de Mário de Andrade
Comentários de Priscila Fernandes Costa
Depois de ler o conto de
Mário de Andrade me pareceu poder considerar que estamos, aí, diante de uma
fantasia tipicamente masculina. Esta afirmação pode parecer paradoxal e, então,
convoca a um esclarecimento. A história se desenvolve em torno de uma
professora de francês, conhecida apenas como Mademoiselle, 43 anos, e de suas
duas pupilas, as irmãs Lucia, 16 anos e Alba 15 anos. Mademoiselle é uma
“donzela” descrita como “envelhecida”,
uma “velhota”, dizem, “mais destratadinha agora, coitada”, e totalmente tomada por um “vendaval de mal de sexo”. Estabelece com
as adolescentes um relacionamento dúbio, com diálogos cheio de insinuações
eróticas, falas de duplo sentido,
onomatopéias maliciosas, reticências e curiosidades malignas e relatos
fantasiosos misturados de sensualidade e violência que devastam a professora.
Quando se vê pega na “armadilha” das meninas, ela reage com arroubos de pudor e
nojo fingidos, como que escandalizada frente às bobagens “muito freudianas” que elas dizem. “Mademoiselle caíra naquele mundo mágico de anseios” que era o das
duas jovens. Por isso, quando houve de Alba o que acontece atrás da catedral de
Ruão... “nós vimos um homem de barba, a senhora entende... A história atiça os
anseios de Mademoiselle de tal forma que todas as vezes que precisa sair à rua
para ir à farmácia, se vê impelida, intimada mesmo a passar atrás da catedral
da cidade, embora essas incursões redundem em desilusão: nada lhe acontece. Numa noite, ao voltar para casa percebe estar
sendo seguida por dois homens e a partir de então cai num devaneio no qual se
vê na iminência de ser violada sem piedade. Apressa o passo, corre ofegante, dobra
a esquina de sua rua e chega finalmente na porta da pensão em que mora. Os
homens se aproximam “em sua conversa
distraída”; tudo, então, não passou de fantasia, quimera... Mademoiselle
sobe as escadas correndo e vai chorar.
Neste conto Mario de Andrade parece apostar que o
grande anseio amoroso das mulheres, sejam elas jovens ou maduras, é o de ser
seduzida e violada pelo homem de seus sonhos, bem ao estilo de uma leitura
apressada dos primeiros desenvolvimentos de Freud a propósito das fantasias de
suas pacientes histéricas. Freud constatou que a fantasia de sedução é
primordial no desenvolvimento deste tipo de neurose (embora não seja uma exclusividade das
histéricas), e que muitas de suas pacientes viviam essas ficções como
acontecimentos reais. Mas percebeu que entre fantasiar e passar ao ato
propriamente dito existe uma enorme distância . O ato de fantasiar é próprio da
subjetividade humana e constitue a nossa realidade psíquica.
Para o olhar masculino, incluindo aí o próprio
Freud, a feminilidade foi sempre um enigma, um continente negro misterioso a
ser explorado. Ele confessou, por exemplo, que não sabia o que fazer com a
sexulidade feminina, esse desconhecido que se torna fonte de angústia e
de fantasias projetivas, sobretudo nos homens. Nos últimos anos de sua vida ele
escreve “Se vocês quiserem saber mais sobre a feminilidade,
interroguem suas próprias experiências de vida ou enderencem-se aos poetas”. Ao longo da história, essa
irrepresentabilidade do feminino tem servido de palco para um verdadeiro circo
de horrores, onde todos os medos, todas as angústias, todas as maldades são
encenadas; nele se representam o diabo e a santidade, as possessões demoníacas,
os martírios e as loucuras da humanidade. A resposta mais comum dada pelos
homens a este traço inefável da feminilidade foi o de tornar as mulheres
sedentas de falo em função da famigerada inveja do pênis – outra noção freudiana
mal compreendida e deturpada pelo imaginário popular –, ao se descobrirem desprovidas
do órgão fálico tão valorizado pelo personagem viril.
O complexo de Édipo é para Freud um fundamental divisor de águas tanto
no que diz respeito à entrada da criança no mundo da linguagem e da cultura,
quanto um elemento primordial na diferenciação entre o masculino e o feminino.
Com o surgimento do Édipo, cujo evento
desencadeador é denominado complexo de
castração, a identidade sexual de meninos e meninas tomam caminhos bem
distintos. Enquanto o menino renuncia ao gozo infantil do desejo pela mãe para
preservar sua potência fálica a ser vivida ao longo da vida (assim ele sai do
complexo de Édipo), a menina volta seu amor para o pai, ingressando, então, no complexo de Édipo. Devido ao medo da perda
do amor dos pais ela irá renunciar gradativamente a esse desejo, transferindo-o,
mais tarde, para outros homens. Desejo (sexual) e amor são as duas saídas desse
tempo do desenvolvimento psíquico, indicando destinos próprios do lado
masculino e do feminino, respectivamente. Não estou com isto querendo dizer que
o sexo não é importante para nós mulheres; as mulheres também gostam de sexo.
Apenas que o sexo não tem a mesma representação que para os homens. Não
precisamos comprovar o tempo todo nenhuma potência fálica, nos basta, muitas
vezes, o olhar desejante do outro que nos coloca como causa de seu desejo.
O conto, então, pode ser lido como uma representação das
fantasias masculinas diante do desejo pela mulher. Serve também para apresentar
as fantasias das mulheres que toman posse do inconsciente do homem, como a
dizer que cada sujeito deseja o desejo do outro.
Já que estamos falando em fantasia, aproveito para interrogar sobre o
que poderia ser a fantasia que move Mario de Andrade neste conto? Poderia ser a
personagem de Mademoiselle uma representação da figura materna do autor, uma
espécie de alter ego da mãe, mas colocada como portadora do lado “sujo”,
denegrido que a sexualidade dos pais representa no imaginário dos filhos? Ou
ainda uma representação denegada de seu amor infantil por ela? – na medida que
Mademoiselle é descrita como desprovida de encantos e, portanto, indesejável. Ou
quem sabe, trata-se aí de um jogo de
espelhos: o desejo de Mademoiselle é mediado pelo desejo do autor?
Enquanto pensava nessas
questões me lembrei do filme da diretora Ana Carolina de nome “Das Tripas Coração” (1982), que enfoca muito bem a fantasia masculina sobre
o que se passa vida sexual das mulheres. Recomendo também outro filme em cartaz
de título “A vida invisível”, do
diretor Karin Ainouz, de uma beleza dilacerante. Poder-se-á constatar, então, o
abismo existente entre a subjetividade masculina e a feminina.
Para finalizar, vale
dizer que a dramaticidade da situação descrita no conto é demolida pela ironia
fina, pelas insinuações jocosas e picantes e pelo humor cáustico. Ressalto também que em sua escrita Mario de
Andrade brinca o tempo todo com as palavras, fazendo uso de inúmeros
neologismos, tais como: afrosa, buscular,
knadapantes, zunite, gluante,
ecruladas. O neologismo semântico é de grande valor para a psicanálise.
Eles são uma marca da prevalência do inconsciente no discurso concreto.
Partindo da tese de que a linguagem é a condição do inconsciente, os
neologismos apontam para um outro discurso, cuja significação precisa ser
estebelecida. Eis aí, pois, o discurso do inconsciente, que ao mesmo tempo que
propõe enigmas a serem decifrados, descortina a verdade do sujeito.
***
ilustração: reprodução de Claude Monet da série Catedral de Notre-Dame de Rouen.
As 31 pinturas da série (1890) pretendiam capturar a fachada da catedral em horas diferentes do dia e do ano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário