas digressões.

Com diálogos bem construídos, traz discussões entre os personagens sobre a questão da memória, de suas armadilhas, de suas revelações e esconderijos, protegendo ou expondo conforme a conveniência ou as necessidades psíquicas de cada um.

Todos os personagens existem em torno do Tony, e em função dele. São construídos e descritos desde seu ponto de vista – única visão que o leitor compartilha. O Barnes mostra um Tony extremamente humano, despido de qualquer idealização e, portanto, falho, carregado de autocríticas e culpas, e com um conjunto de ficções a seu respeito. Um ser comum que escolheu uma existência convencional - agradável e decente. E torna-se um personagem simpático ao leitor.

 E você? Poderá você, ser um observador neutro/objetivo em relação à sua existência? Barnes discute:

 “A nossa vida não é nossa vida, mas sim a história que contamos dela;
 “Contamos para os outros, mas principalmente para nós mesmos.” (p. 103)

E o autor exemplifica seu ponto de vista acrescentando no decorrer da narrativa novas versões ao ocorrido e ao anteriormente contado pelo protagonista. Como disse o poeta Waly Dias Salomão..”A memória é uma ilha de edição”. Mesma assertiva do nosso Guimarães Rosa: “O tempo tem o dom de fazer um balancê nas coisas” [4]
A memória pode ser considerada tanto do ponto de vista da vida privada como da história dos povos – a memória da civilização. Barnes vai refletindo sobre as possibilidades da Pós-Verdade e interpretações:

“História é a mentira dos vitoriosos ou a memória dos sobreviventes?”
Os sobreviventes podem ser vencedores ou vencidos?
“A história é também uma forma de o derrotado se auto iludir” (p. 23)
...”o fato é que nós precisamos conhecer a história do historiador a fim de entender
a versão que é colocada diante de nós” (p.18)
“História é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeições
da memória se encontram com as falhas de documentação.” (p.23)

Até chegar à Parte 2 do livro, quando aparecem fatos novos e documentos para preencher os vazios da sua memória.   Embora o cenário de fundo seja o mesmo painel da Inglaterra e os mesmos personagens, o tempo é outro. A comunicação já se faz por meio de e-mails, o que dá agilidade no desenrolar dos acontecimentos.

O Tony, nosso protagonista, torna-se um senhor aposentado, e as reflexões sobre a senilidade e a morte são marcantes e memoráveis - daquelas que atraem um colecionador de citações:

Quando somos jovens, inventamos diferentes futuros para nós mesmos; quando somos velhos, inventamos diferentes passados para os outros.” (págs. 88,89)
“O tempo não funciona como um fixador, e sim como um solvente”.

Um exemplo da importância da declaração escrita é o aparecimento da carta enviada pelo Tony ao amigo Adrian. A leitura desse documento muda o rumo da história. Novas revelações se apresentam, a “certeza fabricada” cai por terra, e o autor com sua destreza vai preparando o final inesperado. O difícil é prever o remate surpreendente – que nos leva a repensar: o que o protagonista poderia ter se lembrado se tivesse a par do ocorrido? Qual a proporção de realidade que escolheria esconder dos outros e de si mesmo?

Vale destacar comentários da Ana Lima (ver site na nota 1) sobre a história de Tony:

Saberemos catar nos rincões da memória o que é verdade? Separá-la, mesmo não conhecendo todos os fatos? ....... somos um conglomerado de ficções e alguns fatos aos quais damos a nossa identidade.......
A vida é igual à literatura. Somos protagonistas da história que desenvolvemos, editamos, burilamos. Eliminamos fatos indesejados, colorimos a gosto. E em algum lugar, em algum ponto, essa fantasia toma uma vida própria, ambulante e acreditamos nela.

Esse livro de Barnes deixa, sem dúvida, uma reflexão sobre o processo da memória, sobre o escape, a fuga do verdadeiro, e a importância de documentos escritos para provar o que, de fato, sucedeu. Essa parece ser uma das mensagens pretendida pelo autor: o engano que nossa consciência/memória pode produzir sobre nossa própria vida, assim como a possibilidade de uma pós-verdade na interpretação de acontecimentos históricos. Há um ruído no tempo que cobre de neblina o fato real.

Outra possível mensagem estaria embutida no título intrigante –- O Sentido do Fim. Seria a busca de sentido para o suicídio de dois jovens? ou dar sentido à visão do personagem central sobre esses suicídios? Ou sobre qualquer suicídio?

Cabe observar que a narrativa de Tony deixa certos vazios a serem preenchidos pela imaginação do leitor, o que parece ser uma metáfora do sistema de nossas recordações da vida, de nosso autoengano e criações fantasiosas e convenientes. A nossa história é sempre alterada pela nossa imaginação e acaba por plantar algumas dúvidas e “passagens em branco” no campo das nossas reminiscências. A psicanálise trata o tema com profundidade.

Por que recomendo esse livro? Além do mencionado acima, sobre os predicados do estilo, da estrutura dos diálogos, da construção dos personagens e de enlevados pensamentos, o que distingue essa obra são as mensagens – temas subjacentes - e as indagações do personagem pela busca da sua realidade. Pode-se até, com o passar do tempo, perder-se na lembrança o roteiro, os personagens e a história desse livro. Tudo isso poderá sumir. Porém, dificilmente as reflexões sobre a memória, sobre o sentido da vida e do suicídio, sobre a senilidade e sobre as interpretações históricas irão se apagar.

Observações adicionais:
      a)   O livro trouxe à tona outras referências literárias e cinematográficas acerca de visões e interpretações dos fatos - como exemplos: (1) o clássico filme do século passado: "Doze homens e uma sentença": (2) livro do Eduardo Giannetti: "Autoengano";
      b)    Merece destaque a primorosa tradução de Léa Viveiros de Castro.




[1] Ver site de Julian Barnes.com e notas de Ana Lima no site https://livroseraquetes.wordpress.com,
[2]  ´Léxico é o conjunto de palavras existente em um determinado idioma, que as pessoas têm à disposição para expressar-se, oralmente ou por escrito em seu contexto. ´
[3] Ver o texto da Ana Lima no site referenciado na nota 1
[4] Em Grande Sertão – Veredas

Imagem: "Retrato de Roger" (1938), OST de Anthony Morris

terça-feira, 10 de março de 2020

Todos os abismos convidam para um mergulho

de Cinthia Kriemler


por Priscila Fernandes Costa


Cinthia Kriemler nasceu no Rio de Janeiro, mas mora em Brasília desde 1969. É formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Começou a se aventurar na escrita ficcional aos 50 anos de idade e nunca mais parou de escrever. Autora de livros de contos e poesia, estreou no romance com o livro Todos os abismos convidam para um mergulho, com o qual chegou a finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura, em 2018.

Nesta obra impactante de Cinthia vamos conhecer o cotidiano de Beatriz, uma assistente social do DF convivendo com as dores e as agruras de sua clientela composta por crianças abusadas, mulheres violentadas e maltratadas, maridos abusadores, estupradores e violentos, exploradores de mulheres, drogados, alcoólatras, traficantes, assassinos em série, pais negligentes, pedófilos, etc. Não bastasse os sofrimentos com o quais convive no dia a dia do trabalho, Beatriz traz consigo a dor de ter perdido sua única filha, que aos 14 anos de idade comete suicídio, depois de um prolongado período de depressão. Laura, a filha, aos cinco anos transformou-se numa criança que não sorria, não queria brincar e se refugiava por longos períodos em seu quarto. Apresentava, ainda, alguns sintomas incomuns tais como insônia, irritabilidade sem motivo aparente e choro convulsivo cada vez que se via separada dos pais. Beatriz sempre achou que esses comportamentos eram devidos à morte da cachorrinha da família. Pipoca, a cachorrinha, despendeu-se da mão de Laura para correr atrás de outro cachorro e acabou sendo atropelada diante da menina, que tudo assistiu sem esboçar nenhuma reação. Laura sequer chorou, mas a partir daí apresentou os primeiros sintomas. Passou, também, a se preocupar com a questão da morte, perguntando várias vezes se os pais iriam morrer e a ter medos noturnos a ponto de ter que dormir com o abajur aceso. Depois vieram os frequentes acidentes domésticos: esbarrões nas portas e nos móveis e quedas com cortes, luxações e torções. Um ano mais tarde Beatriz encontra Laura sentada sob o chuveiro, puxando os cabelos até arrancar tufos. Quando a mãe tenta impedi-la, passa a bater a cabeça na parede até sangrar. As automutilações ocorriam com bastante frequência. Somente quando estava com 12 anos veio o diagnóstico correto: Laura sofria de Depressão Severa. O sol negro da depressão  venceu, tempos depois. Laura tomou muitos comprimidos com uma lata de cerveja, apagou a luz, se cobriu e virou para o lado, como quem vai dormir. Deixou para trás a vida atormentada.  Na manhã seguinte o pai a encontrou morta.

O diagnóstico de depressão desaba contundente sobre Beatriz, trazendo consigo sentimentos de remorso e culpa. Chora abraçada aos joelhos por um bom tempo, depois se levanta e vai  consolar o marido desolado.  Em seguida, Beatriz sai de casa em busca de punição e de sexo. Pega o primeiro homem que a encara e transa com ele, um desconhecido que lhe diz coisas sujas e a trata como vadia. Encontrou enfim sua penitência e nunca mais parou de usar o sexo com estranhos como uma válvula de escape de suas dores.

Bernardo, seu marido, indignado e ferido com as traições de Beatriz, grita, xinga, se desespera e finalmente a manda embora, e ela vai, sem discutir ou argumentar. Por vingança, ele ainda tira-lhe a guarda da filha.  Segundo a descrição de Beatriz, Bernardo é um homem profundo, inteligente e direto. Depois da morte da filha, eles mantém uma proximidade cordial, um pacto de tolerância mútua, que será rompido quando ele conhece Sofia, uma mulher cheia de vida, bonita, jovem, segura e moderna. Bernardo informa-lhe, então, que vai se casar e que será pai novamente. Daí  nasce Mariana, outra filha.  Meses depois, ele tem um AVC que o levará à morte. Ninguém estava a seu lado quando morreu, estava sozinho. Uma pessoa sozinha deveria pensar na própria morteQue pode não ter tempo para pedir socorro, pensa Beatriz.

Beatriz, ela também, vem de um lar desestruturado e bastante abusivo. Sua família é composta por um irmão gêmeo, Gustavo, que mora no exterior e sua mãe, Maria Estela, que vive no Rio de Janeiro. Do pai, já morto, só restam as marcas dos maus tratos que ele lhe infligiu. Era um homem perigoso, um homem violento para quem a disciplina e as regras importavam mais do que qualquer afeto.  Ela e o irmão acatavam as ordens paternas por puro medo dos castigos, que doíam muito. Além de apanhar, eram privados de comida e diversão e não podiam conversar um com o outro. Qualquer coisa podia ser motivo para os castigos, uma nota 7 ou 7,5 em qualquer disciplina, uma corrida dentro de casa, um banheiro molhado, um prato sujo na pia, uma cadeira fora do lugar, um tênis fora do armário, etc… e a TV não podia ser ligada. Isso fez com que Beatriz aprendesse a mentir cada vez mais. Na rua fazia tudo o que era proibido. Pensa que por isso tornou-se uma mulher incapaz de cuidar e proteger a própria filha, tal como sua  mãe. Quando Laura morreu sentiu muita vergonha de si mesma.

A mãe também sofria os maus-tratos do marido e também tinha muito medo dele. Havia muita briga e tapas que deixavam marcas apenas nos lugares em que as roupas cobriam. Apanhava em silêncio para que os filhos não ouvissem. Era ameaçada de que se se separasse ficaria sem nada, de que perderia a guarda dos filhos ou de que a mataria se ela se envolvesse com outro homem. As ameaças eram trocadas por sexo e obediência. Ela fingia nada ver do que acontecia com os filhos.

Maria Estela tinha uma preferência explícita por Gustavo e uma relação hostil com Beatriz. Foi uma mulher  infeliz a vida inteira e  usou a própria miséria para atormentar a vida da filha. Nunca existiu nenhuma empatia, nenhum afeto entre as duas, apenas mágoa e ressentimento. Nunca houve uma frase, um gesto de aproximação ou qualquer indício que demonstrasse que ela se preocupava com a filha. No enterro da neta chegou ao ponto de dizer à Beatriz que a menina havia morrido por causa dela. Quando Maria Estela chega de surpresa à Brasilia, Beatriz é tomada de muita raiva. Diante da intromissão materna em sua vida, coloca pra fora anos de ressentimentos acumulados e finalmente a manda embora. Passado  algum tempo, Gustavo retorna ao Brasil com o propósito de confrontar a irmã e diz-lhe que a mãe está com Alzheimer. Gustavo se mostra cortante, cobrando dela mais consideração e cuidado para com a mãe. Aos pouco Beatriz vai se dando conta de que a cumplicidade que ela acreditava existir entre ela e o irmão era unilateral.

Desenganos e decepções vão compondo a história de Beatriz, violência, abandono, desamor e abusos costuram seus vinte anos de Serviço Social. Jean Charles, um garoto de oito anos, é um dos casos que ela acompanha.Vítima de abusos sexuais e agressões diversas, é transferido, juntamente com sua mãe, para uma casa abrigo para escapar do pai pedófilo. Os abusos que ele infligia ao filho eram sempre acompanhados de palavras obscenas e ameaças. Nos olhos da criança vê-se medo, desconfiança e um pedido de socorro. Filho e mãe estão indo para o interior de Minas Gerais para a casa da avó, onde ele pode brincar, comer bolo de milho, dormir na rede e tomar banho de rio.  O pai, enraivecido pela fuga dos dois, vai atrás, mas eles já não estão mais lá. Tentando tirar da avó o paradeiro da mulher e do filho, bate com a cabeça dela no chão várias vezes. Como resultado ela foi internada em coma no hospital e ele foi preso; o advogado alega privação de sentidos. Depois de solto o pai de Jean Charles invade a casa abrigo e  faz o filho de refém. Ele está armado e ameaça atirar na cabeça do menino. Beatriz é chamada, no meio da noite, a pedido da mãe. Na tensão do momento ela diz bem alto: “Você não manda nada, sabia? Nem aqui nem em lugar nenhum. Você é só um covarde que bate em velha, mulher e criança”. O tumulto que suas palavras provocam no agressor possibilita que Jean Charles corra e se proteja. Os policiais  matam o homem quando ele aponta a arma para Beatriz.

A imprudência de Beatriz traz consequências: ela é afastada de suas atividades e terá que se submeter a uma avaliação psicológica. Essa determinação a coloca no consultório de Clarice, uma psiquiatra designada para avaliar e atestar se e quando Beatriz estará apta para retornar ao trabalho. Clarice recomenda seu retorno com a condição de que ela concorde em fazer terapia durante um ano, duas ou três vezes por semana, sem faltas, sem tentativas de controlar ou manipular e sem mentiras. Acordo firmado.

Ao longo dessa trajetória percorrida por Beatriz encontramos outras tragédias acompanhadas por ela. O caso de Antonio e Cícero, dois irmãos de 15 e 13 anos respectivamente, levados pelo Conselho Tutelar por estarem sendo explorados sexualmente, desde muito pequenos, pelo pai e com a anuência da mãe.

Ou ainda o caso de Maria Fernanda, 39 anos, casada, sem filhos, presa durante um ano dentro da própria casa, sofrendo ameaças, apanhando e sendo estuprada quase todos os dias pelo marido. Comia o que ele determinava, era privada de música, TV, livros, computador. Se reclamasse, apanhava. Maria Fernanda matou o marido por medo, em legítima defesa.

Isabel, a menina que não queria falar. Ao ser examinada constatou-se agressões físicas, mas sem indícios de abuso sexual. O principal suspeito foi o pai, que foi preso e mantido sob supervisão médica e psiquiátrica. Mas a verdade é bem outra. Isabel provocou os ferimentos no próprio corpo. Mais um caso de uma criança sofrendo de depressão, esta doença que come por dentro, que vai minando as pessoas, as relações. Só sofrimento, impaciência, cansaço e descrença.

Fazer a resenha do livro de Cinthia Kriemler não é uma tarefa fácil. Embora ela tenha uma escrita fluida e clara, o livro é escrito num estilo que contempla realidades cotidianas passadas e presentes, com uma narrativa que lembra, algumas vezes,  um diário, e em outros momentos  parece um exercício de livre associação, como se tudo o que é relatado se passasse em seu pensamento, numa espécie de diálogo consigo mesma. Sem meias palavras Cinthia escancara os abismos que nos habitam e revela o que há de pior em cada ser humano, de maneira crua e brutal. A violência nossa de cada dia.

A Dor me parece ser o personagem central do romance: dor por uma mente magoada pelos abusos que desqualificam e enfraquecem,  dor de um psiquismo  minado por transtornos que levam à depressão, dor devido ao amor mal sucedido ou não correspondido, dor por se ver no mundo absolutamente desamparado, dor presente na miséria, na fome, na velhice, na opressão, na solidão. E sobretudo a dor devastação causada pelo suicídio de alguém amado e desejado. “Doer, dói sempre. Só não dói depois de morto. Porque a vida toda é um doer.”  Estes versos de Raquel de Queiroz estão na epígrafe do livro.

Em um vídeo recentemente divulgado pela internet ficamos sabendo que nos últimos 15 anos o número de suicídios de crianças na faixa de 10 a 14 anos sofreu um aumento de 200%. Cifra alarmante que nos convoca para olhar com mais cuidado para nossas crianças. Mas o que podemos dizer dos pais cujos filhos tiraram a própria vida? Como lidar com a culpa, com o sentimento de impotência, com a constatação da cegueira defensiva que recusa a ver os sinais da desorganização psíquica, com a raiva pela morte almejada e autoinfligida, com a impossibilidade de um luto realizado?

A psicanalista francesa de origem iuguslava Radimila Zygouris, num artigo intitulado Uma palavra que falta, chama a atenção para um fato de tão grande obviedade, mas que ao mesmo tempo passa absolutamente despercebido por nós: falta uma palavra para designar a mãe ou o pai que perdeu um filho, que está de luto por seu filho. Essa ausência existe, senão em todas as línguas, pelo menos em um número considerável delas. Como entender este vazio da língua? Para Radimila, a explicação para este vazio nas línguas está inscrita na história da humanidade, e a resposta se situa no intervalo que separa a fantasia da realidade, a fantasia vindo se situar justamente no lugar no qual a linguagem falha em nomear.

Em psicanálise fantasia e realidade são dois termos que se opõem, mas que mantém uma fronteira passível de transposição. Uma passagem possível entre realidade e fantasia seria a assombração. A assombração vem de algo que efetivamente aconteceu na realidade, mas que assumiu autonomia psíquica, tornando-se modalidade de espera de uma realidade futura. É a representação de um medo,  e vem dar forma à angústia. Para os pais, a morte de uma criança é da ordem da assombração: não é raro encontrarmos pais que vivem assombrados pelo medo de que seus filhos venham a morrer. Ponte entre o passado ancestral e a espera de uma catástrofe futura. Retorno do passado no aqui e agora.  Nesse sentido, a palavra que falta é representada pela fantasia que diz respeito à criança que sofreu um dano.

Historicamente, a tristeza causada pela perda de uma criança, ainda que essa morte seja frequente e faça parte do destino comum, diz respeito a um registro privado e não nomeia os pais em luto por ela – assim como também não existe uma palavra para designar os enlutados da fratria –, enquanto  a morte de um adulto era inscrita socialmente e apontava uma posição passiva para os sujeitos enlutados, tais como órfã(o) ou viúvo(a). Do ponto de vista da coletividade a criança não tinha representação social.

Pode-se constatar a persistência, até o final do século XVII, do infanticídio tolerado. Não se tratava de uma prática admitida e era, de fato, severamente castigada. No entanto, era praticado em segredo, talvez com bastante frequência, disfarçado sob a forma de acidentes. Tais acontecimentos faziam parte das coisas moralmente neutras, isto é, algo que, embora não confessado, não era considerado vergonhoso. Então pode-se pensar que a assombração sempre pronta a surgir na vida destes pais que perdem seus filhos diz respeito aos acontecimentos  inscritos na história da humanidade onde muitas vezes o assassinato de crianças era praticado sem que isso fosse visto como um dano às família ou à sociedade. Nesse sentido, no nível do inconsciente, toda morte de criança é assassinato de criança.

Intrincação do singular e do coletivo nossos atos fazem história, história da qual a língua se torna memória, por meio das palavras, das metáforas, dos ditos e dos não-ditos. Ela veicula a memória de todos os possíveis, de  todas as monstruosidades das quais os humanos são capazes. E se a  língua ainda não gravou essa palavra que falta para designar a mãe e o pai que perdeu um filho, não permite, igualmente a este pai ou esta mãe ocupar uma posição passiva de vivo perante a morte de seu filho. Talvez isso se dê justamente por que não se pode falar de posição passiva do adulto ante tal acontecimento. A morte real da criança vem redobrar o fantasma da criança morta, da criança assassinada. Recobrimento do silêncio de si pelo silêncio do outro. O infans morto é, desse modo, o buraco negro da representação da palavra.


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*Priscila Fernandes Costa é psicóloga, psicanalista e fundadora do Percurso Psicanalítico de Brasília.